1° capítulo

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Parte 1 - A FAGULHA

Aperto o cantil em minhas mãos com firmeza, muito embora o calor do chá já tenha se dissipado há muito no ar gelado. Meus músculos estão rígidos devido ao frio. Se uma matilha de cães selvagens aparecer nesse instante, as chances de escalar uma árvore antes de eles atacarem são francamente desfavoráveis. Eu devia me levantar, dar uma circulada, e tentar diminuir a rigidez de meus membros. Mas em vez disso, mantenho-me sentado, imóvel como a rocha que está embaixo de mim, enquanto o amanhecer começa a iluminar a floresta. Não tenho como lutar contra o sol. Posso apenas observar impotentemente como ele me carrega em direção a um dia que tenho abominado há meses.
Por volta do meio-dia eles estarão na minha nova casa na Aldeia dos Vitoriosos. Os repórteres, as equipes com as câmeras, até mesmo Lucas Guimarães, meu antigo acompanhante, terão se dirigido ao Distrito 12, vindos da Capital. Imagino se Lucas ainda estará usando aquela ridícula peruca cor-de-rosa, ou se estará com alguma outra cor artificial especialmente para a Turnê da Vitória. Haverá outras pessoas esperando também. Uma equipe encarregada de cuidar de todas as minhas necessidades na longa viagem de trem. Uma equipe de preparação encarregada de me embelezar para as aparições públicas. Cinna, meu estilista e amigo, que desenhou o esplêndido traje que fez com que a audiência reparasse em mim pela primeira vez nos Jogos Vorazes.
Se pudesse escolher, tentaria esquecer por completo os Jogos Vorazes. Jamais falaria neles. Fingiria que não eram nada além de um sonho ruim. Mas a Turnê da Vitória torna isso impossível. Estrategicamente situada quase que entre um Jogo e outro, ela é uma maneira de manter o horror vivo e presente. Não apenas nós, residentes dos distritos, somos forçados a nos lembrar do punho de ferro da Capital a cada ano, como também somos forçados a comemorá-la. E esse ano eu terei que viajar de distrito em distrito para aparecer diante das multidões entusiasmadas, que secretamente me odeiam, para olhar bem nos rostos dos familiares cujos filhos eu matei...
O sol persiste em se levantar, de modo que eu me ponho de pé. Todas as minhas juntas reclamam e minha perna esquerda está dormente há tanto tempo que leva vários minutos de caminhada para que eu volte a senti-la. Estou na floresta há três horas, mas como não fiz nenhuma tentativa real de caçar, não tenho nada comigo. Isso não tem mais importância para a minha mãe ou para a minha irmãzinha, Ana. Elas podem comprar carne no açougue da cidade, embora nenhuma de nós prefira o sabor do que se encontra por lá ao da carne de caça recém-abatida. Mas o meu melhor amigo, Gustavo Rocha, e sua família estão contando com o suprimento de hoje e eu não posso deixá-los na mão. Começo a jornada de uma hora e meia que será necessária para cobrir a nossa linha de armadilhas. Na época em que estávamos na escola, tínhamos tempo nas tardes para verificar a linha e caçar e coletar e ainda voltar para a cidade a tempo de realizar a venda. Mas agora que Gustavo foi trabalhar nas minas de carvão – e não tenho nada para fazer o dia inteiro –, passei a desempenhar essa função.
A essa altura Gustavo já terá batido o cartão de ponto nas minas, entrado no elevador que revira o estômago em direção às profundezas da terra e começado a martelar o revestimento de carvão. Sei muito bem como é lá embaixo. Todos os anos a minha turma da escola faz um tour nas minas como parte do treinamento. Quando era pequeno, a experiência era simplesmente desagradável. Os túneis claustrofóbicos, o ar viciado, a escuridão sufocante para todos os lados. Mas depois que o meu pai e vários outros mineiros foram mortos numa explosão, mal consigo me aproximar daquele elevador. O tour anual tornou-se uma enorme fonte de ansiedade para mim. Por duas vezes fiquei tão enjoado devido à expectativa do evento que minha mãe me deixou em casa porque imaginou que eu tivesse contraído uma gripe.
Penso em Gustavo,nque só se sente realmente vivo na floresta, com ar fresco, luz do sol e a água límpida do rio. Não sei como ele aguenta. Bom... sei, sim. Ele aguenta porque essa é a única maneira de alimentar sua mãe, os dois irmãos e a irmã menor. E aqui estou eu com baldes e mais baldes de dinheiro, mais do que o suficiente para alimentar ambas as nossas famílias, e ele não aceita pegar uma única moeda sequer. É ainda mais duro para ele permitir que eu leve a carne, embora saiba que ele teria com toda certeza suprido a minha mãe e Ana caso eu tivesse morrido nos Jogos. Digo a ele que está me fazendo um favor, que enlouqueço se tiver de ficar sentado o dia inteiro sem fazer nada. Mesmo assim, nunca deixo a caça quando ele está em casa. O que é uma coisa fácil, já que ele trabalha doze horas por dia.
Agora eu só consigo ver Gustavo aos domingos, quando nos encontramos na floresta para caçar juntos. Ainda é o melhor dia da semana, mas não é mais como costumava ser, quando podíamos falar o que bem entendíamos um com o outro. Os Jogos estragaram até isso. Fico na esperança de que, à medida que o tempo passe, consigamos pouco a pouco readquirir a liberdade que existia entre nós, mas uma parte de mim sabe que isso é algo sem sentido. Não há como voltar atrás.
Tive sorte nas armadilhas – oito coelhos, dois esquilos e um castor que nadou em direção a uma arapuca de arame bolada pelo próprio Gustavo. Ele é um ás das armadilhas, amarrando-as em troncos curvados de modo que as presas fiquem fora do alcance dos predadores, equilibrando toras de madeira em delicados gatilhos formados por pequenos galhos, tecendo cestas para pegar peixes impossíveis de serem evitadas. À medida que avanço, montando as armadilhas novamente com todo o cuidado do mundo, sei que jamais serei capaz de rivalizar seu instinto para o equilíbrio, seu instinto para o momento em que a presa cruzará a trilha. É muito mais do que experiência. É um dom natural. Tal qual a maneira como acerto um animal, mesmo na mais completa escuridão, abatendo-o com uma única flecha.
Quando volto para a cerca que envolve o Distrito 12, o sol já está bem alto. Como sempre, paro para escutar por um instante, mas não há nenhum zumbido indicando uma corrente de eletricidade passando pela cerca. Quase nunca há, muito embora a barreira supostamente permaneça eletrificada vinte e quatro horas por dia. Eu me espremo através da abertura embaixo do muro e chego na Campina, que fica a um arremesso de pedra de minha casa. Minha antiga casa. Nós ainda a mantemos já que, oficialmente, o local ainda é a residência designada para minha mãe e minha irmã. Se eu caísse morto agora mesmo, elas seriam obrigadas a voltar para lá. Mas hoje as duas estão confortavelmente instaladas na nova casa, na Aldeia dos Vitoriosos, e sou a única pessoa que utiliza o lugar minúsculo onde fui criado. Para mim, aquela é a minha verdadeira casa.
Vou para lá agora trocar de roupa. Trocar a velha jaqueta de couro de meu pai por um elegante casaco de lã que sempre parece apertado demais nos meus ombros. Substituir as minhas botas de caça gastas e macias por um par de caros sapatos feitos numa máquina, os quais minha mãe imagina que são mais apropriados para alguém com o meu status. Já guardei o meu arco e as minhas flechas num tronco oco da floresta. Embora o tempo esteja se esgotando, permito-me ficar sentado na cozinha alguns minutinhos. O local exala uma sensação de abandono, sem fogo algum na lareira, sem toalha em cima da mesa. Tenho saudades de minha antiga vida aqui. Nós mal conseguíamos nos manter vivas, mas sabia onde me encaixava, sabia qual era o meu lugar na trama inflexível de nossas vidas. Gostaria muito de poder voltar para cá porque, olhando o passado, ela parece tão segura em comparação à que vivo agora, sendo tão rico e tão famoso e tão odiado pelas autoridades na Capital.
Um gemido na porta dos fundos chama minha atenção. Abro a porta e encontro Buttercup, o gato velho e sujo de Ana. A nova casa desagrada a ele quase tanto quanto a mim, e ele sempre sai de lá quando minha irmã está na escola. Nós nunca fomos particularmente amigos, mas agora temos esse novo laço. Eu o deixo entrar, dou-lhe um naco de gordura de castor e até faço um carinho entre as suas orelhas.
– Você é horrível, sabia? – digo a ele. Buttercup encosta na minha mão em busca de mais carinho, mas nós temos que ir embora. – Vamos lá. – Eu o agarro com uma das mãos, pego o saco que contém a minha caça com a outra e carrego tudo para a rua. O gato se solta de mim e desaparece debaixo de um arbusto.
Os sapatos pinicam os meus tornozelos à medida que vou pisando a rua cinzenta de carvão. Atravessando becos e passando por quintais, chego à casa de Gustavo em questão de minutos. Sua mãe, Hazelle, debruçada na pia da cozinha, me vê pela janela. Ela seca as mãos no avental e desaparece para me receber na porta da casa.
Gosto de Hazelle. Eu a respeito. A explosão que matou meu pai também levou seu marido, deixando-a com três garotos e um bebê a caminho. Menos de uma semana depois de dar à luz, ela estava nas ruas em busca de trabalho. As minas não eram uma opção, sobretudo com um bebê para tomar conta, mas ela conseguiu arrumar roupa para lavar com alguns comerciantes da cidade. Aos catorze anos, Gustavo, o mais velho dos garotos, tornou-se o principal provedor da família. Ele já era candidato a tésseras, o que lhes dava o direito de receber um mísero suprimento de grãos e óleo em troca de Gustavo inscrever seu nome diversas vezes no sorteio anual dos tributos. E ainda por cima, naquela época ele já era um habilidoso montador de armadilhas. Mas isso não era o suficiente para manter uma família de cinco pessoas sem que Hazelle trabalhasse no tanque até que seus dedos ficassem em carne viva. No inverno, as mãos dela ficavam tão vermelhas e quebradiças que sangravam ao mais simples toque. E sangrariam até hoje se não fosse por um unguento preparado por minha mãe. Mas Hazelle e Gustavo estavam determinados a não permitir que as outras crianças, Rory, de doze anos, Vick, de onze, e Posy, o bebê de quatro anos, jamais se candidatassem a tésseras.
Hazelle sorri quando vê a caça. Ela pega o castor pelo rabo, sentindo seu peso.
– Isso aqui vai dar um belo de um cozido. – Ao contrário de Gustavo, ela não liga nem um pouco para o nosso acordo referente à caça.
– Boa pele também – respondo. É reconfortante estar aqui com Hazelle. Avaliando os méritos da caça como sempre fizemos. Ela serve uma caneca de chá de ervas em torno da qual envolvo os meus dedos gelados com muita gratidão. – Estava pensando em levar Rory pra dar um passeio comigo um dia desses, quando voltar da turnê. Depois da aula. Ensinar ele a atirar.
Hazelle balança a cabeça em concordância.
– Isso ia ser bom. Gustavo também quer fazer isso, mas ele só tem o domingo livre, e acho que gosta de reservar esses dias pra você.
Não consigo impedir o rubor que toma o meu rosto. É uma bobagem, claro. Quase ninguém me conhece melhor do que Hazelle. Ela sabe os laços que compartilho com Gustavo. Tenho certeza de que inúmeras pessoas imaginavam que um dia nos casaríamos, mesmo que tal coisa jamais tivesse passado pela minha cabeça. Mas isso foi antes dos Jogos. Antes de meu companheiro tributo, Caio íris, anunciar que estava loucamente apaixonado por mim. Nosso romance tornou-se a estratégia central para nossa sobrevivência na arena. Só que para Caio não foi apenas uma estratégia. Não tenho certeza do que foi para mim. Mas agora sei que o episódio foi tremendamente doloroso para Gustavo. Sinto um aperto no peito só de pensar em como Caio e eu teremos de nos apresentar novamente como amantes durante a Turnê da Vitória.
Dou um gole no chá, embora a bebida esteja quente demais, e me afasto da mesa.
– É melhor eu ir andando. Preciso dar um trato no visual para me apresentar diante das câmeras.
Hazelle me abraça.
– Aproveite a comida.
– Com certeza – digo.
Minha próxima parada é o Prego, onde tradicionalmente comercializo minhas mercadorias. Anos atrás o local era um armazém que servia para estocar carvão, mas, quando entrou em desuso, virou ponto de encontro para todo tipo de transação comercial ilegal e, em seguida, transformou-se num mercado clandestino. Se o lugar atrai um determinado tipo de elemento criminoso, então é o meu local, imagino. Caçar na floresta que cerca o Distrito 12 viola pelo menos uma dezena de leis e a punição é a morte.
Embora jamais mencionem isso, devo muito às pessoas que frequentam o Prego. Gustavo me contou que Greasy Sae, a velha que serve sopa, começou a coletar donativos para patrocinar a mim e a Caio durante os Jogos. Era para ser apenas uma coisa do Prego, mas muitas outras pessoas ficaram sabendo e resolveram contribuir. Não sei exatamente quanto foi arrecadado, só que o preço de cada dádiva na arena era exorbitante. Mas até onde sei, para mim a iniciativa representou a diferença entre a vida e a morte.
Ainda acho estranho abrir a porta da frente segurando um saco vazio, nenhuma caça, nada para vender e, ao invés, sentir os bolsos cheios de moedas pesando em minha cintura. Tento ir ao máximo de barracas possível, dividindo minhas compras entre café, pães, ovos, seda e óleo. Depois lembro de acrescentar três garrafas de aguardente branca que compro de uma mulher de um braço só chamada Ripper, uma vítima de um acidente na mina que foi esperta o suficiente para achar uma maneira de continuar viva.
A aguardente não é para minha família. É para Carlinhos, meu mentor e de Caio nos Jogos. Ele passa a maior parte do tempo de cara amarrada, agressivo e bêbado. Mas Carlinhos fez o trabalho dele – mais do que isso até – porque, pela primeira vez na história, foi permitido que dois tributos vencessem. Por isso, independentemente de quem ele seja, devo muito a ele também. E a dívida é eterna. Vou levar a aguardente branca porque, há algumas semanas, o estoque dele acabou e não havia mais nenhuma garrafa à venda, o que o levou a ter uma crise de abstinência, tremendo e berrando para coisas assustadoras que somente ele conseguia enxergar. Ele deixou Ana morrendo de medo e, para ser franco, eu também não achei nem um pouco divertido vê-lo naquele estado. Desde então, tenho estocado o produto para a eventualidade de ele voltar a sumir das prateleiras.
Cray, nosso Chefe dos Pacificadores, franze a testa quando me vê com as garrafas. É um homem idoso com alguns fios de cabelo grisalhos penteados para os lados, sobre a cabeça brilhante e rosada.
– Esse troço é forte demais pra você, menino. – Ele deve saber. Fora Carlinhos, nunca conheci uma pessoa que bebesse tanto quanto Cray.
– Ah, minha mãe usa isso aqui em alguns remédios – digo, indiferente.
– Bom, isso mata praticamente qualquer coisa – responde ele, e me dá uma moeda por uma garrafa.
Quando chego à barraca de Greasy Sae, dou um pulo, sento-me no balcão e peço um pouco de sopa, que parece uma mistura de abóbora com feijão. Um Pacificador chamado Darius chega e compra uma tigela enquanto tomo a sopa. De todos os membros da força policial, ele é um dos meus favoritos. Não fica dando uma de fortão e tem sempre uma boa piada para contar. Provavelmente está na faixa dos vinte e poucos anos, mas não parece ser muito mais velho do que eu. Algo em seu sorriso, em seus cabelos ruivos desalinhados, lhe dá um aspecto de menino.
– Você não deveria estar no trem uma hora dessas? – pergunta ele.
– Eles vão me pegar ao meio-dia – respondo.
– Você não podia estar mais arrumadinho? – pergunta ele num sussurro. Não consigo deixar de sorrir para a implicância, apesar do humor em que me encontro. – Poderia colocar uma fitinha nos cabelos ou alguma coisa assim. – Ele dá uma sacudida na minha franja e afasto a mão dele.
– Não se preocupe. Quando eles tiverem terminado de me ajeitar, estarei irreconhecível – digo.
– Bom – diz ele. – Vamos mostrar um pouquinho de orgulho pelo nosso distrito, só pra variar, hein, senhor Alencar? – Ele balança a cabeça para Greasy Sae como quem finge estar indignado e vai se juntar aos amigos.
– Quero essa tigela de volta – grita Greasy Sae na sua direção, mas, como está rindo, seu tom não parece lá dos mais sérios. – Gustavo vai se despedir de você? – pergunta-me ela.
– Não, ele não estava na lista – digo. – Mas estive com ele no domingo.
– Imaginei que estivesse na lista, já que é seu primo e coisa e tal – diz ela, com ironia.
É mais uma parte da mentira que a Capital produziu. Quando Caio e eu ficamos entre os oito finalistas nos Jogos Vorazes, eles enviaram repórteres ao distrito para traçar um perfil de nós dois. Quando perguntaram sobre meus amigos, todos se dirigiram a Gustavo. Mas não era possível que eu tivesse Gustavo como melhor amigo com toda aquela história romântica entre Caio e eu rolando na arena. Guatavi era bonito demais, másculo demais, e não estava nem um pouco disposto a sorrir e a dar uma de simpático para as câmeras. Entretanto, somos bem parecidos fisicamente. Ambos temos aquele visual típico da Costura. Cabelos lisos e escuros, pele morena, olhos cinzentos. Aí, algum gênio resolveu fazer dele meu primo. Não tinha noção de nada disso até o momento em que voltei para casa. Quando desci do trem e pisei na plataforma, minha mãe disse: “Seus primos estão loucos para vê-la!” Em seguida, virei-me e vi Gustavo e Hazelle e todas as crianças esperando por mim, então a única coisa que pude fazer foi continuar com a farsa.
Greasy Sae sabe que não somos parentes, mas mesmo algumas pessoas que nos conhecem há anos parecem ter esquecido disso.
– Não aguento mais esperar! Quero que tudo isso acabe logo – sussurro.
– Eu sei – diz Greasy Sae. – Mas a tempestade só passa depois que você a atravessa. É melhor não se atrasar.
Uma neve branda começa a cair enquanto me dirijo à Aldeia dos Vitoriosos. Fica a mais ou menos um quilômetro de caminhada da praça no centro da cidade, mas o local parece um mundo completamente diferente. É uma comunidade separada construída ao redor de um lindo campo verde repleto de plantas e flores. São doze casas, cada qual suficientemente grande para acomodar em seu interior dez casas iguais àquela em que fui criado. Nove estão vazias, como sempre estiveram. As três que estão em uso pertencem a Carlinhos, Caio e eu.
As casas habitadas pela minha família e pela de Caio possuem um aconchegante brilho de vida. Janelas iluminadas, fumaças de chaminés, vários feixes de milho coloridos pendurados nas portas da frente como decoração para o Festival da Colheita que se aproxima. Entretanto, a casa de Carlinhos, apesar do cuidado do caseiro, exala um ar de abandono e descaso. Paro na frente da casa dele, preparando-me para entrar, ciente de que será uma experiência desagradável, e em seguida entro.
Torço o nariz por puro nojo. Carlinhos se recusa a deixar que alguém entre para fazer uma limpeza e o que ele faz para resolver o problema sozinho não adianta de nada. Ao longo dos anos, os odores de bebida e vômito, repolho cozido e carne queimada, roupa suja e dejetos de ratos têm se misturado a um fedor que enche meus olhos de lágrimas. Vou abrindo caminho em meio a uma verdadeira lixeira de embalagens usadas, vidro quebrado e ossos para chegar ao lugar onde sei que vou encontrar Carlinhos. Ele está sentado à mesa da cozinha, braços esparramados na madeira, o rosto em cima de uma poça de álcool, roncando em alto e bom som.
Cutuco o ombro dele.
– Levanta! – grito bem alto, porque sei que não existe um jeito sutil de acordá-lo. Seu ronco para por um momento, como se ele estivesse avaliando a situação, e em seguida recomeça. Eu o empurro com força. – Acorda, cara. Hoje é o nosso dia! – Abro a janela, respirando bem fundo o ar puro que vem de fora. Meus pés remexem o lixo no chão, desenterro uma cafeteira de cobre e a encho na pia. O fogão ainda não se apagou completamente e consigo acender uma chama a partir de alguns carvões. Despejo um pouco de pó de café na xícara, o suficiente para garantir uma mistura boa e forte, e coloco a cafeteira no fogo.
Carlinhos continua completamente apagado. Como nada mais funcionou, encho uma bacia com água gelada, derramo em cima da cabeça dele e saio da frente correndo. Um som gutural e animalesco deixa sua garganta. Ele dá um salto, chutando a cadeira para trás, segurando uma faca. Esqueço que ele sempre dorme agarrado a uma faca. Devia ter arrancado o objeto de sua mão, mas minha cabeça já está cheia demais. Vociferando um monte de xingamentos, ele dá alguns golpes no ar antes de voltar a si. Enxuga o rosto na manga da camisa e volta-se para o parapeito da janela onde fico empoleirada para o caso de precisar sair rapidamente.
– O que você está fazendo? – ele explode.
– Você pediu pra te acordar uma hora antes das câmeras chegarem – respondo.
– O quê?
– A ideia foi sua – insisto.
Ele parece estar se lembrando.
– Por que estou todo molhado?
– Não consegui acordá-lo de outro jeito – digo. – Escute, se você queria ser tratado como um bebê era melhor ter pedido a Caio.
– Pedido o quê? – Só de ouvir o som da voz dele meu estômago já se contorce em meio a uma coleção de emoções desagradáveis como culpa, tristeza e medo. E saudade. Eu poderia muito bem admitir que tem um pouco disso também. Só que a competição é muito grande para que ela tenha alguma chance de vencer.
Observo Caio atravessar a cozinha em direção à mesa, a luz do sol que entra pela janela refletindo o brilho da neve em seus cabelos louros. Ele parece forte e saudável, muito diferente do garoto doente e faminto que conheci na arena, e mal se percebe que está mancando. Ele coloca um pão recém-saído do forno em cima da mesa e estende a mão para Carlinhos.
– Pedi pra vocês me acordarem, não para me causarem uma pneumonia – diz Carlinhos, soltando a faca. Ele tira a camisa imunda, exibindo uma camiseta igualmente suja, e se esfrega de alto a baixo com a parte seca.
Caio sorri e molha a faca de Carlinhos na aguardente branca da garrafa que está no chão. Ele enxuga a lâmina na manga da camisa até deixá-la bem limpa e corta uma fatia de pão. Caio sempre nos fornece pão fresquinho. Eu caço. Ele faz pão. Carlinhos  bebe. Temos nossas próprias maneiras de nos manter ocupados, de manter as recordações de nossa experiência como competidores nos Jogos Vorazes devidamente controladas. Só depois de dar a Carlinhos a ponta do pão é que Caio olha para mim pela primeira vez.
– Quer um pedaço?
– Não, comi no Prego – digo. – Mas muito obrigado assim mesmo. – Minha voz não parece pertencer a mim, está formal demais. Exatamente como tem sido todas as vezes em que falo com Caio desde que as câmeras terminaram de filmar o nosso feliz retorno a nossos lares e vidas reais.
– Você é quem sabe – diz ele friamente.
Carlinhos joga a camisa em algum ponto da bagunça.
– Brrr. Vocês dois precisam fazer um bom aquecimento antes do show.
Ele tem razão, é claro. A audiência estará à espera do par de pombinhos que venceu os Jogos Vorazes. Não de duas pessoas que mal conseguem se olhar nos olhos. Mas a única coisa que digo é:
– Vá tomar um banho, Carlinhos. – Em seguida, giro o corpo na janela, pulo e ando em direção à minha casa pela relva verde.
A neve ficou mais densa, e deixo um rastro de pegadas atrás de mim. Na porta, paro para sacudir os sapatos úmidos antes de entrar. Minha mãe tem trabalhado noite e dia para deixar tudo perfeito para as câmeras, de modo que não tem nenhum cabimento sujar de neve o chão que ela deixou brilhando. Mal pisei dentro de casa e ela já está lá segurando o meu braço como se quisesse me impedir de entrar.
– Pode deixar, estou tirando-os aqui – digo, deixando os sapatos no capacho.
Minha mãe dá um sorriso esquisito, como de alívio, e retira do meu ombro o saco com a caça.
– É só neve. A caminhada foi boa?
– Caminhada? – Ela sabe muito bem que passei quase a noite toda na floresta. Então, vejo o homem em pé atrás dela na porta da cozinha. Só de olhar para seu terno bem-cortado e para suas feições cirurgicamente perfeitas, sei que ele é da Capital. Há algo errado. – Caminhada nada, foi mais uma patinação. Está superescorregadio lá fora.
– Tem alguém aqui te esperando – diz minha mãe. Seu rosto está pálido demais e consigo perceber a ansiedade que ela está tentando esconder.
– Pensei que só chegariam ao meio-dia – digo, fingindo não reparar o estado dela. – Cinna chegou mais cedo para ajudar a me preparar?
– Não, Luan, é o... – começa minha mãe.
– Por aqui, por favor, senhor Alencar – diz o homem. Ele faz um gesto para que eu me dirija ao corredor. É estranho ser conduzido dentro de sua própria casa, mas sei muito bem que é melhor não fazer nenhum comentário a respeito.
Enquanto sigo, sorrio por cima do ombro para minha mãe, a fim de garantir a ela que não há nada de errado.
– Provavelmente mais instruções para a turnê. – Eles têm me enviado todo tipo de material sobre o itinerário e sobre os protocolos a serem observados em cada distrito. Mas, à medida que vou andando em direção à porta do escritório, uma porta que nunca vi fechada até aquele momento, minha mente começa a disparar torpedos de alerta para todos os lados. Quem está aqui? O que será que eles querem? Por que a minha mãe está tão pálida?
– Entre – diz o homem da Capital que me conduziu pelo corredor.
Giro a maçaneta de metal polido e entro. Meu nariz registra aromas conflitantes de rosas e sangue. Um homem pequeno e de cabelos brancos que me parece vagamente familiar está lendo um livro. Ele ergue um dedo como que para dizer: “Só um instante.” Em seguida se vira, e meu coração quase para de bater.
Estou olhando bem nos olhos de serpente do presidente Snow.

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