3° capítulo

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O cheiro de sangue... estava no hálito dele.
O que ele faz?, imagino. Será que ele o bebe? Eu o imagino tomando em uma xícara de chá. Mergulhando um biscoito em sangue e puxando-o embebido em vermelho.
Do lado de fora, um carro surge, suave e quieto como o ronronar de um gato, e depois some ao longe. O veículo desaparece da mesma forma que apareceu, sem ninguém notar.
Tenho a impressão de que a sala está girando em círculos lentos e assimétricos, e acho que vou desmaiar. Curvo-me para a frente e agarro a escrivaninha com uma das mãos. A outra ainda está segurando o lindo biscoito de Caio. Acho que havia um lírio-tigrino nele, mas agora tudo se reduz a farelos na minha mão. Eu nem sabia que estava esmagando o biscoito, mas imagino que tenha sido obrigado a me agarrar em alguma coisa enquanto o mundo dava voltas ao meu redor.
Uma visita do presidente Snow. Distritos à beira de levantes. Uma ameaça de morte direta a Gustavo, com outras a caminho. Todos que eu amo condenados. E quem sabe quem mais vai pagar pelas minhas ações? A menos que eu coloque a situação sob controle nessa turnê. Tranquilize o descontentamento e apazigue a mente do presidente Snow. Mas como? Provando ao país que amo Caio, sem deixar a menor sombra de dúvida.
Não posso fazer isso, penso. Não sou tão bom assim. Caio é a pessoa boa, aquele que todos gostam. Ele consegue fazer as pessoas acreditarem em qualquer coisa. Eu sou o que cala a boca e fica sentado deixando-o falar o máximo possível. Mas não é Caio quem precisa provar sua devoção. Sou eu.
Escuto os passos leves e rápidos de minha mãe no corredor. Ela não pode saber, penso. Sobre nada disso. Coloco as mãos em cima da bandeja e rapidamente limpo o farelo do biscoito que ficou nos dedos. Dou um gole no chá com as mãos trêmulas.
– Está tudo bem, Luan? – pergunta ela.
– Tudo bem. A gente nunca vê isso na televisão, mas o presidente sempre visita os vitoriosos antes da turnê para desejar boa sorte a eles – digo com entusiasmo.
O rosto de minha mãe fica inundado de alívio.
– Ah, pensei que fosse algum problema.
– Não, nada disso – digo. – O problema vai começar quando minha equipe de preparação descobrir que negligenciei o retoque das sobrancelhas. – Minha mãe ri, e penso em como passou a ser impossível deixar de cuidar da família depois que assumi essa função com a idade de onze anos. E em como sempre terei que proteger a minha mãe.
– Posso começar a preparar o seu banho? – pergunta ela.
– Ótima ideia – digo, e posso perceber como ela fica satisfeita com minha resposta.
Desde que voltei para casa, tenho tentado com afinco melhorar o relacionamento com minha mãe. Pedir que ela faça coisas para mim em vez de dispensar qualquer oferta de ajuda, como fiz durante anos por pura raiva. Deixar que cuide de todo o dinheiro que recebo. Retribuir os abraços dela em vez de simplesmente tolerá-los. O período que passei na arena fez com que me desse conta do quanto precisava parar de puni-la por algo que ela não tinha como evitar. Especificamente, a devastadora depressão na qual ela caiu depois da morte de meu pai. Porque, às vezes, acontecem coisas com as pessoas com as quais elas não estão preparadas para lidar.
Como é o meu caso, por exemplo. Neste exato momento.
Além do mais, ela fez uma coisa maravilhosa quando voltei para o distrito. Depois que nossas famílias e amigos cumprimentaram a mim e a Caio na estação de trem, foram permitidas algumas perguntas dos repórteres. Alguém perguntou a minha mãe o que pensava de meu novo namorado e ela respondeu que, apesar de Caio ser o modelo perfeito do que um jovem deveria ser, eu não estava suficientemente maduro para ter nenhum namorado. Ela afirmou isso olhando fixamente para Caio. Houve muito riso e comentários do tipo: “Tem alguém aí em perigo” da parte da imprensa, e Caio soltou a minha mão e se afastou um pouco de mim. Isso não durou muito tempo – havia muita pressão para que nosso comportamento fosse o oposto –, mas nos deu uma desculpa para sermos um pouco mais reservados do que havíamos sido na Capital. E talvez essa tenha sido a razão por eu ter sido vista tão poucas vezes na companhia de Caio depois que as câmeras foram embora.
Subo a escada em direção ao banheiro, onde uma banheira fumegante me espera. Minha mãe colocou um saquinho de flores secas que perfuma o ar. Nenhuma das duas está acostumada ao luxo de girar uma torneira e ter uma quantidade ilimitada de água quente ao nosso dispor. Nós tínhamos apenas água fria em nossa casa na Costura, e um banho significava ter de esquentar no fogo o que sobrava de água. Tiro a roupa e mergulho na água sedosa – minha mãe providenciou também uma espécie de óleo – e tento entender o que está acontecendo.
A primeira questão é a quem contar, se é que devo contar a alguém. Não para minha mãe e nem para Ana, obviamente; elas ficariam desesperadas de preocupação. Não para Gustavo. Mesmo que eu conseguisse falar com ele. O que ele faria com a informação, de qualquer maneira? Se ele estivesse sozinho, talvez tentasse persuadi-lo a fugir. Certamente teria condições de sobreviver na floresta. Mas ele não está sozinho e jamais abandonaria a família. Ou a mim. Quando chegar em casa, terei de explicar a ele por que os nossos domingos passarão a ser uma coisa do passado, mas não consigo pensar nisso agora. Só consigo pensar em meu próximo passo. Além do mais, Gustavo já está tão irritado e frustrado com a Capital que às vezes penso que ele vai fazer seu próprio levante. A última coisa que ele precisa é de um incentivo. Não, não posso contar para nenhuma das pessoas que deixarei aqui no Distrito 12.
Ainda existem três pessoas em quem talvez possa confiar, a começar por Cinna, meu estilista. Mas meu palpite é de que talvez Cinna já esteja correndo risco, e não quero aumentar ainda mais os seus problemas ligando-o a mim. Então sobra Caio que vai ser meu parceiro nessa enganação, mas como começar essa conversa? E aí, Caio, lembra quando eu disse que estava meio que fingindo estar apaixonado por você? Bom, preciso realmente que você esqueça isso por enquanto e se comporte como se estivesse duplamente apaixonado por mim ou então o presidente Snow pode acabar matando Gustavo. Não posso fazer uma coisa dessas. Além do mais, Caio vai ter um bom desempenho sabendo ou não o que está em jogo. Com isso sobra apenas Carlinhos. O bêbado, mal-humorado e hostil Carlinhos, em quem acabei de despejar uma bacia de água gelada. Como meu mentor nos Jogos, sua tarefa era me manter vivo. Só espero que ele ainda esteja apto para a função.
Mergulho a cabeça na água, bloqueando todos os sons ao meu redor. Gostaria muito que a banheira ficasse bem grande para que eu pudesse sair nadando como costumava fazer nos domingos de verão quando ia à floresta com meu pai. Aqueles dias significavam um prazer especial. Nós saíamos de manhã bem cedinho e penetrávamos na floresta mais do que o habitual para chegar a um pequeno lago que ele havia encontrado enquanto caçava. Nem lembro de ter aprendido a nadar, já que ele me ensinou quando eu era bem pequeno. Só lembro de mergulhar, de dar saltos mortais e de ficar nadando de um lado para o outro. O leito lamacento do lago embaixo dos meus pés. O cheiro das flores e das plantas. Boiar, como estou fazendo agora, mirando o céu azul enquanto o barulho da floresta era abafado pela água. Ele ensacava os patos que faziam seus ninhos na margem, caçava ovos na grama e nós dois cavávamos bem fundo à procura de raízes. De noite, quando chegávamos em casa, minha mãe fingia não me reconhecer porque eu estava limpa demais. Então ela preparava um jantar fantástico com pato grelhado e tubérculos de raízes assados com molho.
Nunca levei Gustavo ao lago. Poderia ter levado. Demora muito para se chegar lá, mas os patos são tão fáceis de capturar que dá para compensar o tempo que se perde de caçada. Mas é um local que eu nunca quis realmente compartilhar com ninguém, um local que pertencia apenas a meu pai e a mim. Desde o fim dos Jogos, quando passei a ter poucas coisas com as quais me ocupar, estive lá algumas vezes. Nadar continua sendo uma coisa prazerosa, mas na maioria das vezes a visita me deixava deprimido. Ao longo dos últimos cinco anos, o lago permaneceu inacreditavelmente intocado, ao passo que eu estou quase irreconhecível.
Mesmo debaixo d’água, consigo ouvir os sons agitados. Buzinas de carros, gritos de saudação, portas batendo. Isso só pode significar que a minha equipe de preparação chegou. Só tenho tempo para me enxugar e entrar num robe antes que a equipe invada o banheiro. A noção de privacidade não existe. Em relação a meu corpo, nós não temos segredos, essas três pessoas e eu.
– Luan, suas sobrancelhas! – Venia dá um grito, e mesmo com a nuvem escura de preocupação pairando sobre mim, sou obrigado a conter o riso. Seus cabelos azulados foram estilizados de modo a ficarem pontudos em toda a cabeça, e as tatuagens douradas que antes se concentravam acima de suas sobrancelhas agora também contornam os olhos, contribuindo para a expressão de choque que produzi nela.
Octavia aparece e dá um tapinha tranquilizador nas costas de Venia, seu corpo cheio de curvas parecendo ainda mais roliço do que de costume ao lado do corpo angular e magro de Venia.
– Calma, calma. Você pode ajeitar isso em dois segundos. Mas o que é que eu vou fazer com essas unhas? – Ela agarra a minha mão e a coloca bem aberta entre suas mãos cor de ervilha. Não, a pele dela não está exatamente da cor de ervilha. O verdinho é mais suave. A mudança de tom é, sem sombra de dúvida, uma tentativa de acompanhar as volúveis tendências de moda da Capital. – Com toda a sinceridade, Luan, você podia ter deixado alguma coisa onde eu pudesse fazer o meu trabalho! – choraminga ela.
É verdade. Roí as unhas até a raiz nos últimos meses. Pensei na possibilidade de me livrar do vício, mas não consegui encontrar um bom motivo para isso.
– Desculpa – murmuro baixinho. De fato, não tenho passado muito tempo me preocupando em saber como isso pode afetar a minha equipe de preparação.
Flavius levanta alguns fios dos meus cabelos molhados. Sacode a cabeça como quem está desaprovando o que vê, o que faz com que seus cachinhos alaranjados balancem para todos os lados.
– Alguém tocou nisso aqui desde a última vez em que você esteve com a gente? – pergunta ele seriamente. – Você lembra que a gente pediu especificamente para você não mexer nos cabelos?
– Lembro! – respondo, grato por poder mostrar que não havia me esquecido totalmente deles. – Quer dizer, não, ninguém os cortou, não. Lembro disso. – Não, eu não me lembrava. É como se o assunto jamais houvesse sido mencionado. Desde que voltei para casa, tudo o que tenho feito é mantê-los com minha tradicional franja que agora insiste em cair nos meus olhos.
Isso parece acalmá-los um pouco, e todos eles me beijam, me colocam numa cadeira e, como de costume, começam a falar sem parar e sem se preocupar em notar se estou escutando ou não. Enquanto Venia reinventa as minhas sobrancelhas e Octavia me aplica unhas falsas e Flavius faz uma massagem com creme em meus cabelos, ouço tudo sobre a Capital. Que sucesso foram os Jogos, como as coisas têm sido chatas desde então, como todos estão esperando ansiosamente a próxima visita minha e de Caio ao término da Turnê da Vitória. Depois disso, não vai demorar muito até que a Capital comece a se preparar para o Massacre Quaternário.
– Não é emocionante?
– Você não está se achando a pessoa mais sortuda do mundo?
– No seu primeiro ano como vitorioso já vai ser o mentor num Massacre Quaternário!
As palavras deles se atropelam em um borrão de empolgação.
– Ah, sim – digo com neutralidade. É o melhor que consigo fazer. Num ano normal, ser mentor dos tributos é um verdadeiro pesadelo. Não posso mais passar pela escola sem imaginar que crianças terei de treinar. Mas, para piorar ainda mais as coisas, este ano se realiza a septuagésima quinta edição dos Jogos Vorazes, e isso significa que também é o ano do Massacre Quaternário. Ele ocorre a cada vinte e cinco anos, marcando o aniversário da derrota dos distritos com comemorações de alto nível e, para garantir uma diversão extra, algumas mudanças terríveis para os tributos. É claro que essa é a primeira vez que testemunho um desses eventos. Mas, na escola, lembro de ouvir que no segundo Massacre Quaternário a Capital exigiu que fossem levados para a arenas o dobro do número de tributos. Os professores não entraram em muitos detalhes, o que é surpreendente, porque esse foi o ano em que o Distrito 12 recebeu sua coroa com o representante Carlinhos maia.
– É melhor que carlinhos esteja se preparando para receber muita atenção! – grita Octavia.
Carlinhos jamais conversou comigo sobre sua experiência pessoal na arena. Eu jamais perguntaria. E se alguma vez vi os Jogos dele reprisados na televisão, devia ser muito novo para me lembrar. Mas a Capital não vai permitir que ele se esqueça desse ano. De certa forma, é uma boa coisa Caio e eu estarmos disponíveis como mentores durante o Massacre, porque não restam dúvidas de que Carlinhos estará arrasado.
Depois de exaurirem o tópico do Massacre Quaternário, minha equipe de preparação desanda a falar sobre vários outros assuntos referentes a suas vidas inconcebivelmente fúteis. Quem disse o que sobre alguém de quem nunca ouvi falar, e que tipo de sapatos eles acabaram de comprar, e uma longa história de Octavia sobre o tremendo erro que foi mandar todo mundo usar penas na festa de aniversário dela.
Logo as minhas sobrancelhas começam a pinicar, meu cabelo fica sedoso e macio, e minhas unhas estão prontas para serem pintadas. Aparentemente, eles receberam instruções para preparar apenas as minhas mãos e o meu rosto, provavelmente porque tudo o mais ficará coberto por conta do clima frio. Flavius quer muito usar em mim o batom púrpura que é sua marca registrada pessoal, mas se contenta em usar o rosa assim que eles começam a pintar o meu rosto e as minhas unhas. Consigo ver pelas cores que Cinna escolheu que estamos fazendo uma produção estilo garotinho, não uma coisa mais sexy. Bom. Nunca vou convencer ninguém de coisa alguma se tentar bancar o provocante. Carlinhos deixou isso muito claro quando me treinava para a entrevista que antecede os Jogos.
Minha mãe entra, um pouco tímida, e diz que Cinna pediu para ela mostrar à equipe de preparação como havia feito o meu penteado no dia da colheita. Eles ficam entusiasmados e então observam, absolutamente atentos, ela destrinchar o processo do penteado e da franja. No espelho, vejo suas caras sérias seguindo todos os passos, a ansiedade de todos quando chega a vez de eles tentarem realizar o passo. Na realidade, os três são tão prontamente respeitosos e simpáticos com minha mãe que me sinto mal pelo ar de superioridade que às vezes tenho com eles. Quem sabe quem seria eu ou sobre o que falaria se tivesse sido criada na Capital? Talvez também acabasse me lamentando por algo como trajes de pena na minha festa de aniversário.
Quando meus cabelos ficam prontos, encontro Cinna na sala do andar de baixo, e só de olhar para ele sinto uma esperança renovada. Sua aparência é a de sempre, roupas simples, cabelos castanhos cortados bem curtos e apenas um leve toque de delineador dourado nos olhos. Nós nos abraçamos, e sinto uma enorme vontade de cuspir todo o episódio com o presidente Snow. Mas não, decidi contar primeiro para Carlinhos. Ele vai saber melhor quais são as pessoas que podem aguentar esse rojão. Mas é tão fácil conversar com Cinna. Ultimamente, nós temos conversado muito pelo telefone que veio instalado na casa. É meio que uma piada, porque mais ninguém que a gente conhece usa um. Tem o Caio, mas obviamente não ligo para ele. Carlinhos arrebentou o dele na parede anos atrás. Minha amiga belle, a filha do prefeito, tem um telefone em sua casa, mas se nós queremos conversar, fazemos pessoalmente. No início, o aparelho quase nunca era usado. Aí Cinna começou a me ligar para aprimorar o meu talento.
Todos os vitoriosos devem possuir um. Seu talento é a atividade que você assume, já que não precisa trabalhar nem na escola, nem na atividade industrial de seu distrito. Pode ser qualquer coisa, na verdade, qualquer coisa a respeito da qual eles possam fazer entrevistas com você. Caio, para todos os efeitos, possui um talento, que é a pintura. Ele tem decorado bolos há anos na padaria de sua família. Mas agora que é rico, pode se dar o luxo de manchar telas de verdade com sua tinta. Não possuo nenhum talento, a menos que você leve em consideração a caça ilegal, e eles não levam. Ou, quem sabe, cantar, coisa que eu não faria para a Capital nem em um milhão de anos. Minha mãe tentou fazer com que eu me interessasse por uma variedade de alternativas cabíveis de uma lista que Lucas Guimarães enviara a ela. Culinária, arranjos florais, tocar flauta. Nenhuma delas deu certo, embora Ana tivesse queda pelas três. Finalmente, Cinna entrou em cena e se ofereceu para me ajudar a desenvolver a paixão que eu tinha por design de roupas, o que requeria de fato certa habilidade, já que era algo completamente inédito. Mas só concordei porque isso significava poder estar em contato com Cinna, e porque ele prometeu que faria todo o trabalho.
Agora ele está arrumando várias coisas na minha sala: roupas, tecidos e cadernos com desenhos feitos por ele. Pego um dos cadernos e examino um vestido supostamente criado por mim.
– Quer saber, acho até que eu prometo – digo.
– Vista-se, coisinha sem talento – diz ele, jogando vários itens de roupa na minha direção.
Posso não ter nenhum interesse por design de roupas, mas amo as produções que Cinna faz para mim. Como estas. Calças com um caimento perfeito feitas de um material grosso e macio. Uma camisa branca confortável. Um suéter tecido com fios de lã macios verdes, azuis e cinzentos. Botas de couro com cadarço que não pinicam os meus dedos.
– Eu mesmo criei o meu traje? – pergunto.
– Não, você espera um dia criar seus trajes e ser como eu, seu herói da moda – diz Cinna. Ele me entrega uma pequena pilha de cartões.
– Você vai ler isso aqui para as câmeras enquanto estiverem filmando as roupas. Tente parecer interessado.
Só então Lucas chega com uma peruca cor de abóbora para lembrar a todos:
– Estamos seguindo o cronograma a contento! – Ele me beija nos dois lados do rosto enquanto acena para a equipe de filmagem, e então me pede para ficar em posição. Lucas é a única razão pela qual chegamos pontualmente a qualquer compromisso na Capital, portanto tento seguir suas orientações. Começo a zanzar de um lado para o outro como se fosse uma marionete, segurando roupas e dizendo coisas sem sentido como: “Isso não é o máximo?” A equipe de som grava a leitura que faço dos cartões com uma voz entusiasmada, para inseri-la mais tarde na edição final. Em seguida, sou tirado da sala para que possam filmar em paz as criações feitas por mim/por Cinna.
Ana chegou cedo da escola para o evento. Agora ela está na cozinha sendo entrevistada por outra equipe. Está linda num vestidinho azul-celeste que ressalta seus olhos, seus cabelos louros presos com uma fitinha na mesma cor. Ela está um pouco curvada para a frente nas botas branquíssimas, como se estivesse a ponto de alçar voo.
Bum! É como se alguém tivesse me dado um soco de verdade no peito. Ninguém fez isso, é claro, mas a dor é tão real que dou um passo para trás. Aperto os olhos e não enxergo Ana – enxergo Rue, a garota de doze anos do Distrito 11 que foi minha aliada na arena. Ela voava como um pássaro, de árvore em árvore, agarrando-se nos galhos mais finos. Rue, que não consegui salvar. Que deixei morrer. Eu a visualizo deitada no chão com a lança ainda cravada no estômago...
Quem mais vou deixar de salvar da vingança da Capital? Quem mais vai ser morto se eu não fizer o que o presidente Snow deseja?
Percebo que Cinna está tentando me vestir com um casaco, então levanto os braços. Sinto o contato com a pele, dentro e fora, encaixando-se contra o meu corpo. Não é de nenhum animal que eu tenha visto antes.
– Arminho – diz ele enquanto toco a manga branca. Luvas de couro. Um cachecol vermelho-vivo. Alguma coisa peluda cobre minhas orelhas. – Você está trazendo os protetores de orelha de volta à moda.
Odeio protetores de orelha, penso. Eles dificultam a audição e, desde que fiquei quase surdo de um ouvido devido a uma explosão na arena, gosto menos ainda deles. Depois que venci, a Capital tratou o meu ouvido, mas ainda continuo testando minha capacidade de audição.
Minha mãe chega correndo com alguma coisa na mão.
– Para dar sorte – diz.
É o broche que Belle me presenteou antes de eu ir para os Jogos. Um tordo voando num círculo de ouro. Tentei dá-lo para Rue, mas ela nunca aceitou. Rue dizia que o broche era o motivo pelo qual ela tinha decidido confiar em mim. Cinna o prende no nó do cachecol.
Lucas está por perto, batendo palmas.
– Atenção, pessoal! Vamos fazer nossa primeira tomada externa, onde os vitoriosos cumprimentam uns aos outros no começo de sua maravilhosa viagem. Muito bem, Luan, dê um sorrisão, você está superentusiasmado, certo? – E não exagero quando digo que ele me empurra porta afora.
Por um instante, não consigo enxergar direito por causa da neve, que agora está caindo intensamente. Então, consigo distinguir Caio saindo pela porta de sua casa. Na minha cabeça, escuto a ordem do presidente Snow: “Convença a mim.” E sei que é exatamente isso o que tenho de fazer.
Meu rosto se abre num imenso sorriso quando caminho na direção de Caio. Então, como se não conseguisse suportar mais um segundo sequer longe dele, começo a correr. Ele me pega e gira o meu corpo no ar e então escorrega – ele ainda não está totalmente acostumado com sua perna artificial – e nós dois caímos na neve, eu por cima dele, e é lá que nos beijamos pela primeira vez em meses. É um beijo cheio de pelo, flocos de neve e batom, mas por baixo de todas essas coisas, sinto a firmeza que Caio sempre proporciona a tudo. E sei que não estou só. Por mais que o tenha magoado, ele não vai me expor na frente das câmeras. Não vai me condenar com um beijo chocho. Ele ainda está cuidando de mim. Exatamente como fazia na arena. De alguma maneira, esse pensamento me dá vontade de chorar. Em vez disso, eu o ajudo a se levantar, encaixo o meu braço no dele e saímos os dois a caminhar alegremente.
O resto do dia é um borrão na memória: chegar na estação, se despedir de todo mundo, o trem partindo, a velha equipe – Caio e eu; Lucas e Carlinhos; Cinna e Portia, a estilista de Caio – desfrutando de um jantar indescritivelmente delicioso que não consigo me lembrar como era. E então estou vestindo um pijama e um robe muito largo, sentado em meu elegantíssimo compartimento, esperando os outros dormirem. Sei que Carlinhos vai ficar acordado por horas e horas. Ele não gosta de dormir quando está escuro.
Quando o trem parece estar quieto, calço a pantufa e vou até o compartimento dele. Preciso bater diversas vezes até ele atender, resmungando, como se tivesse certeza que eu estava trazendo más notícias.
– O que você quer? – diz ele, quase me derrubando com o hálito carregado de vinho.
– Preciso falar com você – sussurro.
– Agora? – diz. E balanço a cabeça em concordância. – É melhor que seja algo bom. – Ele espera, mas tenho certeza de que qualquer palavra proferida por nós em algum trem da Capital está sendo registrada. – E aí?
O trem começa a frear. Por um segundo acho que é o presidente Snow me observando e que, não aprovando o fato de eu estar confiando a informação a Carlinhos, tinha decidido me matar agora mesmo. Mas estamos apenas parando para abastecer.
– O trem está abafado demais – digo.
É uma frase totalmente inofensiva, mas vejo os olhos de Carlinhos se estreitarem assim que entende a situação.
– Sei do que você precisa. – Ele passa bruscamente por mim e desce o corredor às pressas em direção a uma porta. Quando a abre, depois de um certo esforço, uma rajada de neve nos atinge. Ele salta para o chão.
Um atendente da Capital vem correndo ajudar, mas Carlinhos o dispensa educadamente enquanto continua cambaleando na neve.
– Só quero um pouco de ar fresco. É só um minutinho.
– Desculpe. Ele está bêbado – digo. – Vou buscá-lo. – Salto e sigo desajeitadamente atrás dele ao longo da trilha, ensopando minha pantufa de neve, enquanto ele me conduz além do último vagão para não sermos ouvidos. Em seguida, ele se volta para mim.
– O que é?
Conto tudo a ele. Sobre a visita do presidente Snow, sobre Gustavo, sobre como nós todos vamos morrer caso eu fracasse.
Seu rosto fica sóbrio, adquire um aspecto mais maduro à luz vermelha dos faróis traseiros.
– Então você não pode fracassar.
– Se você pudesse me ajudar a transformar essa viagem num sucesso... – começo.
– Não, Luan, não é só a viagem – diz ele.
– Como assim? – digo.
– Mesmo que essa viagem seja um sucesso, eles vão voltar daqui a alguns meses para nos levar pros Jogos. Você e Caio serão mentores agora, todos os anos daqui para a frente. E a cada ano eles vão relembrar o romance e transmitir os detalhes de sua vida privada, e você jamais, em hipótese alguma, será capaz de fazer qualquer outra coisa além de viver feliz para sempre com aquele garoto.
Todo o impacto do que ele está dizendo me atinge em cheio. Jamais terei uma vida com Gustavo, mesmo que eu queira. Jamais terei permissão para viver sozinho. Terei de estar eternamente apaixonado por Caio. A Capital exigirá isso. Como ainda tenho dezesseis anos, ainda poderei ficar com minha mãe e com Ana por algum tempo. Mas depois... Mas depois...
– Você compreende o que eu estou dizendo? – ele insiste.
Balanço a cabeça afirmativamente. Ele quer dizer que só há um futuro possível, se eu quiser manter aqueles que amo vivos e permanecer vivo. Terei de me casar com Caio.

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Oi gente, desculpa a demora eu estava simplesmente sendo jovem e inconsequente, viajando pra lugares insalubres, bebendo coisas de procedência duvidosas e indo trabalhar virada (eu poderia dizer que não recomendo, but...), vou voltar a atualizar vocês xuxus  *-*

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