23° capítulo

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Todas as células de meu corpo desejam que eu enfie a cara no cozido e me empanturre até dizer chega. Mas a voz de Caio me faz parar:
– É melhor a gente comer devagar esse cozido. Lembra a primeira noite no trem? A comida pesada me deixou enjoado, e eu nem estava com tanta fome assim.
– Você tem razão. E eu bem que podia engolir isso aqui tudo! – comento, lamentando a situação. Mas não faço isso. Somos bastante sensatos. Cada um come um pãozinho, metade de uma maçã e uma porção do tamanho de um ovo de cozido e arroz. Obrigo-me a comer o cozido em pequenas colheradas – eles mandaram até pratos e talheres de prata –, saboreando cada mordida. Quando terminamos, olho para o prato ainda com fome. – Quero mais.
– Eu também. É o seguinte, a gente espera uma hora, se a comida assentar no estômago, aí a gente come mais um pouco – sugere Caio.
– Combinado. Vai ser uma hora bem demorada.
– Talvez não tão demorada. O que era mesmo que você estava dizendo antes de a comida chegar? Alguma coisa a meu respeito... nenhum competidor... a melhor coisa que aconteceu com você na sua vida...
– Não me lembro dessa última parte – retruco, na esperança de que a iluminação esteja bem fraca aqui dentro para que as câmeras não consigam mostrar meu rosto vermelho.
– Ah, certo. Isso era o que eu estava pensando. Chega pra lá, estou congelando.
Deixo um espaço para ele no saco de dormir. Nós nos encostamos contra a parede da caverna, minha cabeça sobre o seu ombro, ele abraçado a mim. Posso sentir Carlinhos me cutucando para prosseguir com a encenação.
– Nós tínhamos cinco anos e desde então você nunca reparou em nenhum garoto ou garota? – pergunto.
– Não. Eu reparava em todas as garotas, mas nenhuma delas me deixou uma impressão tão duradoura quanto você.
– Imagino que esse negócio de você gostar de um garoto e ainda por cima da Costura não empolgou muito seus pais.
– Nem um pouco. Mas isso não me importa. De qualquer modo, se a gente conseguir voltar, você não vai mais ser um garoto da Costura, você vai ser um garoto da Aldeia dos Vitoriosos.
É isso aí. Se nós vencermos, cada um de nós vai ganhar uma casa na parte da cidade reservada aos vitoriosos dos Jogos Vorazes. Muito tempo atrás, por ocasião do início dos Jogos, a Capital construiu uma dúzia de belas casas em cada distrito. É claro que no nosso apenas uma está ocupada. A maioria das outras jamais foi utilizada.
Um pensamento perturbador me ocorre.
– Mas então, nosso único vizinho vai ser o Carlinhos!
– Ah, isso vai ser legal – diz Caio, abraçando-me com mais intensidade. – Você, Carlinhos e eu. Bem aconchegante. Piqueniques, aniversários, longas noites de inverno ao redor da lareira, rememorando antigas histórias dos Jogos Vorazes.
– Eu já disse, ele me odeia! – argumento, mas não consigo evitar dar uma risada ao imaginar Carlinhos se tornando meu novo amigo.
– Só às vezes. Quando ele está sóbrio, nunca fala qualquer coisa negativa sobre você.
– Ele nunca está sóbrio! – protesto.
– É verdade. Em quem estou pensando, afinal? Ah, já sei. Cinna. É Cinna que gosta de você. Principalmente porque você não tentou correr quando ele tocou fogo em você. Por outro lado, Carlinhos... bem, se eu fosse você, eu evitaria Carlinhos completamente. Ele te odeia.
– Pensei que você tinha dito que eu era o favorito dele.
– Ele me odeia mais ainda. Acho que, no geral, gente não é o negócio dele.
Sei que o público vai gostar de nós estarmos tirando sarro de Carlinhos. Ele está na ativa há tanto tempo, é praticamente um velho amigo de alguns. E depois que ele desabou do palco, todos o conhecem. A uma hora dessas, já devem tê-lo arrastado para fora da sala de controle para dar entrevistas sobre nós. Não dá para adivinhar que tipo de mentiras inventou. Ele está um pouco em desvantagem porque a maioria dos mentores possui um parceiro, um outro vitorioso para auxiliá-los, ao passo que Carlinhos precisa estar pronto para entrar em ação a qualquer momento. Mais ou menos como eu, quando estou sozinho na arena. Imagino como ele está segurando as pontas com a bebedeira, o excesso de atenção e o estresse de tentar nos manter vivos.
É engraçado. Carlinhos e eu não nos damos muito bem cara a cara, mas talvez caioy esteja certo quando diz que somos parecidos, porque ele parece ser capaz de se comunicar comigo, se levarmos em conta seu timing perfeito no envio das dádivas. Por exemplo, como eu soube que estava perto de uma fonte de água pelo fato de ele não ter me enviado nada, como soube que o xarope do sono não era apenas para aliviar a dor de Caio, e como sei agora que tenho que interpretar o papel de garoto apaixonado. Ele não fez tanto esforço assim para se conectar com Caio. Talvez ele pense que uma tigela de caldo seria apenas uma tigela de caldo para Caio, ao passo que eu saberia ver o que está por trás dela.
Um pensamento me ocorre, e fico impressionado pela pergunta ter demorado tanto a aflorar. Talvez seja porque só recentemente eu tenha começado a ver Carlinhos com algum grau de curiosidade.
– Como você acha que ele conseguiu?
– Quem? Conseguiu o quê? – pergunta Caio.
– Carlinhos. Como você acha que ele venceu os Jogos?
Caio reflete durante um bom tempo antes de responder. Carlinhos é bem corpulento, mas não é nenhuma maravilha física como Cato ou Thresh. Não é particularmente bonito. Não da maneira que faz com que os patrocinadores despejem dádivas sobre você. E é tão intratável que é difícil imaginar alguém se aliando a ele. Só há uma maneira de Carlinhos ter vencido, e Caio deixa escapar a resposta no exato momento em que eu mesmo estou chegando à conclusão.
– Ele foi mais esperto do que os outros.
Balanço a cabeça em concordância e abandono a conversa. Mas, secretamente, estou imaginando se Carlinhos ficou sóbrio por tempo suficiente para ajudar Caio e a mim porque pensou que nós dois talvez tivéssemos a sagacidade necessária para sobreviver. Talvez ele não tenha sido um beberrão a vida inteira. Talvez, no início, tenha tentado ajudar os tributos. Mas, então, a coisa ficou insuportável. Deve ser um horror ser mentor de dois jovens e depois assistir à morte deles pela televisão. Ano após ano após ano. Percebo que, se conseguir escapar daqui, esse se tornará meu emprego. Orientar as crianças do Distrito 12. A ideia é tão repulsiva que a arranco de minha cabeça.
Quase meia hora se passou quando decido que preciso comer novamente. Caio também está muito faminto para se opor. Enquanto como mais duas pequenas porções de cozido de cordeiro e arroz, ouvimos o início do hino. Caio encosta os olhos na abertura entre as pedras para observar o céu.
– Não deve haver nada para se ver hoje – comento, muito mais interessado no cozido do que no céu. – Não aconteceu nada, senão a gente teria escutado o canhão.
– Luan – murmura Caio.
– O quê? Quer dividir outro pãozinho?
– Luan – repete ele, mas meu desejo é ignorá-lo.
– Vou dividir. Mas vou guardar o queijo pra amanhã. – Caio está olhando para mim. – Que é?
– Thresh morreu.
– Não pode ser.
– O tiro do canhão deve ter sido durante a tempestade e a gente nem se deu conta.
– Tem certeza? Afinal, está chovendo à beça hoje. Não sei como você consegue enxergar alguma coisa. – Eu o empurro para o lado e espremo os olhos na direção do céu escuro e chuvoso. Por mais ou menos dez segundos, vislumbro a imagem distorcida de Thresh e então ele desaparece. Num piscar de olhos.
Meu corpo desaba contra as pedras e esqueço por um momento a tarefa que estava realizando. Thresh morto. Eu deveria estar feliz, certo? Menos um tributo a encarar. E poderoso, ainda por cima. Mas não estou feliz. Só consigo pensar em Thresh me deixando escapar, me deixando correr por causa de Rue, que morreu com aquela lança no estômago...
– Você está bem? – pergunta Caio.
Dou de ombros evasivamente e coloco as mãos nos cotovelos, aproximando-os do corpo. Tenho de ocultar a dor verdadeira porque quem é que vai apostar em um tributo que não para de choramingar por causa das mortes de seus oponentes? Rue era diferente, éramos aliados. Ela era jovem demais. Mas ninguém vai entender a tristeza que sinto pelo assassinato de Thresh. A palavra me deixa em estado de alerta em um segundo. Assassinato! Ainda bem que não falei em voz alta. Isso não me daria muitos pontos na arena. Faço outro comentário:
– É só que... se a gente não vencesse... eu queria que Thresh vencesse. Porque ele me deixou viver. E por causa de Rue.
– Certo, eu sei. Mas isso significa que a gente está um passo mais próximo de voltar pro Distrito 12. – Ele aproxima um prato de comida de minhas mãos. – Come. Ainda está quente.
Dou uma colherada no ensopado para mostrar que não estou ligando tanto assim, mas a comida parece ter virado borracha em minha boca e preciso me esforçar bastante para engolir.
– Também significa que Cato voltará a nos caçar.
– E ele está novamente com suprimentos – diz Caio.
– Ele está ferido, aposto.
– Por que você está dizendo isso?
– Porque Thresh jamais cairia sem luta. Ele é muito forte. Enfim, era forte. E eles estavam no território dele.
– Bom. Quanto mais ferido Cato estiver, melhor. Imagino como Cara de Raposa está se virando.
– Ah, ela está bem – comento, irritado. Ainda estou com raiva por ela ter pensado em se esconder na Cornucópia e eu não. – Provavelmente vai ser mais fácil pegar Cato do que ela.
– Talvez um pegue o outro e a gente vá pra casa. Mas é melhor sermos mais cuidadosos com a vigilância. Eu cochilei algumas vezes.
– Eu também. Mas não essa noite.
Terminamos a refeição em silêncio e então Caio se oferece para montar guarda em primeiro lugar. Entoco-me no saco de dormir ao lado dele e cubro o rosto com o capuz para escondê-lo das câmeras. Só preciso de alguns instantes de privacidade para poder deixar minhas emoções aflorarem em meu rosto sem serem vistas. Debaixo do capuz, despeço-me silenciosamente de Thresh e o agradeço por me deixar viver. Prometo me lembrar sempre dele e, se puder, fazer alguma coisa para ajudar sua família e a de Rue, se sair vencedor. Então, mergulho no sono, confortado pela barriga cheia e pelo calor estável de Caio ao meu lado.
Quando ele me acorda mais tarde, a primeira coisa que registro é o cheiro de queijo de cabra. Ele está segurando metade de um pãozinho com o material branco e cremoso e com fatias finas de maçã por cima.
– Não fique chateado. Eu precisava comer de novo. Aqui está sua metade.
– Ah, como é bom – comento, mordendo imediatamente um pedaço enorme. O queijo forte e gorduroso tem o sabor igual ao que Ana faz, a maçã está doce e crocante. – Hummm.
– Nós fazemos uma torta de queijo de cabra e maçã na padaria.
– Aposto que é bem cara.
– Cara demais pra minha família comer. A menos que fique muito rançosa. É claro que praticamente tudo o que a gente come é rançoso. – E Caio enrola-se no saco de dormir. Em menos de um minuto está roncando.
Hmm... Sempre imaginei que os comerciantes tivessem uma vida mansa. E é verdade, Caio sempre teve comida suficiente. Mas deve ser meio deprimente passar a vida comendo pão velho, aqueles pães secos e duros que ninguém mais quis. Lá em casa, como eu trago comida diariamente, a maior parte dela é tão fresca que você precisa ficar atenta para ela não sair correndo.
Em algum momento do meu turno de guarda a chuva para, não de maneira gradual, mas de uma vez só. O temporal acaba, e há somente gotas residuais nos galhos e a correnteza do riacho que transbordou. Uma lua cheia e bela surge no céu, e, mesmo sem os óculos, consigo enxergar o exterior. Não consigo decidir se a lua é real ou meramente uma projeção dos Idealizadores dos Jogos. Sei que ela estava cheia pouco antes de eu sair de casa. Gustavo e eu a observamos surgir quando estávamos caçando a altas horas da noite.
Quanto tempo já passei aqui? Imagino que tenha passado mais ou menos duas semanas na arena, e houve aquela semana de preparação na Capital. Talvez a lua tenha completado seu ciclo. Por algum motivo, desejo muito que essa seja a minha lua, a mesma que vejo da floresta que cerca o Distrito 12. Isso me daria algo a que me agarrar no mundo surreal da arena, onde a autenticidade de tudo deve ser colocada em xeque.
Restam quatro de nós.
Pela primeira vez, permito-me verdadeiramente pensar na possibilidade de que talvez eu consiga mesmo voltar para casa. E atingir a fama. E riqueza. E conseguir minha casa própria na Aldeia dos Vitoriosos. Minha mãe e Ana morariam lá comigo. Não teríamos medo da fome. Seria um novo tipo de liberdade. Mas... e aí? Como seria minha vida diária? A maior parte dela é dedicada à busca de comida. Se tirarem isso de mim, nem tenho mais certeza de quem sou, de qual é a minha identidade. A ideia me assusta um pouco. Penso em Carlinhos, com todo o dinheiro que tem. Em que sua vida se transformou? Ele vive sozinho, sem esposa ou filhos, e bêbado a maior parte do tempo. Não quero acabar desse jeito.
– Mas você não vai estar sozinho – sussurro para mim mesmo. Tenho minha mãe e Ana. Bem, por enquanto. Depois... não quero pensar sobre depois, quando Ana tiver crescido, quando minha mãe tiver morrido. Sei que nunca vou me casar, nunca vou correr o risco de colocar uma criança nesse mundo. Porque se tem uma coisa que ser vitorioso não garante é a segurança de seus filhos. Os nomes dos meus filhos apareceriam nas bolas da colheita como quaisquer outros. E juro que nunca vou deixar isso acontecer.
O sol se ergue por fim, sua luz deslizando sobre as rachaduras e iluminando o rosto de Caio. Em quem ele vai se transformar se voltarmos para casa? Esse garoto desconcertante, de boa índole, que consegue bolar mentiras tão convincentes que toda a Panem acredita que ele esteja perdidamente apaixonado por mim. E vou ter de admitir, há momentos em que até eu acredito. O que acontecerá com ele? Pelo menos, nós seremos amigos. Nada vai mudar o fato de que salvamos a vida um do outro aqui. E, além disso, ele nunca vai deixar de ser o garoto com o pão. Bons amigos. Mas nada além disso... e eu sinto os olhos cinzentos de Gustavo, lá do Distrito 12, me observando enquanto observo Caio.
O desconforto me obriga a me mover. Aproximo-me e sacudo o ombro de Caio. Seus olhos se abrem sonolentos, e, quando se fixam em mim, ele me puxa e me dá um longo beijo.
– Estamos perdendo tempo de caçada – digo, quando finalmente consigo me afastar.
– Eu não chamaria isso de perda de tempo – diz ele espreguiçando-se longamente enquanto se senta. – Quer dizer então que a gente caça de estômago vazio pra ter uma vantagem?
– Não, não. A gente enche a barriga pra ficar mais poderoso.
– Pode contar comigo – diz Caio. Mas dá para ver que ele fica surpreso quando divido o resto do cozido e do arroz e entrego a ele um prato bem-servido. – Tudo isso?
– A gente recupera hoje – respondo e ambos mergulhamos em nossos respectivos pratos. Mesmo frio, é uma das melhores coisas que já provei na minha vida. Deixo o garfo de lado e raspo os últimos resquícios de molho com o dedo. – Já estou até vendo Lucas Guimarães estremecendo com meus modos.
– Ei, Lucas! Olha só pra isso! – chama Caio. Ele joga o garfo por cima do ombro e literalmente lambe o prato, produzindo ruídos de extrema satisfação. Depois, manda um beijo para ele e diz: – Estamos com saudade de você, Lucas!
Cubro sua boca com minha mão, mas estou rindo.
– Para com isso! Cato pode estar aqui fora!
Ele retira minha mão e diz:
– E eu com isso? Agora tenho você pra me proteger. – Ele me puxa para perto dele.
– Dá um tempo – peço, exasperado, tentando me livrar da sua pegada, mas não antes de receber outro beijo.
Parados do lado de fora da caverna e já preparados para partir, voltamos a ficar sérios. É como se nos últimos dias, protegidos pelas pedras, pela chuva e até pelo fato de a atenção de Cato estar voltada para Thresh, nós tivéssemos tido uma trégua, uma espécie de feriado. Agora, embora o dia esteja ensolarado e quente, nós dois temos a sensação de estar de volta aos Jogos. Entrego minha faca a Caio, já que todas as armas que ele possuía se perderam, e ele a prende no cinto. Minhas últimas sete flechas – das doze, sacrifiquei três na explosão e duas no ágape – chacoalham soltas na aljava. Não posso me dar ao luxo de perder mais nenhuma.
– Ele já deve estar na nossa cola a uma hora dessas – diz Caio. – Cato não é do tipo que espera sua presa aparecer.
– Se ele estiver ferido... – começo.
– Isso não vai fazer diferença – interrompe Caio. – Se puder se mover, ele virá.
Com toda aquela chuva, o riacho transbordou pelos dois lados da margem. Paramos para encher as garrafas de água. Verifico as arapucas que montei dias atrás e vejo que estão vazias. Não é nenhuma surpresa, considerando o clima dos últimos dias. Além do mais, não avistei muitos animais ou sinais de algum nessa área.
– Se a gente quer comida, é melhor voltar pro meu antigo local de caçada – sugiro.
– Você manda. Basta me dizer o que você quer que eu faça – diz Caio.
– Fica de olho – digo. – E é melhor caminhar sobre as pedras o máximo possível, não faz sentido a gente deixar rastros pra ele seguir. E ouça por nós dois. – Está mais do que claro, a essa altura, que a explosão destruiu definitivamente a audição do meu ouvido esquerdo.
Eu caminharia na água para evitar qualquer tipo de pegada, mas não tenho certeza se a perna de Caio aguenta a correnteza. Embora os medicamentos tenham erradicado a infecção, ele ainda está bem fraco. Minha testa dói no local que a faca rasgou, mas, depois de três dias, o sangramento parou. Estou com um curativo em volta da cabeça, caso o esforço físico abra a ferida novamente.
Enquanto subimos o riacho, passamos pelo local onde encontrei Caio camuflado na lama. Uma boa notícia: depois do temporal e do transbordamento do riacho, todos os sinais de seu esconderijo foram apagados. Isso significa que, se preciso for, podemos voltar para a caverna. Do contrário, eu não arriscaria fazer isso com Cato em nosso encalço.
Os penedos se transformam em rochas que, por fim, transformam-se em cascalhos, e então, para meu alívio, estamos de volta às agulhas de pinheiro e à delicada inclinação do piso da floresta. Pela primeira vez, percebo que temos um problema: andar pelo terreno pedregoso com uma perna machucada. Bem, não há como não fazer algum ruído – é natural – mas, mesmo caminhando sobre o macio leito de agulhas de pinheiro, Caio faz barulho. E quando digo barulho é barulho mesmo, como se ele estivesse fazendo questão de bater o pé com toda a força ou algo assim. Viro-me e olho para ele.
– O que é? – ele pergunta.
– Você precisa fazer menos barulho ao andar – respondo. – Não estou nem me referindo a Cato, mas você deve estar espantando todos os coelhos num raio de dez quilômetros.
– É mesmo? Desculpa, eu não sabia.
Então, recomeçamos e ele está um pouquinho melhor, mas mesmo com um único ouvido funcionando, ele me sobressalta.
– Você consegue tirar essas botas? – sugiro.
– Aqui? – pergunta ele, sem conseguir acreditar, como se eu tivesse pedido que caminhasse descalço sobre brasa ou algo parecido. Tenho de me lembrar que ele ainda não está familiarizado com a floresta, que é o local assustador e proibido localizado além das cercas do Distrito 12. Penso em Gustavo, com sua pisada de veludo. É arrepiante como ele produz tão pouco som, mesmo caminhando sobre uma camada de folhas no outono, quando é um desafio fazer qualquer movimento sem espantar a caça. Tenho certeza de que ele está gargalhando em casa.
– Isso – respondo, impaciente. – Também vou tirar as minhas. Assim os dois fazem menos barulho. – Como se eu estivesse fazendo algum barulho. Então, nós dois removemos nossas botas e meias e, apesar de alguma melhora, eu poderia jurar que ele está se esforçando para quebrar todos os galhos que vê pelo caminho.
Não preciso nem dizer que, embora sejam necessárias várias horas para alcançar o antigo acampamento que compartilhei com Rue, ainda não atirei em nada. Se o riacho se aquietasse, os peixes poderiam ser uma opção, mas a correnteza ainda está forte demais. Quando paramos para descansar e beber água, tento encontrar uma solução. O ideal seria deixar Peeta colhendo algumas raízes fáceis de localizar enquanto eu caçasse, mas aí ele teria de ficar com uma única faca para se defender das lanças e da força superior de Cato. Então, o que eu realmente gostaria de fazer é tentar escondê-lo em algum lugar seguro, sair para caçar e depois voltar para buscá-lo. Mas tenho a sensação de que seu ego não aceitará essa sugestão.
– Luan – chama ele. – Precisamos nos separar. Sei que estou espantando os animais.
– Só porque sua perna está machucada – digo, com generosidade, porque na verdade é visível que isso é apenas uma pequena parte do problema.
– Eu sei. Então, por que você não vai? Mostra pra mim algumas plantas que eu possa colher e assim nós dois seremos úteis.
– Não se Cato aparecer e te matar. – Tento dizer isso de modo simpático, mas, mesmo assim, ainda parece que estou pensando que ele é um fracote.
Surpreendentemente, ele apenas ri.
– Olha aqui, consigo encarar Cato. Já lutei com ele antes, não lutei?
Certo, e o resultado foi fantástico. Você acabou quase morto naquela lama. É isso o que quero dizer, mas não consigo. Afinal, ele realmente salvou minha vida ao enfrentar Cato. Tento uma outra tática.
– E se você subisse em uma árvore e ficasse de vigia enquanto eu caço? – sugiro, tentando fazer com que a coisa soe como um trabalho bem importante.
– E se você me mostrasse o que é comestível por aqui e fosse atrás de alguma carne pra gente comer? – pergunta ele, imitando meu tom de voz. – Só não vai muito longe porque se precisar de ajuda vai ser difícil.
Suspiro e lhe mostro algumas raízes que ele pode arrancar. Nós precisamos de comida, isso é inquestionável. Uma maçã, dois pãezinhos e um pedacinho de queijo do tamanho de uma ameixa não sustentam ninguém por muito tempo. Não vou me distanciar tanto e espero que Cato esteja bem longe.
Ensino-lhe um assobio de pássaro – não uma melodia como a de Rue, mas um assobio simples de duas notas – que podemos usar para comunicar um ao outro que estamos bem. Felizmente, ele é bom nisso. Vou embora, deixando-o com a mochila.
Sinto-me como se tivesse onze anos novamente, acorrentado não à segurança da cerca, mas a Caio, permitindo a mim mesmo percorrer no máximo vinte, quem sabe trinta metros de área de caça. Contudo, distante dele, a floresta está viva e repleta de sons de animais. Estimulado por seus assobios periódicos, eu me permito aventurar-me um pouco mais além e logo tenho dois coelhos e um esquilo gordo como recompensa. Decido que já é o bastante. Posso armar as arapucas e quem sabe pescar algum peixe. Com as raízes de Caio, teremos comida suficiente por enquanto.
Enquanto percorro a curta distância de volta, noto que nós não trocamos sinais há algum tempo. Quando meu assobio não recebe resposta, corro. Quase imediatamente, encontro a mochila e uma pilha bem-arrumada de raízes em seu interior. O pedaço de plástico foi estendido no chão onde o sol atinge a camada solitária de amoras que o cobre. Mas onde está ele?
– Caio! – grito, em pânico. – Caio! – Volto-me na direção de um farfalhar de arbustos e quase acerto uma flecha nele. Felizmente, puxo meu arco no último segundo e ela se finca num carvalho à sua esquerda. Ele dá um salto para trás, soltando um punhado de amoras na relva.
Meu medo se transforma em raiva.
– O que você está fazendo? Você deveria estar aqui e não correndo na floresta!
– Achei algumas amoras perto do riacho – diz ele, visivelmente confuso com meu ataque de fúria.
– Eu assobiei. Por que você não assobiou de volta? – retruco.
– Não ouvi. A água é barulhenta demais, acho – responde ele. Caio se aproxima e coloca as mãos em meus ombros. Só então percebo que estou tremendo.
– Pensei que Cato tivesse te matado! – Estou quase gritando.
– Não, eu estou bem. – Ele me abraça, mas eu não retribuo. – Luan?
Empurro-o para longe, tentando organizar meus sentimentos.
– Se duas pessoas combinam de fazer um sinal elas precisam ficar ao alcance uma da outra. Porque, se uma delas não responder, os dois vão ficar encrencados, certo?
– Certo!
– Certo. Porque foi isso o que aconteceu com Rue e acabei sendo obrigado a assistir à morte dela! – Dou as costas a ele, vou até a mochila e abro uma nova garrafa de água, embora ainda reste um pouco na minha. Mas ainda não estou pronto para perdoá-lo. Noto a comida. Os pãezinhos e as maçãs estão intactos, mas alguém com toda certeza pegou um dos pedaços de queijo. – E você, ainda por cima, comeu sem mim! – Para falar a verdade, não dou a mínima, só quero mais um motivo para ficar com raiva.
– O quê? Não comi, não – diz Caio.
– Ah, então as maçãs devem ter comido o queijo, quem sabe.
– Eu não sei o que comeu esse queijo – diz Caio, lenta e educadamente, como se estivesse tentando não perder a calma –, mas não fui eu. Eu estava no riacho colhendo amoras. Quer um pouco?
Até que eu queria, para ser sincero, mas ainda não estou pronto para deixar a discussão de lado. Caminho até elas e dou uma olhada. Nunca vi esse tipo antes. Não, vi sim. Mas não na arena. Essas não são as amoras de Rue, embora sejam semelhantes. E tampouco parecem ser qualquer uma que eu tenha estudado durante o treinamento. Abaixo-me e pego algumas, rolando-as entre os dedos.
A voz de meu pai ecoa em minha mente: “Essas não, Luan. Essas nunca. São amoras-cadeado. Você morre antes que elas cheguem ao seu estômago.”
Nesse exato instante, ouvimos um tiro de canhão. Giro o corpo, na expectativa de ver Caio caído no chão, mas ele apenas ergue as sobrancelhas. O aerodeslizador aparece a uns cem metros de distância. O que resta do corpo descarnado de Cara de Raposa é erguido no ar. Posso ver os lampejos de seu cabelo ruivo à luz do sol.
Eu devia ter percebido assim que notei o sumiço do queijo...
Caio está me segurando pelo braço, puxando-me na direção da árvore.
– Suba. Ele vai estar aqui a qualquer momento. A gente vai ter mais chance se lutar do alto.
Interrompo-o, subitamente calmo.
– Não, Caio, foi você quem matou ela, não Cato.
– O quê? Não me encontro com ela desde o primeiro dia. Como é que eu poderia ter matado essa garota?
Como resposta, estendo as amoras.

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