4° capítulo

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Por alguns instantes, Caio e eu observamos o nosso mentor enquanto ele tenta se afastar do repugnante material pegajoso que tinha saído de seu estômago. O fedor de vômito e de bebida barata quase faz com que eu vomite meu jantar. Trocamos olhares. Obviamente Carlinhos não é lá essas coisas, mas o Lucas Guimarães tem razão a respeito de um ponto. Uma vez que estejamos dentro daquela arena, ele será nossa única referência. Seguindo uma espécie de acordo mudo, Caio e eu pegamos os braços de Carlinhos e o ajudamos a se erguer.
– Eu tropecei? – ele pergunta. – Cheiro ruim. – Ele esfrega a mão no nariz, sujando todo o rosto.
– Vamos levá-lo para seu quarto – diz Caio. – Precisamos limpá-lo um pouco.
Nós meio conduzimos, meio carregamos Carlinhos de volta a seu compartimento. Como não podemos exatamente colocá-lo sobre a colcha bordada, nós o içamos até a banheira e abrimos o chuveiro em cima dele. Ele quase não nota.
– Está bom assim – diz Caio. – Eu assumo de agora em diante.
Mal posso evitar uma sensação de gratidão, já que a última coisa que desejo fazer é remover a roupa de Carlinhos, retirar o vômito dos pelos de seu peito e levá-lo para a cama. Possivelmente, Caio está tentando causar uma boa impressão nele para ser seu favorito quando os Jogos começarem. Mas a julgar pelo estado em que se encontra, Carlinhos não se lembrará de nada disso amanhã.
– Tudo bem – digo. – Posso mandar alguém da Capital vir te ajudar. – Há muitos deles no trem. Cozinhando para nós, nos vigiando. O trabalho deles é cuidar da gente.
– Não. Eu não quero eles aqui – diz Caio.
Balanço a cabeça em concordância e vou para minha sala. Entendo o que Caio está sentindo. Eu também não consigo suportar a visão do pessoal da Capital. Mas obrigá-los a cuidar de Carlinhos poderia funcionar como uma boa vingança. O que me faz imaginar o motivo pelo qual ele insiste em tomar conta de Carlinhos. Então, subitamente, me ocorre o seguinte pensamento: É porque ele está sendo gentil. Da mesma forma que foi gentil em me dar aqueles pães.
A ideia me deixa um pouco paralisada. Um Caio Iris gentil é muito mais perigoso para mim do que o contrário. Pessoas gentis conseguem se instalar dentro de mim e criar raízes. E não posso permitir que Caio faça isso. Não posso deixar que ele chegue lá. Então, decido que, de agora em diante, terei o mínimo de contato possível com o filho do padeiro.
Quando volto ao meu compartimento, o trem está parando numa plataforma para abastecer. Rapidamente, abro a janela, jogo fora os biscoitos que o pai de Caio me deu e a fecho de volta com força. Chega. Chega desses dois.
Infelizmente, o pacote de biscoito atinge o chão e se abre sobre um arbusto de dentes-de-leão. Só consigo ver a imagem por um instante porque o trem volta a andar. Mas foi o suficiente. O suficiente para me fazer lembrar do dente-de-leão no pátio da escola anos atrás...
Eu havia acabado de desviar o olhar do rosto cheio de hematomas de Caio quando vi o dente-de-leão e tive a certeza de que a esperança não havia se perdido completamente. Eu o colhi cuidadosamente e corri para casa. Peguei um balde e a mão de Ana e me dirigi à Campina. E, é verdade, ela estava toda coberta de ervas douradas. Depois de colhê-las, nos acotovelamos ao longo da cerca por mais de um quilômetro até enchermos o balde com folhas, caules e flores de dentes-de-leão. Naquela noite, nós nos empanturramos com salada de dente-de-leão e com o que restara do pão.
– E agora? – perguntou Ana. – Que outra comida podemos encontrar?
– Todo tipo de coisa – prometi a ela. – Só preciso me lembrar do quê.
Minha mãe tinha um livro que trouxera do boticário. As páginas eram de pergaminho bem antigo e cobertas de desenhos de plantas feitos a nanquim. Uma caligrafia caprichada indicava os nomes delas, o local em que poderíamos colhê-las, onde elas floresciam e suas utilidades medicinais. Mas meu pai acrescentou outros itens ao livro. Plantas comestíveis, não curativas. Dentes-de-leão, erva-dos-cancros, cebolas selvagens, pinheiros. Ana e eu passamos o resto da noite debruçadas sobre aquelas páginas.
No dia seguinte, não tínhamos aula. Zanzei um pouco pela Campina, e por fim arrumei coragem para passar por baixo da cerca. Era a primeira vez que eu ia lá sozinho, sem as armas de meu pai pra me proteger. Mas recuperei o pequeno arco e as flechas que ele fizera para mim e que estavam guardados no oco da árvore. Provavelmente não adentrei mais do que vinte quilômetros na floresta aquele dia. Na maioria das vezes, fiquei empoleirado nos galhos de um velho carvalho esperando que alguma caça aparecesse. Depois de várias horas, tive a sorte de matar um coelho. Eu já havia atirado em alguns coelhos antes, com a orientação de meu pai. Mas aquele eu matara sozinho.
Não comíamos carne havia meses. A visão do coelho pareceu animar minha mãe. Ela deixou a apatia de lado, tirou a pele do animal e preparou um cozido com a carne e alguns vegetais que Ana havia colhido. Em seguida, ela teve uma reação meio confusa e voltou para a cama, mas quando a comida ficou pronta, nós a convencemos a comer um pouco.
A floresta se tornou nossa salvadora, e a cada dia eu me aventurava mais em seus domínios. A princípio, a coisa caminhava lentamente, mas eu estava determinado a alimentar minha família. Roubava ovos dos ninhos, pegava peixes com rede, às vezes conseguia atirar em um esquilo ou coelho para fazer um cozido, e colhia as diversas plantas que cresciam embaixo de meus pés. Plantas são ardilosas. Muitas delas são comestíveis, mas basta pôr a boca na planta errada e você está morto. Eu comparava várias vezes as plantas que colhia aos desenhos de meu pai. Eu mantinha nossa família viva.
Qualquer sinal de perigo, um uivo distante, um galho inexplicavelmente se partindo, e eu voava imediatamente de volta para a cerca. Então, comecei a me arriscar, subindo nas árvores para fugir dos cães selvagens que rapidamente ficavam entediados e iam embora. Ursos e pumas viviam mais no interior da floresta, talvez por não gostarem do fedor de fuligem de nosso distrito.
No dia 8 de maio, fui até o Edifício da Justiça, fiz a inscrição para as tésseras e levei para casa meu primeiro suprimento de grãos e óleo na carroça de brinquedo de Ana. No oitavo dia de cada mês eu tinha direito a repetir o mesmo processo. É evidente que eu não tinha condições de parar de caçar e de colher as plantas. Não tínhamos como sobreviver apenas com os grãos, e necessitávamos de outros itens, como sabão, leite e linha. O que conseguíamos passar sem comer eu vendia no Prego. Era assustador entrar naquele lugar sem meu pai ao meu lado, mas as pessoas sempre o respeitaram, portanto, fui aceito por todos. Afinal, caça era caça, independente de quem houvesse atirado. Eu também vendia na porta dos fundos dos clientes mais ricos da cidade, tentando lembrar o que meu pai havia me dito e também aprendendo outros truques depois. O açougueiro comprava meus coelhos, mas não os esquilos. O padeiro gostava de esquilos, mas só comprava algum se sua mulher não estivesse por perto. O chefe dos Pacificadores adorava peru selvagem. O prefeito tinha paixão por morangos.
No alto verão, eu estava me lavando em um laguinho quando reparei nas plantas ao meu redor. Altas e com folhas que mais pareciam pontas de flechas. Florações com três pétalas brancas. Eu me ajoelhei na água, meus dedos mergulhando bem fundo na lama macia, e arranquei um punhado de raízes. Pequenos tubérculos azulados que não tinham a melhor das aparências, mas que cozidos ou assados eram tão gostosos quanto qualquer batata. “Lua”, eu disse em voz alta. Era a planta que havia inspirado meu nome. E ouvi a voz de meu pai fazendo uma piada: “Enquanto você conseguir se achar, nunca vai passar fome.” Passei horas remexendo o leito do laguinho com meus dedos e um pedaço de pau, arrancando as raízes que flutuavam até o topo. Naquela noite, pela primeira vez em meses, fizemos um banquete de peixe e raízes de "Lua" até que ficamos todos satisfeitos.
Lentamente, minha mãe foi voltando ao nosso convívio. Ela começou a limpar, a cozinhar e a guardar um pouco da comida que eu trazia para o inverno. As pessoas nos davam coisas em troca ou nos pagavam pelos remédios que ela fornecia. Em uma ocasião eu a ouvi cantando.
Ana ficou encantada por tê-la de volta, mas eu continuava prestando atenção, esperando que ela novamente nos abandonasse. Não confiava nela. E, em algum lugar sombrio dentro de mim, eu a odiava por sua fraqueza, por sua negligência, pelos meses que ela nos obrigara a suportar. Ana a perdoara, mas eu já dera um passo atrás em relação à minha mãe, erguera um muro para me proteger da necessidade que tinha dela, e tudo entre nós dois passou a ser diferente desde então.
E agora estou prestes a morrer sem que esse problema tenha sido resolvido. Pensei em como havia berrado com ela no Edifício da Justiça. Mas eu também havia dito a ela que a amava. Então, talvez tudo tenha se equilibrado de uma maneira ou de outra.
Por um instante, fico parado olhando através da janela do trem, desejando poder abri-la novamente, mas sem ter certeza do que poderia acontecer a uma velocidade dessas. Ao longe, vejo as luzes de outro distrito. O 7? O 10? Não sei. Penso nas pessoas em suas casas, se encaminhando para suas camas. Imagino minha casa, com suas persianas cerradas. O que estariam fazendo a uma hora dessas minha mãe e minha irmã? Será que conseguiram comer a ceia? O cozido de peixe e os morangos? Ou será que eles ficaram intocados em seus pratos? Será que assistiram à reprise dos eventos do dia na velha e acabada televisão que fica na mesa encostada na parede? Certamente mais lágrimas se seguiram. Será que minha mãe está conseguindo se controlar, será que está conseguindo se manter forte para Ana? Ou será que já começou a tirar o corpo fora, deixando o peso do mundo sobre os frágeis ombros de minha irmã?
Ana com certeza dormirá essa noite com minha mãe. A imagem do velho e desprezível Buttercup se postando na cama para tomar conta de Ana me conforta. Se ela chorar, ele encostará o focinho em seus braços e se enroscará ali até que ela se acalme e caia no sono. Estou muito contente por não tê-lo afogado.
Imaginar minha casa me faz sofrer de solidão. O dia de hoje foi interminável. Será que Gustavo e eu comemos mesmo aquelas amoras pela manhã? Parece que isso aconteceu há uma eternidade. Como se fosse um longo sonho que vai piorando até se transformar em um pesadelo. Talvez, se eu dormisse, quem sabe eu não acordasse no Distrito 12, que é o meu lugar.
Provavelmente as gavetas contêm uma boa quantidade de pijamas, mas apenas tiro a camisa e as calças e pulo na cama com a roupa de baixo. As cobertas são feitas de um tecido sedoso e macio. O colchão fofo e espesso garante um conforto imediato.
Se eu tiver de chorar, agora é o momento para isso. De manhã já terei sido capaz de enxugar os estragos causados pelas lágrimas em meu rosto. Mas não há nenhuma lágrima. Estou cansado ou entorpecido demais para chorar. A única coisa que sinto é um desejo de estar em qualquer outro lugar. Então, deixo o trem me embalar até o esquecimento.
Uma luz cinzenta está vazando pelas cortinas quando a batida me desperta. Ouço a voz de Lucas Guimarães me mandando levantar.
– Acorde, acorde, acorde! O dia vai ser muito, muito longo! – Tento imaginar, por um instante, como deve ser o interior da cabeça desse homem. Que pensamentos preenchem as horas em que está acordado? Que sonhos tem à noite? Não faço a menor ideia.
Coloco de volta o uniforme verde, já que não está exatamente sujo, apenas levemente amassado por ter passado a noite no chão. Meus dedos percorrem o pequeno pássaro dourado e penso na floresta, em meu pai. E em minha mãe e Ana acordando, sendo obrigadas a providenciar tudo. Dormi com a franja que minha mãe organizou para mim para o dia da colheita, e o penteado não parece tão ruim, de modo que deixo assim mesmo. Pouco importa. Não deve faltar muito até chegarmos à Capital. E, de qualquer maneira, assim que alcançarmos a cidade, meu estilista vai ditar minha aparência para a cerimônia de abertura amanhã à noite. Eu só espero arranjar um que não pense que a nudez é a última palavra em moda.
Assim que entro no vagão-restaurante, Lucas Guimarães passa às pressas por mim com uma xícara de café puro. Sussurra baixinho algumas obscenidades. Carlinhos, com o rosto inchado e vermelho devido aos excessos do dia anterior, está rindo à toa. Caio segura um pãozinho e parece um pouco constrangido.
– Sente-se! Sente-se! – diz Carlinhos, acenando para mim. No instante em que me sento, me servem um enorme prato de comida. Ovos, presunto e pilhas de batatas fritas. Uma terrina de frutas está sobre um leito de gelo para manter a temperatura. A cesta de pãezinhos que é depositada à minha frente manteria minha família alimentada por uma semana. Vejo um elegante copo de suco de laranja. Pelo menos, parece ser suco de laranja. Só provei suco de laranja uma vez na vida, na festa de Ano-Novo, quando meu pai comprou um frasco especialmente para a ocasião. Uma xícara de café. Minha mãe adora café, item que quase nunca tínhamos condições de ter em casa, mas, para mim, o gosto é amargo e aguado. Percebo então uma xícara de uma robusta substância marrom que jamais vi na vida.
– Chamam isso de chocolate quente – diz Caio. – É gostoso.
Eu dou um gole no líquido cremoso e quente, e um calafrio percorre todo o meu corpo. Apesar de o resto da refeição ser bastante convidativo, ignoro tudo até beber toda a xícara de chocolate. Então, ponho para dentro tudo o que consigo – o que é uma quantidade substancial –, tomando cuidado para não cometer nenhum excesso com tanta coisa boa. Uma vez minha mãe me disse que eu sempre comia como se estivesse vendo a comida pela última vez. E eu disse: “Só não é a última vez porque sempre trago comida pra casa.” Isso fez com que ela calasse a boca.
Quando meu estômago começa a dar a sensação de que vai se abrir em dois, eu me recosto e presto atenção em meus companheiros de café da manhã. Caio ainda está comendo, pegando pedacinhos de pão e mergulhando-os no chocolate quente. Carlinhos não liga muito para seu prato, mas bebe com vontade um copo de suco de cor vermelha ao qual não para de adicionar o líquido transparente de uma garrafa. A julgar pelo aroma, deve ser algum tipo de bebida alcoólica. Não conheço Carlinhos, mas já o vi muitas vezes no Prego jogando notas e mais notas de dinheiro sobre o balcão da mulher que vende bebida. Quando chegarmos à Capital seu comportamento já estará incoerente.
Percebo que odeio Carlinhos. Não é surpresa que os tributos do Distrito 12 jamais tenham alguma chance. Não apenas por sermos mal-alimentados e nos faltar um treinamento adequado. Alguns de nossos tributos eram fortes o suficiente para ter uma sobrevida. Mas raramente conseguimos patrocinadores, e grande parte do motivo é ele. As pessoas ricas que apoiam os tributos – ou porque estão apostando neles ou porque simplesmente querem se gabar por terem escolhido o vencedor – esperam lidar com uma pessoa com o perfil um pouco mais sofisticado do que o de Carlinhos.
– Então você é o encarregado de nos dar conselhos – digo para ele.
– Aí vai um: mantenham-se vivos – diz Carlinhos, e depois cai na gargalhada. Troco olhares com Caio antes de me lembrar que prometi a mim mesmo não manter mais nenhum contato com ele. Estou surpreso de ver a dureza em seus olhos. Ele geralmente parece tão suave.
– Isso é muito engraçado – diz Caio. De repente ele dá um golpe no copo que está na mão de Carlinhos. O vidro se espatifa no chão, fazendo com que o líquido vermelho-sangue escorra para os fundos do trem. – Mas não pra nós.
Carlinhos reflete por alguns segundos e então dá um soco no queixo de Caio, lançando-o para fora da cadeira. Quando ele se volta para pegar a bebida, cravo minha faca na mesa, entre a mão dele e a garrafa, por pouco não acertando seus dedos. Eu me preparo para me esquivar do golpe dele, mas nada acontece. Ao contrário, ele se recosta na cadeira e nos encara com olhos estreitos.
– O que é isso, afinal? – pergunta Carlinhos. – Será que realmente peguei um par de lutadores esse ano?
Caio se levanta e apanha um pouco de gelo embaixo da terrina. Ele faz menção de erguê-lo na direção da marca avermelhada em seu queixo.
– Não – diz Carlinhos, interrompendo-o. – Deixa o hematoma aparecer. O público vai pensar que você saiu no tapa com algum outro tributo antes mesmo de entrar na arena.
– Isso é contra as regras – diz Caio.
– Só se eles te pegarem. Esse hematoma vai indicar que você lutou e que não foi pego. Melhor ainda – diz Carlinhos. Ele se volta para mim. – Você consegue acertar alguma coisa com essa faca além da mesa?
O arco e flecha é a minha arma. Mas também já passei um bom tempo arremessando facas. Às vezes, se firo algum animal com o arco, é melhor jogar uma faca também, antes de me aproximar. Percebo que se desejo chamar a atenção de Carlinhos, essa é a oportunidade de causar uma boa impressão. Arranco a faca da mesa, agarro a lâmina e então arremesso-a na parede do outro lado do salão. Na verdade, só tinha esperança de que ela ficasse grudada em algum lugar, mas ela se alojou na costura entre dois painéis, fazendo com que minha habilidade parecesse bem maior do que realmente é.
– Fiquem os dois em pé aqui – diz Carlinhos, indicando com a cabeça o centro do salão. Nós obedecemos e ele nos rodeia, cutucando-nos como se fôssemos animais, verificando nossos músculos, examinando nossos rostos. – Bem, vocês não estão totalmente condenados. Parecem em forma. E, assim que os estilistas entrarem em ação, vocês vão ficar atraentes o bastante.
Nem eu nem Caio questionamos a colocação. Os Jogos Vorazes não são um concurso de beleza, mas parece que os tributos mais atraentes sempre conseguem convocar mais patrocinadores.
– Tudo bem, vou fazer um trato com vocês. Vocês não interferem na minha bebida e fico sóbrio o suficiente para ajudá-los – propõe Carlinhos. – Mas vocês vão ter de fazer exatamente o que eu disser.
Não é de fato um trato, mas ainda assim é um grande passo em relação a dez minutos atrás, quando não contávamos com nenhuma orientação.
– Certo – diz Caio.
– Então nos ajude – concordo. – Quando a gente chegar na arena, qual a melhor estratégia na Cornucópia pra alguém que...
– Uma coisa de cada vez. Daqui a alguns minutos vamos chegar à estação. Vocês serão colocados nas mãos de seu estilista. Não vão gostar nem um pouco do que ele vai fazer com vocês. Mas, independentemente do que seja, não devem se opor – diz Carlinhos.
– Mas... – começo.
– Sem “mas”. Não se oponham – diz Carlinhos. Ele pega a garrafa de bebida na mesa e sai do vagão-restaurante. Assim que a porta se fecha atrás dele, o vagão escurece. Ainda há algumas luzes no interior, mas, do lado de fora, a impressão que se tem é que anoiteceu novamente. Eu me dou conta de que devemos estar dentro de algum túnel que percorre as montanhas até a Capital. As montanhas formam uma barreira natural entre a Capital e os distritos ao leste. É quase impossível entrar pelo leste, exceto através de túneis. Essa vantagem geográfica foi um dos principais fatores que possibilitaram a derrota dos distritos frente à Capital na guerra, o que me levou a ser um tributo hoje. Como os rebeldes tinham de escalar as montanhas, eles se tornavam alvos fáceis para a força aérea da Capital.
Caio Iris e eu ficamos em silêncio enquanto o trem passa a toda a velocidade. O túnel parece interminável, e, quando começo a imaginar as toneladas de rocha que me separam do céu, sinto um aperto no peito. Eu odeio ficar emparedado dessa maneira. Isso me faz lembrar das minas e de meu pai, preso naquela armadilha, incapaz de alcançar a luz do sol, enterrado para sempre na escuridão.
O trem finalmente começa a diminuir a velocidade, e, de repente, luzes brilhantes inundam o compartimento. Não conseguimos evitar. Caio e eu corremos para a janela para ver o que só conhecíamos pela televisão. A Capital, a cidade que governa Panem. As câmeras não mentiram a respeito da sua grandiosidade. Se tanto, elas não chegaram a captar a magnificência dos edifícios esplendorosos num arco-íris de matizes que se projeta em direção ao céu, os carros cintilantes que passam pelas avenidas de calçadas largas, as pessoas vestidas de modo esquisito, com penteados bizarros e rostos pintados que nunca deixaram de fazer uma refeição. Todas as cores parecem artificiais, os rosas intensos demais, os verdes muito brilhantes, os amarelos dolorosos demais aos olhos, como as balas redondas e duras que nunca temos condições de comprar nas lojinhas de doce do Distrito 12.
As pessoas começam a apontar para nós com empolgação ao reconhecer o trem dos tributos chegando à cidade. Eu me afasto da janela, enjoado com aquela excitação, ciente de que eles mal podem esperar para assistir à nossa morte. Mas Caio mantém sua posição. Na verdade, está até acenando e sorrindo para a multidão boquiaberta. Ele só para quando o trem chega à estação, tirando-nos de vista.
Ele me nota encarando-o e dá de ombros.
– Quem sabe? Um deles pode ser rico.
Eu o julguei erroneamente. Penso nas ações dele desde que a colheita começou. O amigável aperto de mão. O pai dele aparecendo com os biscoitos e prometendo alimentar Ana... Será que Caio o convenceu a fazer isso? As lágrimas dele na estação. Ter se apresentado para lavar Carlinhos, para depois desafiá-lo hoje de manhã quando, aparentemente, a abordagem do garoto bonzinho havia fracassado. E agora o aceno na janela, já tentando ganhar a multidão.
As peças ainda estão se encaixando, mas sinto que ele tem um plano em gestação. Ele não aceitou morrer. Ele já está lutando com afinco para se manter vivo. O que também significa que o gentil Caio Iris, o garoto que me deu os pães, está lutando com afinco para me matar.



Tive que trocar o nome da planta "Katniss" pra "Lua" pra fazer sentido com o nome do Luan, não é tão relevante pra história a planta existir, mas não queria tirar algo tão significativo pra o personagem

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