19° capítulo

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Tapo a boca com as mãos, mas o som já escapou. O céu fica preto e escuto um coro de sapos começando a cantar. Que idiotice! Que ideia mais idiota! Espero, paralisado, a floresta adquirir vida com a presença de agressores. Então, lembro-me de que quase ninguém sobrou.
Caio, que está ferido, agora é meu aliado. Quaisquer dúvidas que eu tenha tido em relação a ele estão dissipadas porque, se um de nós tirar a vida do outro agora, seremos considerados párias quando retornarmos ao Distrito 12. Na realidade, sei que, se estivesse assistindo, eu odiaria qualquer tributo que não se aliasse imediatamente a seu companheiro de distrito. Além disso, faz todo o sentido do mundo um proteger o outro. E, no meu caso – na condição de parte integrante dos amantes desafortunados do Distrito 12 –, é um requisito absoluto se desejo mais alguma ajuda de patrocinadores solidários.
Os amantes desafortunados... Caio deve ter desempenhado esse papel o tempo todo. Por que outro motivo os Idealizadores dos Jogos teriam feito essa mudança sem precedentes nas regras? Para dois tributos terem o direito de sentir o gostinho da vitória, nosso “romance” deve estar tendo uma repercussão tão grande junto ao público que condená-lo colocaria em xeque o sucesso dos Jogos. Não graças a mim. O máximo que fiz foi não matar Caio. Mas o que quer que ele tenha feito na arena, deve ter convencido o público de que o fez para me manter vivo. Balançar a cabeça em negativa para me impedir de correr para a Cornucópia. Lutar com Cato para me deixar escapar. Até a aliança com os Carreiristas deve ter sido uma estratégia para me proteger. Caio, ao que parece, nunca representou uma ameaça para mim.
A ideia me faz sorrir. Solto as mãos e levanto o rosto na direção do luar, de modo a garantir que as câmeras tenham uma excelente tomada.
Então, dos que sobraram, quem devo temer? Cara de Raposa? O garoto do seu distrito está morto. Está agindo sozinha, à noite. E sua estratégia tem sido se esquivar, não atacar. Acho que, mesmo que ouvisse minha voz, ela não faria nada. Simplesmente esperaria alguém me matar.
Em seguida, temos Thresh. Tudo bem, ele é uma ameaça especial. Mas não o vi, nem uma única vez, desde que os Jogos começaram. Lembro-me de como Cara de Raposa se sobressaltou quando ouviu um barulho nas proximidades do local da explosão. Mas ela não se virou para a floresta, e sim para o que está além dela. Virou-se na direção daquela área da arena que despenca até um local desconhecido. Tenho quase certeza de que a pessoa de quem ela fugiu era Thresh e que aquele é seu domínio. Ele nunca teria me ouvido de lá e, mesmo que tivesse, estou numa posição alta demais para alguém de seu tamanho alcançar.
Então, restam Cato e a garota do Distrito 2, que certamente devem estar celebrando a nova regra a uma hora dessas. Entre os que restaram, são os únicos que se beneficiam da mudança além de Caio e eu. Será que devo fugir deles agora, sabendo que me ouviram chamar Caio? Não. Deixe que eles venham. Deixe que venham com seus óculos de visão noturna e seus corpos pesados que nenhum galho suporta. Diretamente para o alcance de minhas flechas. Mas sei que não virão. Se não vieram até mim de dia, não vão arriscar entrar à noite no que poderia ser mais uma armadilha. Quando vierem, será nas suas condições, não porque permiti que descobrissem meu paradeiro.
Fique preparado e durma um pouco, Luan, instruo a mim mesmo, embora meu desejo fosse começar a procurar Caio agora mesmo. Amanhã você o achará.
Consigo dormir, mas de manhã estou super cauteloso, imaginando que, apesar de os Carreiristas estarem hesitantes em me atacar na árvore, são totalmente capazes de preparar uma emboscada para mim. Tomo todas as precauções possíveis para me preparar para o dia – ingerir um farto café da manhã, verificar a mochila, deixar as armas a postos – antes de descer. No chão, porém, tudo parece tranquilo e sem perturbações.
Hoje, terei de ser escrupulosamente cuidadoso. Os Carreiristas saberão que estarei tentando localizar Caio. Eles podem muito bem querer esperar até que eu o encontre para só então agir. Se ele estiver tão ferido quanto Cato supõe, serei obrigado a defender a nós dois sem qualquer assistência. Mas se ele está tão incapacitado assim, como conseguiu permanecer vivo? E como raios vou ser capaz de encontrá-lo?
Tento pensar em qualquer coisa que Caio tenha dito que possa me dar alguma indicação de onde está escondido, mas nada me ocorre. Então, retorno mentalmente ao último momento em que o vi brilhando na luz do sol, gritando para que eu corresse. Em seguida, Cato apareceu de espada em punho. E depois que saí de lá, ele feriu Caio. Mas como Caio escapou? Talvez tenha reagido melhor ao veneno das teleguiadas do que Cato. Talvez essa tenha sido a variável que lhe permitiu escapar. Mas ele também foi ferroado. Então, até onde poderia ter ido, apunhalado e tomado pelo veneno? E como tem conseguido permanecer vivo desde então? Se o ferimento e os ferrões não o mataram, certamente a sede já teria acabado com ele depois de todos esses dias.
E assim descubro a primeira pista do seu paradeiro. Ele não poderia ter sobrevivido sem água. Sei disso por causa dos meus primeiros dias aqui. Ele deve estar escondido em algum lugar próximo a uma fonte. Tem o lago, mas acho essa opção bastante improvável já que é muito próxima do acampamento dos Carreiristas. Há algumas piscinas naturais. Mas a pessoa seria um alvo muito fácil deitado em uma delas. E o riacho. O que começa no acampamento que Rue e eu fizemos, passa perto do lago e desemboca em algum lugar além. Se ele se manteve próximo ao riacho, teve a possibilidade de mudar sua localização sem precisar se afastar da água. Ele pode ter caminhado na água sem deixar rastros. Pode até ter conseguido pescar um ou outro peixe.
Bem, de qualquer maneira, já é um começo.
Para confundir a cabeça de meus inimigos, acendo uma fogueira com muita madeira e folhas. Mesmo que imaginem que se trata de um truque, espero que acreditem que estou acampado em algum lugar próximo a ela. Quando, na verdade, estarei no encalço de Caio.
O sol derrete a névoa matinal quase instantaneamente, e posso garantir que o dia vai ser mais quente do que o habitual. A água está fria e agradável nos meus pés descalços à medida que desço o riacho. Fico tentada a gritar o nome de Caio enquanto ando, mas decido não fazer isso. Terei de encontrá-lo com meus olhos e com o ouvido bom, ou então ele terá de me encontrar. Mas ele vai saber que o estou procurando, certo? Ele não terá um conceito tão ruim de mim a ponto de imaginar que eu ignoraria a nova regra e permaneceria fazendo tudo sozinho, não é? Ele é muito imprevisível, o que talvez seja interessante em outras circunstâncias, mas no momento proporciona apenas um obstáculo a mais.
Não demora muito até eu alcançar o local onde me desviei para chegar ao acampamento dos Carreiristas. Nenhum sinal de Caio, mas isso não me surpreende. Subi e desci esse córrego três vezes desde o incidente com as teleguiadas. Se ele estivesse nas proximidades, certamente eu já teria suspeitado antes. O riacho começa a fazer uma curva para a esquerda em direção a uma parte da floresta que é nova para mim. Margens enlameadas cobertas de um emaranhado de plantas aquáticas levam a rochas imensas que só aumentam até eu começar a me sentir numa espécie de armadilha. Não seria uma coisa das mais simples escapar desse riacho agora. Lutar com Cato ou com Thresh enquanto escalo esse terreno rochoso. Na verdade, acabei de decidir que estou em uma pista totalmente equivocada, que um garoto ferido seria incapaz de navegar nessa fonte de água, quando vejo o rastro de sangue descendo a curva de um penedo. Está seco faz muito tempo, mas as linhas manchadas correndo de um lado a outro sugerem que alguém – que talvez não estivesse em total domínio de suas faculdades mentais – tentou apagá-las.
Abraçando as rochas, movo-me lentamente na direção do sangue, em busca dele. Encontro mais algumas manchas de sangue, uma com alguns fios de tecido grudado, mas nenhum sinal de vida. Não me contenho e chamo o nome dele com a voz abafada:
– Caio! Caio!
Então um tordo aterrissa em uma árvore desgastada e começa a imitar minha voz, o que me faz parar. Desisto e desço de volta ao riacho. Ele deve ter seguido caminho. Deve ter descido o riacho ainda mais.
Meu pé mal mergulha através da superfície da água quando escuto uma voz:
– Você está aqui pra acabar comigo, queridinho?
Dou meia-volta. Veio da esquerda, o que significa que não ouvi muito bem. E a voz era áspera e fraca. Mas ainda assim, deve ser de Caio. Que outra pessoa nessa arena me chamaria de queridinho? Meus olhos examinam a margem do riacho, mas não vejo nada. Apenas lama, as plantas, a base das rochas.
– Caio? – sussurro. – Onde você está? – Nenhuma resposta. Será que imaginei tudo? Não, tenho certeza que a voz era real e bem próxima também. – Caio? – Movo-me ao longo da margem.
– Por favor, não pise em mim.
Salto para trás. Sua voz veio de debaixo dos meus pés. Mas ainda não consigo enxergar nada. Então seus olhos se abrem, inequivocamente azuis em meio à lama marrom e às folhas verdes. Arquejo e sou recompensado com alguns dentes brancos quando ele ri.
É a melhor camuflagem que já vi. Esqueça aquela história de ficar arremessando pesos. Caio devia ter ido à sua entrevista particular com os Idealizadores dos Jogos e pintado a si mesmo como uma árvore. Ou como um penedo. Ou como uma margem de rio enlameada e cheia de ervas.
– Feche novamente os olhos – ordeno. Ele obedece, e sua boca também desaparece completamente. Grande parte do que imagino ser seu corpo está na verdade embaixo de uma camada de lama e plantas. Seu rosto e braços estão tão magnificamente disfarçados que até parecem invisíveis. Ajoelho-me ao seu lado.
– Imagino que todas aquelas horas decorando bolos tenham valido a pena – digo.
Caio sorri.
– É isso aí. Glacê. A última defesa dos moribundos.
– Você não vai morrer – rebato com firmeza.
– Quem diz? – A voz dele está áspera demais.
– Eu digo. Nós agora estamos na mesma equipe, você sabe disso.
Os olhos dele se abrem.
– Foi o que ouvi. Legal de sua parte achar o que restou de mim.
Pego minha garrafa de água e ofereço-a a ele.
– Cato te esfaqueou?
– Perna esquerda. No alto – responde Caio.
– Vamos lá pro riacho pra você se lavar. Assim vou poder ver que tipo de ferimento você tem.
– Abaixa aqui um minutinho – pede ele. – Preciso te dizer uma coisa. – Inclino-me e ponho o ouvido bom na altura da sua boca, que faz cócegas quando ele sussurra: – Lembre-se: nós somos loucamente apaixonados um pelo outro, então não há problema algum em você me beijar sempre que tiver vontade.
Afasto bruscamente a cabeça, mas acabo rindo.
– Obrigado, não vou me esquecer disso. – Pelo menos, ele ainda é capaz de fazer piada. Mas quando começo a ajudá-lo a ir em direção ao riacho, toda a frivolidade desaparece. São só cinquenta centímetros, será assim tão difícil? Muito difícil, quando percebo que ele não é capaz de se mover nem um centímetro sequer por conta própria. Está tão fraco que o melhor que consegue fazer é não resistir. Tento arrastá-lo, mas apesar de saber que ele está fazendo o máximo possível para ficar em silêncio, gritos agudos de dor escapam de sua boca. A lama e as plantas parecem tê-lo aprisionado e, finalmente, tenho de dar um puxão gigantesco para livrá-lo delas. Ele ainda está deitado cinquenta centímetros distante da água, com os dentes cerrados, lágrimas produzindo trilhas ao longo de seu rosto enlameado.
– Escuta, Caio, vou rolar você até o riacho. É bem raso aqui, certo?
– Excelente.
Rastejo para o seu lado. Independentemente do que aconteça, digo a mim mesmo, não pare até que ele esteja na água.
– No três, hein? Um, dois, três!
Só consigo rolá-lo uma vez antes de parar por causa dos horríveis sons que está emitindo. Agora ele está na borda do riacho. Talvez seja melhor assim.
– Tudo bem, mudança de planos. Não vou colocar você todo na água – digo a ele. Até porque, se colocá-lo, quem garante que serei capaz de retirá-lo depois?
– Não vai mais me rolar? – pergunta ele.
– Acabou. Vamos fazer uma limpeza em você. Fica de olho na floresta pra mim, certo? – peço. É difícil saber por onde começar. Ele está tão cheio de lama e de folhas que nem consigo ver suas roupas. Se é que ele está usando alguma roupa. O pensamento me faz hesitar um pouco, mas prossigo com a tarefa. Corpos nus não chamam tanto a atenção na arena, não é mesmo?
Tenho duas garrafas de água e o odre de Rue. Encosto as duas garrafas nas rochas do riacho, de modo que estarão sempre cheias, enquanto jogo o conteúdo do odre sobre o corpo de Caio. Leva um tempo, mas, por fim, consigo retirar lama o suficiente para achar suas roupas. Delicadamente, abro sua jaqueta, desabotoo a camisa e a retiro. Sua camiseta está tão emplastrada nos ferimentos que tenho de cortá-la com a faca e molhá-la novamente para que ela se solte de seu corpo. Ele tem uma queimadura bem feia no peito e quatro ferroadas de teleguiadas, contando a que está abaixo da orelha. Mas estou me sentindo um pouco melhor. Este nível de ferimento consigo curar. Decido cuidar da parte superior de seu corpo – para aliviar um pouco da dor – antes de encarar quaisquer que tenham sido os estragos feitos por Cato em sua perna.
Tendo em vista que não faz qualquer sentido tratar dos ferimentos de Caio com ele deitado no que se transformou em um bolo de lama, dou um jeito de escorá-lo num penedo. Ele fica lá sentado, sem reclamar, enquanto retiro todos os resquícios de sujeira de seu cabelo e de sua pele. Seu corpo parece muito pálido à luz do sol e ele não está mais com aquela aparência forte e atarracada. Tenho de cavar os ferrões de dentro dos calombos deixados pelas teleguiadas, o que o faz estremecer. Contudo, assim que aplico as folhas, ele suspira de alívio. Enquanto seca ao sol, lavo a camisa e a jaqueta imundas e as estendo sobre o penedo. Depois aplico o creme para queimaduras em seu peito. Só então percebo como a pele está ficando quente. A camada de lama e as garrafas de água disfarçaram o fato de que ele está ardendo em febre. Meto a mão no kit de primeiros socorros que peguei do garoto do Distrito 1 e acho uns comprimidos que fazem baixar a temperatura. Minha mãe, na verdade, até compra uns desses quando os seus remédios caseiros falham.
– Engole isso – indico a ele, e ele toma o remédio obedientemente. – Você deve estar faminto.
– Pra falar a verdade, não estou não. É engraçado. Faz vários dias que não sinto fome – diz Caio. E, de fato, quando lhe ofereço um pouco de ganso silvestre, ele torce o nariz e vira a cara. É nesse momento que percebo o quanto está doente.
– Caio, nós precisamos botar algum alimento na sua barriga – insisto.
– Eu vou vomitar tudo – responde ele. O máximo que consigo fazer é convencê-lo a comer alguns pedaços de maçã seca. – Obrigado. Estou bem melhor, é sério. Posso dormir agora, Luan?
– Logo, logo – prometo. – Primeiro preciso dar uma olhada em sua perna. – Tentando ser o mais delicado possível, removo suas botas, suas meias e então, muito lentamente, vou tirando sua calça. Consigo ver o rasgão que a espada de Cato produziu no tecido, na altura da coxa, mas isso de maneira alguma me prepara para o que se encontra embaixo. O talho profundo e inflamado que exsuda sangue e pus. O inchaço da perna. E, o pior de tudo, o cheiro de decomposição.
Quero sair correndo. Desaparecer na floresta como fiz no dia em que levaram aquele homem queimado lá para casa. Sair para caçar enquanto minha mãe e Ana cuidavam do que eu não tinha nem a habilidade nem a coragem para enfrentar. Mas não há ninguém aqui além de mim. Tento reproduzir a postura calma que minha mãe assume quando tem de lidar com casos particularmente difíceis.
– Bem feio, hein? – comenta Caio. Ele está me observando com atenção.
– Mais ou menos – digo, e dou de ombros para dar a impressão de que a coisa não é tão grave. – Você tinha de ver algumas pessoas que são trazidas das minas pra minha mãe cuidar. – Contenho-me para não revelar que normalmente dou o fora de casa sempre que ela está tratando de algo mais grave do que um resfriado. Imagine só, não gosto nem de ficar perto de pessoas tossindo. – A primeira coisa a fazer é limpar bem o ferimento.
Não tirei a roupa de baixo de Caio porque ela não está em mau estado e não quero puxá-la por cima da coxa inchada e... tudo bem, talvez imaginá-lo despido me deixe desconfortável. Esse é outro detalhe em relação à minha mãe e Ana. A nudez não tem nenhum efeito sobre elas, não as deixa nem um pouco constrangidas. Ironicamente, a essa altura dos Jogos, minha irmã mais nova seria de muito mais utilidade para Caio do que estou sendo. Enfio meu quadrado de plástico embaixo dele para que eu possa lavar o resto de seu corpo. Quanto mais água jogo sobre ele, pior fica a aparência do ferimento. O resto da parte inferior de seu corpo está em bom estado, apenas um ferrão e algumas pequenas queimaduras que trato com rapidez. Mas o talho na perna... o que raios posso fazer com aquilo?
– Por que a gente não deixa ele tomando um pouco de ar e depois... – Baixo o tom de voz.
– E depois você conserta tudo? – continua Caio. Ele parece estar quase sentindo pena de mim, como se soubesse o quanto estou perdido.
– É isso aí. Enquanto isso, você come isso aqui.
Coloco algumas peras secas em sua mão e volto para o riacho para lavar o que resta da sua roupa. Quando elas estão estendidas secando, examino o conteúdo do kit de primeiros socorros. É coisa bem básica. Curativos, comprimidos para febre, remédios para o estômago. Nada do calibre que necessito para tratar de Caio.
– Vamos ter que experimentar um pouco – admito. Sei que as folhas usadas no tratamento das ferroadas drenam a infecção, então começo por aí. Pressiono um punhado de folhas mastigadas no ferimento, e não demora para uma boa quantidade de pus começar a escorrer pela perna. Digo a mim mesmo que isto é um bom sinal e mordo com força o interior da bochecha porque meu café da manhã está ameaçando voltar por onde entrou.
– Luan? – chama Caio. Encontro seus olhos, ciente de que meu rosto deve estar com uma tonalidade esverdeada. Ele pronuncia as palavras sem emitir som. – Que tal aquele beijo?
Tenho um acesso de riso porque a coisa toda é tão repulsiva que mal consigo aguentar.
– Algum problema? – pergunta ele, um pouco ingênuo demais.
– Eu... eu não sou bom nisso. Não sou minha mãe. Não faço a menor ideia do que estou fazendo e odeio pus – digo. – Argh! – Permito-me exclamar, soltando um grunhido enquanto retiro a primeira leva de folhas e aplico a segunda. – Arghhhhh!
– Como é que você caça? – pergunta ele.
– Pode acreditar. Matar é bem mais fácil do que fazer isso. Apesar de que, pra todos os efeitos, é bem possível que eu esteja te matando também.
– Você pode se apressar um pouco?
– Não. Cala a boca e come essas peras.
Após três aplicações e o que deve ser um balde de pus, o ferimento parece realmente melhor. Agora que o inchaço reduziu, consigo ver o quanto foi profundo o corte da espada de Cato. Até o osso.
– E agora, dr. Alencar?
– Talvez eu coloque um pouco do unguento para queimaduras nele. Acho que deve ajudar na infecção, sei lá. Devo fazer um curativo, de repente? – sugiro. E assim faço, e a coisa toda parece bem mais apresentável coberta de algodão. Embora, em contraste com o curativo esterilizado, a bainha do short pareça imunda e repleta de bactérias contagiosas. Pego a mochila de Rue. – Aqui, cubra-se com isso que vou lavar seu short.
– Ah, não me importo de você me ver nu – comenta Caio.
– Você é exatamente como o resto da minha família... Eu me importo, certo? – Viro as costas e olho para o riacho, até que o short é jogado na água. Ele deve estar se sentindo um pouquinho melhor se está conseguindo arremessar as coisas assim.
– Pra uma pessoa tão letal, até que você é bem enjoadinho – diz Caio enquanto esfrego o short na rocha. – Gostaria de ter deixado você dar banho em Carlinhos, afinal de contas.
Enrugo o nariz com a lembrança.
– O que ele te mandou até agora?
– Nada – informa Caio. Então há uma pausa até ele se dar conta. – Por quê? Você recebeu alguma coisa?
– Remédio pra queimadura – respondo, quase acanhado. – Ah, e um pouco de pão.
– Sempre soube que você era o favorito dele.
– Dá um tempo, ele não suporta ficar na mesma sala que eu.
– Porque vocês dois são muito parecidos – sussurra Caio. Mas eu ignoro o comentário porque este não é realmente o momento para eu ficar insultando Carlinhos, que é a primeira coisa que me vem à cabeça.
Deixo Caio cochilar enquanto suas roupas secam, mas ao cair da tarde, não ouso mais esperar. Delicadamente, sacudo seu ombro.
– Caio, precisamos ir embora agora.
– Ir embora? – Ele parece confuso. – Pra onde?
– Pra longe daqui. Descer o riacho, talvez. Algum lugar em que a gente possa se esconder até que você se fortaleça. – Ajudo-o a se vestir, deixando-o descalço para que possamos caminhar na água, e o coloco de pé. Seu rosto fica pálido assim que ele joga o peso sobre a perna. – Vamos lá, você consegue.
Mas ele não consegue. Pelo menos, não por muito tempo. Andamos mais ou menos cinquenta metros rio abaixo com ele apoiado em meu ombro, e já dá para ver que vai desmaiar. Eu o sento na margem, com a cabeça acomodada entre os próprios joelhos, e dou tapinhas em suas costas enquanto avalio a área. É claro que eu adoraria transportá-lo para uma árvore, mas isso não vai acontecer. Mas poderia ser pior. Algumas rochas formam pequenas estruturas parecidas com cavernas. Avisto uma delas mais ou menos vinte metros acima do riacho. Quando Caio consegue se levantar, eu meio o guio, meio o carrego até a caverna. Para ser honesto, gostaria de encontrar um local melhor, mas esse aqui vai ter que servir porque meu aliado está ferido. Branco como uma folha de papel, arquejando e – apesar da temperatura estar apenas fresca – tremendo.
Cubro o chão da caverna com uma camada de agulhas de pinheiro, desenrolo meu saco de dormir e o encaixo dentro. Consigo fazê-lo ingerir alguns comprimidos e um pouco de água quando não está atento, mas ele se recusa a comer até mesmo a fruta. Então, simplesmente fica lá deitado, seus olhos fixos em meu rosto enquanto construo um tipo de persiana com galhos de vinha para esconder a entrada da caverna. O resultado é insatisfatório. Talvez um animal deixasse passar, mas uma pessoa veria num piscar de olhos que aquilo havia sido produzido por um ser humano. Destruo tudo, frustrado.
– Luan – chama ele. Vou até Caio e tiro o cabelo de seus olhos. – Obrigado por me encontrar.
– Você teria me encontrado se pudesse – digo. Sua testa está ficando mais quente. Como se o remédio não estivesse fazendo nenhum efeito. De repente, sem explicação, a perspectiva da morte iminente de Caio me aterroriza.
– Teria, sim. Olha, se eu não voltar... – começa ele.
– Não fale assim. Não drenei todo aquele pus à toa.
– Eu sei. Mas caso eu não... – Ele tenta continuar.
– Não, Caio. Nem quero discutir essa hipótese – interrompo-o, colocando meus dedos em seus lábios para tranquilizá-lo.
– Mas eu... – insiste ele.
Impulsivamente, inclino-me em sua direção e o beijo, cortando suas palavras. Já estava mais do que na hora, de todo modo, pois ele tem razão: supostamente, somos loucamente apaixonados um pelo outro. É a primeira vez que beijo um garoto, o que em si já deveria causar um impacto, acho eu, mas tudo o que consigo registrar é como seus lábios estão anormalmente quentes devido à febre. Afasto-me e puxo o saco de dormir para cobri-lo.
– Você não vai morrer. Eu proíbo. Certo?
– Certo – sussurra ele.
Saio da caverna para respirar um pouco do ar frio da noite no exato instante em que um paraquedas flutua no céu. Meus dedos desatam rapidamente o nó, na esperança de encontrar algum remédio para tratar a perna de Caio. Em vez disso, encontro um pote de caldo quente.
Carlinhos não podia estar me enviando uma mensagem mais clara. Um beijo equivale a um pote de caldo. Quase consigo escutá-lo rosnando: “Para todos os efeitos, vocês se amam, queridinho. O garoto está morrendo. Vê se adianta meu lado!”
E ele está certo. Se eu quero manter Caio vivo, tenho de despertar mais simpatia no público. Amantes desafortunados desesperados por voltar para casa. Dois corações batendo como um só. Romance.
Como nunca me apaixonei, a coisa vai ser um pouco complicada. Penso em meus pais. Em como meu pai jamais deixou de levar presentes da floresta para minha mãe. Em como o rosto de minha mãe se iluminava ao ouvir o som de suas botas no batente da porta. Em como ela quase parou de viver quando ele morreu.
– Caio! – chamo-o, tentando o tom especial que minha mãe costumava usar somente com meu pai. Ele cochilou novamente, mas beijo-o para acordá-lo, o que parece sobressaltá-lo. Então, ele sorri como se estivesse feliz com a perspectiva de ficar ali deitado olhando para mim eternamente. Ele é excelente nesse negócio de atuação.
Mostro o pote.
– Caio, olha só o que Carlinhos mandou pra você.

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