Voltamos ao trem em silêncio, com os mesmos passos cambaleantes da ida. No corredor em frente à porta do meu compartimento, Carlinhos dá um tapinha no meu ombro e diz:
– Existem opções piores do que se casar com Caio, sabe. – Então entra em seu compartimento, levando consigo o hálito forte de vinho.
Na minha cabine, retiro a pantufa encharcada, o robe molhado e o pijama. Há outros itens iguais nas gavetas, mas eu apenas rastejo para debaixo das cobertas em cima da cama com a roupa de baixo mesmo. Fixo o olhar na escuridão, pensando em minha conversa com Carlinhos. Tudo que ele disse sobre as expectativas da Capital, meu futuro com Caio e até mesmo seu último comentário, era verdade. É claro que minhas opções podiam ser bem piores do que me casar com Caio. Mas essa não é exatamente a questão, é? Uma das poucas liberdades que temos no Distrito 12 é o direito de nos casar com quem queremos ou simplesmente não casar e pronto. E agora até isso me foi tirado. Imagino se o presidente Snow ainda vai exigir que a gente tenha filhos. Se a gente tiver, eles terão de enfrentar a colheita ano após ano. E não seria qualquer coisa ver o filho não de um, mas de dois vitoriosos escolhido para a arena. Filhos de vitoriosos já estiveram antes no ringue. Isso sempre proporciona muita excitação e gera muita conversa sobre o azar que acompanha essa determinada família. Mas acontece com muita frequência para ser apenas uma questão de sorte ou azar. Gustavo está convencido de que a Capital faz isso de propósito, manipula o resultado para acrescentar uma carga extra de dramaticidade. Tendo em vista todos os problemas que causei, provavelmente garanti que qualquer filho meu estará presente nos Jogos.
Penso em Carlinhos solteiro, sem família, tapando o mundo com a bebida. Ele poderia ter escolhido qualquer pessoa do distrito. Mas escolheu a solidão. Solidão, não – isso soa tranquilo demais. A coisa é mais um confinamento solitário. Será que foi porque, tendo estado na arena, ele sabia que era melhor não arriscar? Senti o sabor dessa alternativa quando eles cantaram o nome de Ana no dia da colheita e a observei caminhar em direção ao palco e à morte certa. Mas na condição de seu irmão, eu podia tomar o seu lugar, opção proibida para minha mãe.
Minha mente procura freneticamente uma saída. Não posso deixar o presidente Snow me condenar a isso. Mesmo que signifique tirar a minha própria vida. Mas antes disso, tentaria fugir. O que eles fariam se eu simplesmente fugisse? Desaparecesse na floresta e jamais voltasse? Será que eu conseguiria ao menos levar comigo todas as pessoas que amo, começar uma nova vida bem no meio da natureza selvagem? Altamente improvável, porém não impossível.
Balanço a cabeça para me livrar dessa ideia. Não é o momento de ficar fazendo planos mirabolantes de fuga. Preciso focar na Turnê da Vitória. O destino de muitas pessoas depende de eu dar um bom show.
A manhã nasce antes de o sono chegar, e Lucas já está batendo na porta. Pego a primeira roupa que encontro em cima da mesinha de cabeceira e me arrasto para o vagão-restaurante. Não vejo que diferença faz acordar, já que essa é uma viagem de um dia inteiro, mas acabo descobrindo que a maquiagem de ontem foi apenas para me levar para a estação. Hoje, vou receber a atenção da minha equipe de preparação.
– Por quê? Está frio demais pra que alguma coisa apareça – resmungo.
– Não no Distrito 11 – diz Lucas.
Distrito 11. Nossa primeira parada. Eu preferia começar em qualquer outro distrito, já que era aqui que Rue morava. Mas não é assim que a Turnê da Vitória funciona. Normalmente ela começa no 12 e então passa pelos distritos em ordem decrescente até chegar ao 1, e em seguida vai para a Capital. O distrito do vitorioso é pulado e deixado por último. Como o 12 realiza a comemoração menos fabulosa de todas – normalmente apenas um jantar para os tributos e um desfile da vitória na praça, onde parece que ninguém se diverte –, provavelmente é melhor nos tirar do caminho o quanto antes. Este ano, pela primeira vez desde que Carlinhos venceu, a última parada da turnê será no 12, e a Capital vai bancar as festividades.
Tento desfrutar a comida, como Hazelle disse. O pessoal da cozinha claramente deseja me agradar. Eles prepararam meu prato favorito, cozido de cordeiro com ameixas secas, entre outras guloseimas. Suco de laranja e uma caneca com chocolate fumegante está à minha espera em meu lugar à mesa. Então eu como muito, a refeição é impecável, mas não posso dizer que esteja aproveitando. Também me preocupo com o fato de que ninguém, com exceção de mim mesma e Lucas, apareceu para comer.
– Onde estão os outros? – pergunto.
– Ah, quem sabe por onde anda Carlinhos? – diz Lucas. Eu não estava de fato esperando Carlinhos, porque ele provavelmente está indo para a cama agora. – Cinna ficou trabalhando até tarde organizando o seu vagão de enfeites. Ele deve ter mais de cem trajes pra você. Suas roupas de noite são belíssimas. E o pessoal da equipe de Caio provavelmente ainda está dormindo.
– Ele não precisa de preparação? – pergunto.
– Não do jeito que você precisa – responde Lucas.
O que isso significa? Significa que tenho de passar a manhã tendo os pelos do meu corpo arrancados enquanto Caio dorme. Não tinha pensado muito nisso, mas na arena pelo menos alguns dos garotos ainda tinham pelos no corpo ao passo que alguns de nós não tinha. Consigo me lembrar dos de Caio agora, enquanto eu o banhava no riacho. Muito louro à luz do sol, assim que a lama e o sangue saíram com a água. Apenas seu rosto permanecia completamente liso. Nenhum dos garotos tinha barba, e muitos já tinham idade para tal. Imagino o que fizeram com eles.
Se eu me sinto arrasado, minha equipe de preparação parece em piores condições, tomando café atrás de café e pílulas coloridas. Até onde sei, eles nunca se levantam antes do meio-dia, a menos que haja alguma espécie de emergência nacional, como os pelos das minhas pernas. Fiquei muito feliz quando eles voltaram a crescer. Como se isso fosse um sinal de que as coisas talvez estivessem voltando ao normal. Passo os dedos ao longo da penugem macia e encaracolada em minhas pernas e me entrego à equipe de preparação. Nenhum deles está falante como de costume, de modo que consigo ouvir cada fio sendo arrancado do folículo. Tenho de me enfiar numa banheira cheia de uma solução espessa e de cheiro desagradável, enquanto o meu rosto e os meus cabelos são empapados de creme. Dois outros banhos se seguem, com misturas menos agressivas. Sou esfregado, depilado, massageado e umedecido até o meu corpo ficar em carne viva.
Flavius levanta o queixo e suspira:
– É uma pena o Cinna ter dito para não fazer nenhuma alteração em você.
– Pois é, a gente podia fazer uma coisa bem especial em você – diz Octavia.
– Quando ele estiver mais velho – diz Venia de uma maneira quase agourenta. – Aí ele vai ser obrigado a deixar a gente fazer.
Fazer o quê? Encher os meus lábios como fizeram com o presidente Snow? Tatuar os meu busto? Tingir minha pele de magenta e implantar gemas sob a superfície? Esculpir padrões decorativos no meu rosto? Dotar-me de garras curvadas? Ou de bigodes iguais aos de um gato? Vi todas essas coisas e muito mais nas pessoas que vivem na Capital. Será que elas realmente não fazem a menor ideia de como a sua aparência fica monstruosa para as outras pessoas?
A ideia de ficar entregue aos caprichos estilísticos da minha equipe de preparação só faz aumentar ainda mais as misérias que competem pela minha atenção – meu corpo vítima de abuso, minha falta de sono, meu casamento obrigatório e o terror de ser incapaz de satisfazer as demandas do presidente Snow. Quando me apresento para o almoço, onde Lucas, Cinna, Portia, Carlinhos e Caio já começaram a comer sem mim, já estou me sentindo pesado demais para conversar. Eles estão animadíssimos, falando sobre a comida e sobre como costumam dormir bem em trens. Todos estão bastante entusiasmados com a turnê. Bom, todos exceto Carlinhos. Ele está curtindo uma ressaca e mordendo um muffin. Eu também não estou exatamente com fome, talvez porque tenha me empanturrado demais de coisas deliciosas no café da manhã ou porque esteja triste demais. Fico remexendo uma tigela de caldo, comendo apenas uma colher ou duas. Não consigo nem olhar para a cara de Caio – o marido que me foi designado –, embora saiba que nada disso é culpa dele.
As pessoas reparam, tentam me colocar no meio da conversa, mas eu simplesmente as ignoro. Em determinado momento, o trem para. A pessoa que está nos servindo relata que a parada não é apenas para abastecer – alguma parte do trem apresentou defeito e precisa ser substituída. Será necessária pelo menos uma hora para o conserto. A informação deixa Lucas agitado. Ele pega o cronograma e começa a tentar entender como o atraso vai atrapalhar todos os eventos até o fim de nossas vidas. Finalmente, não consigo ouvir mais uma palavra sequer do que ela está falando.
– Ninguém se importa, Lucas – rebato. Todos à mesa me encaram surpresos, inclusive Carlinhos, que seria de se imaginar que ficaria do meu lado nesse assunto, já que Lucas o enlouquece. Coloco-me imediatamente na defensiva. – Bom, ninguém se importa mesmo! – digo, levantando e saindo do vagão-restaurante.
O trem subitamente parece sufocante e fico completamente enjoado. Encontro a saída, abro a porta com força – desencadeando uma espécie de alarme, que ignoro – e salto para fora na esperança de aterrissar na neve. Mas o contato do ar na minha pele é quente e agradável. As árvores ainda estão com folhas verdes. Quantos quilômetros em direção ao sul percorremos em um dia? Caminho ao longo de uma trilha, estreitando os olhos para o brilho intenso da luz do sol, já lamentando as palavras ditas a Lucas. Ele não é a culpado pelo meu sofrimento. Deveria voltar e pedir desculpas a ele. Minha explosão foi o cúmulo da falta de educação, e boa educação é algo tremendamente importante para ele. Mas meus pés continuam ao longo da trilha, ultrapassam o trem, deixam-no para trás. Uma hora de atraso. Posso andar pelo menos durante vinte minutos em qualquer direção e retornar com tempo suficiente. Em vez disso, após uns duzentos metros, desabo no chão e fico lá sentado olhando ao longe. Se tivesse um arco e flecha comigo, será que continuaria andando?
Depois de um tempo, ouço passos atrás de mim. Deve ser Carlinhos, vindo para me chamar a atenção. Sei que mereço, mas mesmo assim não estou disposto a ouvir a reprimenda.
– Eu não estou com saco para ouvir lição de moral – vou logo avisando, olhando para o gramado aos meus pés.
– Vou tentar ser rápido. – Caio se senta ao meu lado.
– Pensei que fosse o Carlinhos – digo.
– Não, ele ainda está concentrado naquele muffin. – Observo Caio posicionar sua perna artificial. – O dia está difícil, hein?
– Não é nada – digo.
Ele respira fundo.
– Escuta aqui, Luan, faz tempo que estou a fim de conversar com você sobre a maneira como me comportei no trem. Estou me referindo àquele último trem. O que trouxe a gente de volta. Eu sabia que você tinha alguma coisa com Gustavo. Eu tinha ciúmes dele antes mesmo de conhecer você oficialmente. E não era justo prender você ao que quer que tenha havido nos Jogos. Peço desculpas.
O pedido de desculpas dele me pega de surpresa. É verdade que Caio se afastou de mim depois que confessei que o meu amor por ele durante os Jogos era apenas uma encenação. Mas não cobro isso dele. Na arena, desempenhei o papel romântico em todos os sentidos. Havia momentos em que eu francamente não sabia o que sentia por ele. E, na verdade, ainda não sei.
– Eu também peço desculpas – digo. Não tenho certeza do motivo exatamente. Talvez porque haja uma possibilidade efetiva de estar a ponto de destruí-lo.
– Você não tem por que pedir desculpas. Você estava apenas nos mantendo vivos. Mas não quero que a gente continue assim, ignorando um ao outro na vida real e caindo na neve todas as vezes que tem uma câmera por perto. Aí pensei que se parasse de agir como se estivesse tão, enfim, magoado, a gente podia tentar ser amigos – diz ele.
Todos os meus amigos provavelmente acabarão mortos, mas recusar o pedido de Caio não iria mantê-lo seguro.
– Tudo bem – digo. A oferta dele faz com que eu me sinta melhor. Menos enganador, de uma forma ou de outra. Seria legal se ele tivesse me dito isso há mais tempo, antes que eu soubesse que o presidente Snow tinha outros planos e que ser apenas amigos não era mais opção para nenhum dos dois. Mas, de um jeito ou de outro, estou contente de estarmos conversando novamente.
– E aí, qual é o problema? – pergunta ele.
Eu não posso contar para ele. Agarro um punhado de grama.
– Vamos começar com uma coisa mais básica. Não é estranho eu saber que você arriscaria a sua vida para salvar a minha... e ao mesmo tempo não saber qual é a sua cor favorita? – diz ele.
Um sorriso se forma em meus lábios.
– Verde. E a sua?
– Laranja.
– Laranja? Como os cabelos do Lucas? – digo.
– Um pouco menos intenso – diz ele. – É mais tipo... o pôr do sol.
O pôr do sol. Consigo vê-lo imediatamente, a borda do sol se pondo, o céu estriado com suaves sombras alaranjadas. Lindo. Lembro-me do biscoito de lírio-tigrino e, agora que Caio está novamente falando comigo, lembrar do biscoito é tudo o que consigo fazer para não contar a história toda do presidente Snow. Mas sei que Carlinhos não iria gostar que eu fizesse isso. É melhor continuar falando besteiras.
– Sabia que todo mundo fala maravilhas das suas pinturas? Eu acho muito chato não ter visto nenhuma delas – digo.
– Bom, tenho um vagão inteiro cheio delas. – Ele se levanta e me oferece a mão. – Vamos lá.
É bom sentir os dedos dele novamente entrelaçados nos meus, não para um show, mas em função de uma amizade real. Caminhamos de volta ao trem de mãos dadas. Na porta, eu me lembro:
– Antes de mais nada preciso pedir desculpas ao Lucas.
– Não tenha medo de exagerar nessa parte – Caio me diz.
Então, quando volto para o vagão-restaurante, onde os outros ainda estão almoçando, faço um pedido de desculpas a Lucas que me parece efusivo, mas que na opinião dele provavelmente consegue apenas compensar a minha falta de etiqueta. Sendo justo, lucas aceita as desculpas graciosamente. Ele diz que está claro que estou sob muita pressão. E seus comentários acerca da necessidade de alguém cumprir o cronograma duram apenas uns cinco minutos. Escapei dessa com facilidade, para ser sincero.
Quando Lucas termina, Caio me conduz através de alguns vagões para que eu veja suas pinturas. Não sei o que esperava. Versões maiores dos biscoitos de flor, quem sabe. Mas o que encontro é algo totalmente diferente. Caio pintou os Jogos.
Algumas cenas são impossíveis de serem compreendidas de imediato, se a pessoa que está vendo não esteve ela própria na arena. Água pingando pelas rachaduras em nossa caverna. O leito seco da fonte. Um par de mãos, as dele, cavando em busca de raízes. Outras, qualquer pessoa reconheceria. O chifre dourado chamado Cornucópia. Clove arrumando as facas em sua jaqueta. Um dos bestantes, inquestionavelmente o louro de olhos verdes que só podia ser Glimmer, rosnando enquanto avançava sobre nós. E eu. Estou por toda parte. No alto de uma árvore. Batendo uma camisa contra as pedras no riacho. Deitado inconsciente numa piscina de sangue. E uma que não consigo situar – talvez essa tenha sido a minha aparência quando a febre dele estava alta –, emergindo de uma névoa cinza que combina perfeitamente com os meus olhos.
– O que você acha? – pergunta ele.
– Odeio tudo isso – digo. Quase consigo sentir o cheiro de sangue, a sujeira, a respiração artificial do bestante. – A única coisa que faço atualmente é tentar esquecer a arena e aí você traz tudo aquilo de volta. Como é que você se lembra de todos esses detalhes?
– Eu vejo essas cenas todas as noites.
Sei o que ele quer dizer. Pesadelos – que antes dos Jogos não me eram estranhos – agora me assolam assim que adormeço. Mas aquele mais antigo, o de meu pai indo pelos ares nas minas por causa de uma explosão, atualmente é raro. Em vez dele, tenho revivido versões do que aconteceu na arena. Minha tentativa infrutífera de salvar Rue. Caio sangrando até a morte. O corpo inchado de Glimmer desintegrando-se em minhas mãos. O fim horrendo de Cato nas garras dos bestantes. Esses sãos os meus visitantes mais frequentes.
– Eu também. Isso ajuda alguma coisa? Pintar essas cenas todas?
– Não sei. Acho que estou com um pouco menos de medo de dormir à noite, ou pelo menos é isso que digo para mim mesmo – responde ele. – Mas eles não foram embora.
– De repente eles nunca vão mesmo. Os de Carlinhos não foram. – Carlinhos não diz isso, mas tenho certeza de que é por isso que ele não gosta de dormir no escuro.
– Não. Mas pra mim é melhor acordar com uma pintura do que com uma faca na mão – diz ele. – Quer dizer então que você realmente odiou os quadros?
– Odiei. Mas eles são extraordinários. São mesmo – respondo. E realmente são. Mas não quero mais olhar para eles. – Quer ver o meu talento? Cinna fez um grande trabalho.
Caio ri.
– Mais tarde. – O trem avança, e consigo ver a terra se movendo pela janela. – Vamos lá, estamos quase chegando no Distrito 11. Vamos dar uma olhada.
Andamos até o último vagão do trem. Há cadeiras e sofás para nos sentarmos, mas o que é maravilhoso é que as janelas traseiras sobem até o teto, de modo que você tem a nítida sensação de que está a céu aberto, no ar fresco, e você consegue ver uma boa parte da paisagem. Imensos campos abertos com manadas de vacas leiteiras pastando. Tão diferente de nosso lar cheio de árvores. A velocidade diminui ligeiramente e acho que talvez estejamos nos aproximando de mais uma parada, quando uma cerca se ergue diante de nós. Com pelo menos dez metros de altura e dotada de sinistros rolos de arame farpado no topo, ela faz a nossa cerca do Distrito 12 parecer coisa de criança. Meus olhos inspecionam rapidamente a base, que contém enormes placas de metal alinhadas. Há poucas chances de se cavar um buraco, poucas chances de uma escapada para caçar. Então vejo as torres de vigilância, situadas com a mesma distância umas das outras, recheadas de guardas armados, tão deslocadas em meio às flores silvestres em torno delas.
– Aquilo ali é uma coisa bem diferente – diz Caio.
Rue me deu a impressão de que as regras no Distrito 11 eram impostas de uma maneira mais dura. Mas nunca imaginei nada parecido com isso.
Agora começam a aparecer os campos cultiváveis, que se estendem até onde a vista alcança. Homens, mulheres e crianças usando chapéus de palha para se proteger do sol erguem seus troncos, viram-se em nossa direção, perdem um momento esticando as costas enquanto observam a passagem de nosso trem. Consigo ver pomares ao longe, e imagino se esse é o local onde Rue trabalhava, colhendo as frutas dos galhos mais finos no topo das árvores. Pequenas comunidades de casebres – em comparação com as da Costura, elas poderiam ser consideradas de alta categoria – surgem aqui e ali, mas estão completamente vazias. Todas as mãos devem ser necessárias na colheita.
Os campos são intermináveis. Não consigo acreditar no tamanho do Distrito 11.
– Quantas pessoas você acha que vivem aqui? – pergunta Caio. Balanço a cabeça em negativa. Na escola se referem a ele como um distrito grande, e é só. Nenhum número real a respeito da população. Mas essas crianças que nós vemos na câmera, esperando a colheita a cada ano, só podem ser uma pequena amostra dos que realmente habitam o distrito. O que eles fazem? Convocações preliminares? Pegam os vencedores antes do tempo e garantem a presença deles na multidão? Como exatamente Rue acabou naquele palco com nada além do vento se oferecendo para lhe substituir?
Começo a me cansar da vastidão, da interminável vastidão desse lugar. Quando Lucas vem nos dizer que está na hora de nos vestirmos, não me oponho. Vou para o meu compartimento e deixo a equipe de preparação fazer o meu cabelo e a maquiagem. Cinna entra com um macacão laranja bonitinho, adornado com folhas de outono. Imagino o quanto Caio vai gostar da cor.
Lucas me coloca junto a Caio e recapitula a programação do dia uma última vez. Em alguns distritos, os vitoriosos percorrem a cidade enquanto os residentes dão os vivas. Mas no 11 – talvez porque não haja exatamente uma cidade para começo de conversa, tudo sendo tão espalhado, ou talvez porque eles não queiram desperdiçar tantas pessoas enquanto a colheita está em curso – a aparição em público limita-se à praça. A cerimônia acontece em frente ao Edifício da Justiça, uma enorme estrutura de mármore. No passado, deve ter sido uma construção bonita, mas o tempo já cobrou seu preço. Mesmo na televisão, é possível ver as trepadeiras tomando conta da fachada prestes a desmoronar e o telhado quase despencando. A praça em si está rodeada de lojas em péssimo estado de conservação, a maioria abandonada. Onde quer que morem os bem de vida no Distrito 11, certamente não é aqui.
Nossa apresentação pública será inteiramente ao ar livre, no que Lucas se refere como a varanda, o espaço coberto de telhas entre as portas da frente e a escada, protegido do sol por um telhado amparado por colunas. Caio e eu seremos apresentados, o prefeito do Distrito 11 lerá um discurso em nossa homenagem, e nós responderemos com um muito obrigado escrito à mão fornecido pela Capital. Se um vitorioso tinha algum aliado especial entre os tributos mortos, é considerado de bom-tom acrescentar alguns comentários pessoais. Eu deveria dizer alguma coisa a respeito de Rue, e também de Thresh, na realidade, mas todas as vezes que tentei escrever sobre eles em casa, acabei com um papel em branco me encarando de volta. É difícil para mim falar sobre eles sem me emocionar. Felizmente, Caio preparou uma coisinha e, com algumas leves alterações, o texto pode servir para nós dois. Ao fim da cerimônia, receberemos uma espécie de placa, e então poderemos nos retirar para o Edifício da Justiça, onde um jantar especial será servido.
Quando o trem começa a parar na estação do Distrito 11, Cinna faz os últimos retoques no meu traje, mudando a faixa de cabelo cor de laranja por uma em tom dourado metálico e prendendo em meu macacão o broche com o tordo que eu usava na arena. Não há nenhum comitê de boas-vindas na plataforma, apenas um esquadrão de oito Pacificadores que nos dirigem ao interior de um caminhão blindado. Lucas torce o nariz assim que a porta se fecha atrás de nós.
– Dá até pra achar que somos todos criminosos – diz ele.
Todos não, Lucas. Só eu, penso.
O caminhão nos deixa nos fundos do Edifício da Justiça. Somos levados para dentro apressadamente. Sinto o cheiro de uma excelente refeição sendo preparada, mas ele não bloqueia os odores de mofo e podridão. Não nos oferecem tempo algum para darmos uma olhada ao redor. Quando nos dirigimos rapidamente para a entrada da frente, ouço o hino começando a tocar na praça. Alguém prende um microfone em mim. Caio pega minha mão esquerda. O prefeito está nos apresentando no exato instante em que as maciças portas se abrem com um gemido.
– Olha o sorriso! – diz Lucas, e nos dá uma cutucada. Nossos pés começam a se mover para a frente.
É isso. É aqui que tenho de convencer a todos de como estou apaixonado por Caio, penso. A cerimônia solene está muito bem-mapeada, de modo que não tenho muita certeza de como fazer isso. Não é um momento propício para um beijo, mas talvez eu consiga arranjar um jeito.
Aplausos calorosos se seguem, mas nada parecido com as reações que recebemos na Capital, os vivas e gritos entusiasmados e assovios. Atravessamos a varanda protegida do sol até o fim do telhado e logo estamos em pé no topo de uma grande escadaria de mármore sob um sol fortíssimo. À medida que meus olhos vão se ajustando, vejo que os prédios na praça possuem vários cartazes pendurados que ajudam a cobrir o estado de abandono em que eles se encontram. O local está cheio de gente mas, novamente, isso significa apenas uma fração do número de pessoas que ali residem.
Como de costume, uma plataforma especial foi construída na base do palco para as famílias dos tributos mortos. Do lado de Thresh há apenas uma mulher idosa com as costas curvadas e uma garota alta e musculosa que imagino ser a irmã dele. Do lado de Rue... não estou preparada para a família de Rue. Seus pais, cujos rostos ainda demonstram os sinais da tristeza recente. Seus cinco irmãos menores que se parecem tanto com ela. Os portes leves, os luminosos olhos castanhos. Eles formam um aglomerado de pequenos pássaros escuros.
O aplauso cessa e o prefeito faz o discurso em nossa homenagem. Duas menininhas aparecem com enormes buquês de flores. Caio faz a sua parte da resposta manuscrita e, então, eu surpreendo meus próprios lábios concluindo o texto. Felizmente, minha mãe e Ana ensaiaram bastante comigo para que eu pudesse fazer a leitura de cor.
Caio escreveu seus comentários em um cartão, mas ele não o pega. Ao contrário, fala com seu estilo simples e vitorioso sobre Thresh e Rue chegando entre os oito finalistas, sobre como ambos me mantiveram vivo – portanto, mantendo-o vivo – e sobre como isso é uma dívida que nós jamais poderemos ressarcir. E então ele hesita antes de acrescentar algo que não estava escrito no cartão. Talvez, porque ele pensasse que Lucas pudesse obrigá-lo a retirar caso soubesse.
– Isso não tem como substituir as perdas de vocês, mas, como símbolo de nosso agradecimento, gostaríamos que as famílias dos tributos do Distrito 11 recebessem um mês de nossos ganhos a cada ano enquanto estivermos vivos.
A multidão só consegue reagir com arquejos e murmúrios. Não há nenhum precedente para o que Caio fez. Nem sei se isso é legal. Provavelmente nem ele sabe, portanto ele resolveu não perguntar, para o caso de não ser. Quanto às famílias, elas simplesmente olham fixamente para nós em estado de choque. As vidas delas foram mudadas para sempre quando Thresh e Rue faleceram, mas esse presente efetivará uma nova mudança. Um mês de ganho de um tributo vitorioso pode facilmente sustentar uma família por um ano. Enquanto estivermos vivos, eles não passarão fome.
Olho para Caio, que me oferece um sorriso triste. Ouço a voz de Carlinhos. – Existem opções piores do que se casar com Caio. – Naquele momento, é impossível imaginar como eu poderia arranjar alguém melhor do que ele. O momento... é perfeito. Então, quando me levanto na ponta dos pés para beijá-lo, o gesto não parece nem um pouco forçado.
O prefeito dá um passo à frente e presenteia a ambos com uma placa que é tão grande que preciso baixar o meu buquê para segurá-la. A cerimônia está para terminar quando reparo em uma das irmãs de Rue olhando para mim. Ela deve ter mais ou menos nove anos e é quase uma cópia exata de Rue, até no jeito de ficar de pé com os braços ligeiramente estendidos. Apesar das boas notícias a respeito dos ganhos, ela não está feliz. Na realidade, está parecendo recriminar alguma coisa. Será porque eu não salvei Rue?
Não. É porque ainda não agradeci a ela, penso.
Uma onda de vergonha percorre todo o meu corpo. A menina está certa. Como é que posso ficar ali parado, passivo e mudo, deixando todas as palavras ao encargo de Caio? Se tivesse vencido, Rue jamais teria deixado a minha morte passar em branco. Lembro de como cuidei, na arena, para que ela ficasse coberta de flores, para garantir que a perda dela não passasse despercebida. Mas aquele gesto não vai significar coisa alguma se eu não o sustentar agora.
– Esperem! – Dou um passo à frente desajeitadamente, pressionando a placa contra meu peito. O tempo que me foi designado para falar chegou e passou, mas preciso falar algo. Minhas dívidas são grandes. E mesmo que eu tivesse prometido todos os meus ganhos para as famílias, isso não seria uma desculpa para o meu silêncio hoje. – Esperem, por favor.
Eu não sei como começar, mas assim que começo, as palavras jorram da minha boca como se estivessem sendo formadas no fundo da minha mente há bastante tempo:
– Desejo transmitir meus agradecimentos aos tributos do Distrito 11. – Olho para a dupla de mulheres do lado de Thresh. – Só falei com Thresh uma única vez. Tempo suficiente para que ele poupasse a minha vida. Não o conhecia, mas sempre o respeitei. Pelo poder que ele tinha. Por sua recusa em disputar os Jogos em quaisquer termos que não fossem os dele. Os Carreiristas queriam se associar a ele desde o início, mas ele jamais aceitou a parceria. Eu o respeitava por isso.
Pela primeira vez, a senhora corcunda – será a avó de Thresh? – levanta a cabeça e um rastro de sorriso surge em seus lábios.
A multidão ficou em silêncio, em um silêncio tão grande que imagino como é que eles vão lidar com isso. Devem estar todos prendendo a respiração.
Volto-me para a família de Rue.
– Mas tenho a sensação de ter conhecido Rue, e ela vai estar sempre comigo. Todas as coisas bonitas fazem com que eu me lembre dela. Eu a vejo nas flores amarelas que crescem na Campina perto de minha casa. Eu a vejo nos tordos que cantam nas árvores. Mas, acima de tudo, eu a vejo em minha irmã, Ana. – Minha voz falha, mas estou quase terminando. – Obrigada por suas crianças. – Levanto o queixo para me dirigir à multidão. – E obrigada a todos vocês pelo pão.
Fico lá parado, sentindo-me arrasado e minúsculo, com milhares de olhos fixos sobre mim. Há uma longa pausa. Então, de algum lugar na multidão, alguém assobia a melodia de quatro notas dos tordos que Rue cantava. A que sinalizava o fim do dia de trabalho nos pomares. A que significava segurança na arena. No fim da melodia, encontro a pessoa que está assobiando, um homem idoso desgastado pelo tempo vestindo uma camisa vermelha desbotada e macacão. Seus olhos encontram os meus.
O que acontece em seguida não é um acidente. É muito bem-executado para ser algo espontâneo, porque acontece em total sincronia. Todas as pessoas na multidão pressionam os três dedos médios de suas mãos esquerdas contra os lábios e os estendem na minha direção. É o nosso sinal no Distrito 12, o último adeus que dei a Rue na arena.
Se eu não tivesse falado com o presidente Snow, esse gesto talvez me levasse às lágrimas. Mas com suas recentes ordens para acalmar os distritos ainda frescas em meus ouvidos, a manifestação me enche de pavor. O que ele vai pensar dessa saudação pública ao garoto que desafiou a Capital?
O impacto do que acabei de fazer me atinge em cheio. Não foi intencional – quis apenas expressar os meus agradecimentos –, mas acabei provocando uma coisa perigosa. Um ato de discordância das pessoas do Distrito 11. É exatamente esse tipo de coisa que eu deveria estar desencorajando!
Tento pensar em algo a dizer que pudesse diminuir o impacto do que acabou de acontecer, que pudesse negar a manifestação, mas ouço uma leve estática indicando que o meu microfone foi cortado e que o prefeito reassumiu o controle da cerimônia. Caio e eu agradecemos uma última rodada de aplausos. Ele me conduz de volta à porta, sem saber que alguma coisa deu errado.
Tenho uma sensação engraçada e preciso parar por um momento. Pedacinhos de luz do sol dançam diante de meus olhos.
– Você está se sentindo bem? – pergunta Caio.
– Só um pouco tonto. O sol está forte demais – digo. Vejo o buquê na mão dele. – Esqueci minhas flores – murmuro.
– Eu pego – diz ele.
– Pode deixar.
Estaríamos seguros no interior do Edifício de Justiça nesse momento se eu não tivesse parado, se não tivesse esquecido as flores. Em vez disso, da zona profundamente sombreada da varanda, nós vemos a coisa toda acontecer.
Um par de Pacificadores arrastando o homem idoso que assobiara em direção ao topo da escada. Forçando-o a se ajoelhar diante da multidão. E colocando uma bala em sua cabeça.______________________'-'_____________________
Gente a questão dos filhos quis deixar como estar, pois a relevância disso pra o futuro do livro é importante em algumas partes, então fica como se homens engravidassem ok (um futuro onde colocam 24 crianças pra se matar numa arena, o que seria um homem grávido? Kkkkkk)
No decorrer do livro vocês vão ver como isso é um ponto importante da história.Enfim, vocês estão gostando? Tem alguma dúvida que eu possa sanar?
VOCÊ ESTÁ LENDO
Jogos vorazes - Cailuversion
FanfictionNa região antigamente conhecida como América do Sul, a Capital de Panem controla 12 distritos e os força a escolher dois jovens, conhecidos como tributos, para competir em um evento anual televisionado. Todos os cidadãos assistem aos temidos jogos...