20° capítulo

81 8 3
                                    

Levo uma hora para persuadir Caio a tomar o caldo. Imploro, ameaço e, claro, beijo, mas finalmente, gole após gole, ele esvazia o pote. Então, deixo que ele caia no sono e vou cuidar de minhas próprias necessidades, colocando para dentro uma ceia de ganso silvestre e raízes enquanto assisto à recontagem diária no céu. Nenhuma nova vítima. Ainda assim, Caio e eu proporcionamos ao público um dia razoavelmente interessante. Se tivermos sorte, os Idealizadores dos Jogos vão nos permitir uma noite tranquila.
De maneira automática, observo nosso entorno, atrás de uma boa árvore para me aninhar antes de perceber que isso acabou. Pelo menos por enquanto. Não posso deixar Caio desprotegido no chão. Deixei intocado o local de seu último esconderijo na margem do riacho – como é que eu poderia escondê-lo? – e nós estamos no máximo a cinquenta metros rio abaixo. Coloco os óculos, deixo minhas armas preparadas e me posiciono para montar guarda.
A temperatura cai rapidamente e logo estou congelando até os ossos. Por fim, cedo e deslizo para dentro do saco de dormir e me junto a Caio. Está bem quentinho e me enrosco gratificado até perceber que está muito mais do que quente. Está fervendo, porque o saco está refletindo a febre dele. Verifico a testa de Caio e noto que está ressecada e pegando fogo. Não sei o que fazer. Deixá-lo no saco e esperar que o calor excessivo acabe com a febre? Levá-lo para fora e esperar que o ar frio da noite o refresque? Acabo simplesmente umedecendo uma bandagem e colocando-a sobre sua testa. Acho pouco, mas estou com medo de fazer alguma coisa drástica demais.
Passo a noite meio sentado, meio deitado, próximo a Caio, refazendo o curativo e tentando não pensar no fato de que, ao me associar a ele, acabei me tornando muito mais vulnerável do que quando estava sozinho. Amarrado ao chão, montando guarda, com uma pessoa bastante doente para tomar conta. Mas eu sabia que ele estava ferido. E, ainda assim, fui atrás dele. Vou ser obrigado a acreditar que, qualquer que tenha sido o instinto que me levou a encontrá-lo, foi bem-intencionado.
Quando o céu adquire uma tonalidade rosada, reparo na camada de suor sobre a boca de Caio e descubro que a febre passou. Ele não voltou ao normal, mas a temperatura baixou alguns graus. Na noite passada, quando eu estava colhendo vinhas, dei de cara com um arbusto cheio das amoras de Rue. Agora, colho um punhado da fruta e amasso tudo no pote do caldo com água gelada.
Quando chego à caverna, Caio está fazendo um enorme esforço para se levantar.
– Acordei e você tinha saído – diz ele. – Fiquei preocupado com você.
Tenho que rir ao ajudá-lo a se deitar novamente.
– Você ficou preocupado comigo? Por acaso já viu o seu estado?
– Imaginei que talvez Cato e Clove pudessem ter te achado. Eles gostam de caçar à noite – diz ele, ainda sério.
– Clove? Quem é essa aí?
– A garota do Distrito 2. Ela ainda está viva, certo?
– Certo. Só restam eles e nós e mais Thresh e Cara de Raposa. Esse é o apelido que dei pra garota do 5. Como você está se sentindo?
– Melhor do que ontem. Isso aqui é um grande avanço em relação à lama – diz ele. – Roupa limpa, remédios, saco de dormir... e você.
Ah, tudo bem, a historinha romântica. Eu me aproximo para tocar seu rosto e ele pega minha mão e a pressiona contra os lábios. Lembro-me de meu pai fazendo exatamente a mesma coisa com a minha mãe e imagino onde Caio aprendeu o gesto. Certamente não foi com o pai e nem com aquela bruxa da sua mãe.
– Não vai mais ganhar beijo até comer – informo.
Ajudo-o a se escorar na parede da caverna e ele engole obedientemente as colheradas da papa de amoras que lhe dou. Mas recusa novamente o ganso silvestre.
– Você não dormiu – comenta Caio.
– Estou bem – minto. A verdade é que estou exausto.
– Durma um pouco agora. Eu monto guarda. Acordo você se alguma coisa acontecer – oferece ele. Hesito. – Luan, você não vai poder ficar acordado pra sempre.
Ele tem razão nesse ponto. Em algum momento, terei que dormir. E, provavelmente, será melhor fazê-lo agora que ele parece estar relativamente alerta e nós dispomos da luz do dia como nossa aliada.
– Tudo bem. Mas só por algumas horas. Depois, você me acorda.
Está quente demais para dormir no saco agora. Estiro-o sobre o piso da caverna e me deito, uma das mãos de prontidão no arco, caso seja necessário utilizá-lo às pressas. Caio está sentado ao meu lado, encostado na parede, sua perna ferida esticada à minha frente, seus olhos fixos no mundo exterior.
– Vai dormir – diz ele, suavemente. Sua mão afasta carinhosamente alguns fios de cabelo rebeldes de minha testa. Ao contrário dos beijos encenados e das carícias que vinham se desenrolando até agora, esse gesto parece natural e reconfortante. Não quero que pare, e ele não para. Ainda está acariciando meus cabelos quando caio no sono.
Demais. Durmo demais. Assim que abro os olhos, percebo que já estamos no meio da tarde. Caio continua ao meu lado, sua posição imutável. Eu me sento, sentindo-me um pouco na defensiva, mas muito mais descansado do que estive em vários dias.
– Caio, você devia ter me acordado antes.
– Pra quê? Não tem nada acontecendo aqui. Além do mais, gosto de te ver dormir. Você perde a cara brava. Melhora muito sua aparência.
Isso, é claro, evoca uma “cara brava” que o faz rir. Então, percebo o quanto seus lábios estão secos. Sinto sua temperatura. Está quente como um forno. Ele afirma que tem bebido água, mas os contêineres ainda me parecem cheios. Dou a ele mais alguns comprimidos e fico na sua frente enquanto bebe água, primeiro um galão e depois outro. Então trato os ferimentos menores, as queimaduras, as ferroadas, que estão obviamente melhorando. Tomo coragem e desenrolo o curativo da perna.
Meu coração dá um salto. Está pior, muito pior. Não há mais pus, mas o inchaço aumentou e a pele brilhante está inflamada. Em seguida, vejo as listras vermelhas que sobem pela perna. Septicemia. Se não for tratada, vai matá-lo com certeza. Minhas folhas mastigadas e o unguento não fecharão essa ferida. Vamos precisar de antibióticos fortes vindos da Capital. Não consigo imaginar o custo de remédios tão potentes. Se Haymitch juntasse todas as doações de todos os patrocinadores, será que ainda assim conseguiria? Duvido muito. O preço das dádivas sobe à medida que os Jogos avançam. O que compra uma refeição completa no primeiro dia compra um biscoito no décimo segundo. E o tipo de medicamento de que Caio necessita deve ser uma dádiva difícil de se conseguir desde o início.
– Bem, inchou um pouco, mas não tem mais pus – observo, com a voz instável.
– Sei o que é septicemia, Luan – diz Caio. – Mesmo minha mãe não sendo curandeira.
– Basta que você chegue ao final, Caio. Na Capital eles terão como curar isso depois de vencermos.
– Sim, esse me parece um bom plano. – Sinto que ele diz isso mais por minha causa.
– Você precisa comer. Precisa se manter forte. Vou fazer uma sopa pra você.
– Não acenda uma fogueira. Não vale a pena.
– Vamos ver.
Quando levo o pote até o riacho, fico impressionada com o quanto ele está brutalmente quente. Juro que os Idealizadores dos Jogos estão aumentando progressivamente a temperatura durante o dia e baixando durante a noite. Mas o calor das pedras do riacho cozidas pelo sol me dá uma ideia. Talvez não seja preciso acender uma fogueira.
Posiciono-me sobre uma grande rocha achatada a meio caminho entre o riacho e a caverna. Depois de purificar metade de um pote de água, coloco-o ao sol e acrescento várias pedras quentes, do tamanho de ovos. Sou o primeiro a admitir que não sou um cozinheiro exemplar, mas já que o preparo de uma sopa envolve basicamente jogar tudo dentro de um pote e ficar esperando, o resultado é um de meus melhores pratos. Pico pedaços de ganso silvestre até virarem praticamente uma papa e misturo com algumas das raízes de Rue. Por sorte, tudo já tinha sido grelhado, de modo que só falta aquecer. A água já está morna, aquecida pelo sol e pelas pedras. Coloco a carne e as raízes dentro do pote, substituo as pedras e vou atrás de alguma verdura para acentuar um pouco o sabor. Em pouco tempo, descubro um tufo de cebolinhas na base de algumas rochas. Perfeito. Corto-as em pedaços bem fininhos e as adiciono ao pote. Troco novamente as pedras, tampo o pote e deixo tudo cozinhando.
Vi poucos sinais de caça nas redondezas, mas não me sinto confortável deixando Caio sozinho enquanto caço, então armo meia dúzia de arapucas e fico na esperança de ter alguma sorte. Imagino como estarão os outros tributos; como eles estarão se virando agora que sua principal fonte de alimento foi pelos ares. Pelo menos três deles, Cato, Clove e Cara de Raposa, tinham isso como garantia. Thresh, por sua vez, provavelmente não. Tenho a sensação de que ele deve compartilhar um pouco dos conhecimentos de Rue a respeito de como obter provisões da terra. Será que estão lutando uns contra os outros? Atrás de nós? Talvez um deles tenha nos localizado e esteja apenas esperando o momento certo para atacar. A ideia me faz retornar à caverna.
Caio está esticado em cima do saco de dormir na sombra das rochas. Embora se alegre um pouco quando apareço, seu sofrimento é mais do que visível. Coloco panos frios em sua cabeça, mas esquentam assim que tocam sua pele.
– Você quer alguma coisa? – pergunto.
– Não – responde ele. – Obrigado. Espera aí, quero sim. Conta uma história.
– Uma história? Sobre o quê? – Não sou muito de contar histórias. É como cantar. Mas, de vez em quando, Ana consegue me convencer a contar uma ou outra.
– Alguma coisa alegre. Conta pra mim qual foi o dia mais feliz da sua vida – sugere Caio.
Algo entre um suspiro e um resmungo de exasperação me escapa da boca. Uma história alegre? Isso vai requerer muito mais esforço do que a sopa. Vasculho minha mente em busca de lembranças agradáveis. A maioria delas tem a ver comigo e com Gustavo caçando e, de alguma maneira, não acho que isso cairia bem com Caio ou mesmo com o público. Sobra Ana.
– Já te contei como consegui a cabra de Ana? – pergunto. Caio sacode a cabeça e olha para mim na expectativa. Então, começo. Mas com cuidado. Porque minhas palavras estão sendo transmitidas para toda Panem. E, embora baste somar dois mais dois para as pessoas perceberem que caço ilegalmente, não quero causar transtornos a Gustavo ou a Greasy Sae ou ao açougueiro ou mesmo aos Pacificadores em meu distrito, que são meus clientes, anunciando publicamente que eles também estão infringindo a lei.
Aqui está a verdadeira história de como consegui o dinheiro para comprar Lady, a cabra de Ana. Era uma noite de sexta-feira, o dia anterior ao décimo aniversário de Ana, no fim de maio. Assim que a aula terminou, Gustavo e eu fomos correndo para a floresta porque eu queria vender muito para poder comprar um presente para Ana. Talvez algum tecido para um vestido novo ou uma escova de cabelos. Nossas arapucas haviam funcionado muito bem e a floresta estava repleta de verduras, mas nada de diferente do que normalmente conseguíamos em nossas empreitadas das sextas-feiras. Estava decepcionado em nosso caminho de volta, mesmo com Gustavo dizendo que com certeza nos sairíamos melhor no dia seguinte. Descansávamos um pouco perto do riacho quando o vimos. Um jovem cervo, provavelmente um filhote, pelo seu tamanho. Seus chifres estavam apenas surgindo, ainda pequenos e aveludados. Disposto a correr, mas curioso com nossa presença. Total falta de familiaridade com seres humanos. Belo.
Menos belo, talvez, no instante em que duas flechas o acertaram, uma no pescoço, a outra no peito. Gustavo e eu atiramos ao mesmo tempo. O cervo tentou correr, mas tropeçou, e a faca de Gustavo cortou-lhe a garganta antes que ele pudesse saber o que havia acontecido. Momentaneamente, senti uma angústia por matar algo tão jovem e inocente. Então, senti meu estômago roncar ao imaginar toda aquela carne jovem e inocente.
Um cervo! Gustavo e eu só tínhamos matado, até então, três da espécie ao todo. O primeiro, uma corça que havia ferido a perna de alguma maneira, quase não contava. Mas sabíamos, a partir daquela experiência, que não devíamos carregar a carcaça para o Prego. O bicho causara um caos tremendo, com as pessoas fazendo lances por determinadas partes e até mesmo tentando arrancar alguns pedaços elas mesmas. Greasy Sae interveio e nos mandou para o açougue junto com nosso cervo, mas não antes de o animal ser seriamente danificado, com pedaços de carne arrancados e o couro cheio de furos. Embora todos tenham pagado um preço justo, o valor final da caça ficou muito aquém do esperado.
Dessa vez, esperamos até o anoitecer e deslizamos através de um buraco na cerca próximo ao açougue. Apesar de sermos caçadores conhecidos de todos, não teria sido bom carregar um cervo de setenta quilos pelas ruas do Distrito 12 à luz do dia, como se estivéssemos esfregando o bicho na cara dos Pacificadores.
A açougueira, uma mulher baixinha e atarracada chamada Rooba, veio até a porta dos fundos. Ninguém regateia com Rooba. Ela dá um preço e você aceita ou não, mas o preço é sempre justo. Nós aceitamos sua oferta e ela incluiu no valor alguns bifes do animal que nós poderíamos pegar depois. Mesmo com o dinheiro dividido por nós dois, nem Gustavo nem eu jamais havíamos tido tanto de uma vez em nossa vida. Decidimos manter segredo e fazer uma surpresa para nossas famílias com a carne e o dinheiro no fim do dia seguinte.
Foi assim que consegui de fato o dinheiro para a cabra, mas conto a Caio que vendi um antigo medalhão de prata de minha mãe. Isso não vai atrapalhar a vida de ninguém. Então, prossigo com a história a partir do fim da tarde do dia do aniversário de Ana.
Gustavo e eu fomos ao mercado na praça para que eu comprasse alguns materiais para a confecção do vestido. Enquanto eu estava passando o dedo sobre um pedaço de tecido azul de algodão, alguma coisa me chamou atenção. Há um velho que possui um pequeno rebanho de cabras do outro lado da Costura. Não sei seu nome verdadeiro, todo mundo só se refere a ele como o Homem das Cabras. Suas juntas são inchadas e deformadas, e ele tem uma tosse seca que prova que passou vários anos nas minas. Mas tem sorte. De alguma maneira, conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar cabras e agora tem o que fazer na velhice, além de morrer de fome lentamente. Ele é imundo e impaciente, mas as cabras são limpas e seu leite é bem nutritivo, se você tiver como pagar por ele.
Uma das cabras, branca com manchas pretas, estava deitada em cima de uma carroça. Era fácil ver o motivo. Alguma coisa, provavelmente um cão, havia machucado o seu ombro esquerdo e um processo infeccioso havia se instalado. Estava tão ruim que o Homem das Cabras precisava erguê-la para ordenhá-la. Mas ocorreu-me que talvez eu conhecesse alguém capaz de curar a ferida.
– Gustavo – sussurrei. – Quero dar aquela cabra a Ana.
Possuir uma cabra pode mudar sua vida no Distrito 12. Esses animais podem comer quase qualquer coisa, a Campina é um lugar perfeito para se alimentarem e eles conseguem produzir quase quatro litros de leite por dia. Para beber, para se fazer queijo, para ser vendido. Não é contra a lei.
– Ela está bem machucada – observou Gustavo. – É melhor a gente olhar de perto.
Nós nos aproximamos e compramos um copo de leite para tomarmos juntos. Então, ficamos perto da cabra, como se estivéssemos apenas curiosos.
– Deixa ela em paz – advertiu o homem.
– Só estamos olhando – respondeu Gustavo.
– Então olha rápido. Ela está indo pro açougue. Quase ninguém compra o leite dela e ainda por cima só pagam metade do preço – informou o homem.
– Quanto a açougueira está dando por ela? – perguntei.
O homem deu de ombros.
– Fica por aí que você vai ver. – Virei-me e vi Rooba atravessando a praça e vindo em nossa direção. – Sorte sua você ter aparecido – disse o Homem das Cabras assim que ela chegou. – O garoto está de olho na sua cabra.
– Não se ela já estiver prometida – respondi, descuidadamente.
Rooba me olhou de cima a baixo e então franziu o cenho na direção da cabra.
– Não vejo como. Olha só aquele ombro. Aposto que metade da carcaça deve estar podre demais. Não deve dar nem pra fazer salsicha.
– O quê? – surpreendeu-se o Homem das Cabras. – Mas a gente tinha um trato.
– A gente tinha um trato com relação a um animal com algumas marcas de dentes. Não isso aqui. Vende o bicho pro garoto se ele for idiota o suficiente pra pagar por ele – disse Rooba. Quando ela se pôs a caminho, pude vê-la piscando para mim. Levamos meia hora para chegar a um acordo sobre o preço. Uma multidão considerável já havia se juntado para dar opinião. Seria um negócio excelente se a cabra vivesse. Eu teria sido roubado se ela morresse. As pessoas tomaram partido na discussão, mas acabei levando a cabra.
Gustavo ofereceu-se para carregá-la. Acho que ele queria ver a cara de Ana tanto quanto eu. Num impulso, acabei comprando uma fitinha cor-de-rosa e a amarrei em torno do pescoço do bicho. Em seguida, corremos de volta para minha casa.
Você tinha que ver a reação de Ana quando aparecemos com a cabra. Lembre-se de que essa é a garota que chorou para salvar Buttercup, aquele gato horroroso. Ela ficou tão entusiasmada que começou a chorar e rir ao mesmo tempo. Minha mãe não se alegrou tanto ao ver o machucado, mas a dupla logo começou a trabalhar nele, picando ervas e persuadindo o animal a ingerir tudo.
– Elas parecem você – comenta Caio. Eu quase havia me esquecido de sua presença.
– Ah não, Caio. Elas fazem mágica. Aquela coisinha não morreria nem que tentasse. – Então, mordo a língua, percebendo o que aquelas palavras poderiam significar para Caio, que está morrendo nas minhas mãos incompetentes.
– Não se preocupe. Não estou tentando – brinca ele. – Termina logo essa história.
– Bem, é isso. Só lembro que naquela noite Ana insistiu para dormir com Lady sobre um cobertor próximo à lareira. E pouco antes das duas adormecerem, a cabra lambeu seu rosto, como se estivesse lhe dando um beijo de boa-noite ou alguma coisa assim – conto. – A cabra já estava apaixonada por ela.
– Ela ainda estava usando a fitinha cor-de-rosa? – pergunta ele.
– Acho que sim. Por quê?
– Estou apenas tentando visualizar a cena – responde, pensativo. – Dá pra ver porque esse dia te deixou tão feliz.
– Bem, eu sabia que aquela cabra seria uma pequena mina de ouro.
– Sim, é claro que eu estava me referindo a isso e não à duradoura alegria que você proporcionou à irmã que você ama tanto, a ponto de substituí-la na colheita – diz Caio, secamente.
– A cabra se pagou. Muitas e muitas vezes o valor que dei por ela – retruco, num tom de superioridade.
– Bem, ela não ousaria fazer qualquer outra coisa depois de você ter salvado a vida dela – devolve Caio. – E isso vale para mim também.
– Jura? Quanto foi que você me custou mesmo? – pergunto.
– Uma boa quantidade de problemas. Não se preocupe. Você vai receber tudo de volta.
– Você não está dizendo coisa com coisa. – Coloco a mão na sua testa. A febre não para de subir. – Mas está menos quente.
O som de trompetes me sobressalta. Levanto-me e vou até a boca da caverna num segundo, disposto a não perder uma sílaba sequer. É meu novo melhor amigo, Claudius Templesmith e, como eu já esperava, está nos convidando para um ágape. Bem, nós não estamos tão famintos assim e, na verdade, estou dispensando sua oferta com indiferença quando ele diz:
– Esperem um pouco. Alguns de vocês já devem estar declinando de meu convite. Mas esse não será um ágape qualquer. Cada um de vocês precisa desesperadamente de alguma coisa.
De fato, preciso desesperadamente de alguma coisa. De alguma coisa que possa curar a perna de Caio.
– Cada um de vocês encontrará essa alguma coisa na Cornucópia, ao amanhecer, dentro de uma mochila marcada com o número de seu distrito. Pensem bem antes de se recusarem a comparecer. Para alguns de vocês, essa será a última chance – conclui Claudius.
Não há mais nada, apenas suas palavras suspensas no ar. Dou um pulo quando Caio agarra meu ombro por trás.
– Não – diz ele. – Você não vai arriscar sua vida por mim.
– Quem disse que arriscaria?
– Quer dizer então que você não vai?
– É claro que não. Vê se me dá um pouco de crédito. Você acha que vou sair correndo pra encarar um vale-tudo com Cato, Clove e Thresh? Não seja idiota – respondo, ajudando-o a voltar para a cama. – Vou deixar que eles se engalfinhem e depois vamos ver quem aparece no céu à noite. A partir daí, traçamos um plano.
– Você mente tão mal, Luan. Não sei como você sobreviveu tanto tempo. – Ele comenta e depois começa a me imitar: – Eu sabia que aquela cabra seria uma pequena mina de ouro. Mas está menos quente. É claro que não vou. – Ele balança a cabeça. – Nunca blefe num jogo de cartas. Você vai perder tudo.
Uma sensação de raiva faz meu rosto queimar.
– Tudo bem, eu vou, e você não vai me impedir!
– Posso te seguir. Pelo menos parte do caminho. Pode ser que eu não chegue na Cornucópia, mas se eu berrar o seu nome, aposto que alguém vai poder me encontrar. E aí vou morrer com certeza.
– Você não consegue andar cem metros com essa perna.
– Então, eu me arrasto – diz Caio. – Se você for, eu vou.
Ele é suficientemente teimoso e, quem sabe, suficientemente forte para fazê-lo. Para vir uivando atrás de mim na floresta. Mesmo que um tributo não o encontre, pode ser que alguma outra coisa o faça. Ele não pode se defender. Provavelmente, eu teria de prendê-lo na caverna simplesmente para conseguir sair sozinho. E quem sabe o que o esforço não faria a ele?
– O que devo fazer então? Ficar aqui sentado assistindo à sua morte? – Ele deve saber que essa não é uma opção. Que o público me odiaria por isso. E, francamente, eu mesmo me odiaria também se nem ao menos tentasse.
– Não vou morrer. Prometo. Se você prometer não ir – diz ele.
Estamos numa espécie de impasse. Sei que não tenho condições de convencê-lo, de modo que nem tento. Finjo, relutantemente, prosseguir com seu jogo.
– Então você vai ter de fazer o que eu disser. Beber a água, me acordar na hora certa e comer toda a sopa por pior que seja o gosto dela! – rebato.
– Aceito. Ela está pronta?
– Espera aqui. – O tempo esfriou, apesar de o sol ainda estar alto. Os Idealizadores dos Jogos devem mesmo estar bagunçando a temperatura. Imagino que a coisa de que outra pessoa necessita desesperadamente é um bom cobertor. A sopa ainda está boa e quente no pote de ferro. E o sabor não é tão ruim assim.
Caio come sem reclamar, até raspa o pote para demonstrar entusiasmo. Ele começa a divagar sobre como está deliciosa, o que parece estimulante se você desconhece o que a febre faz com as pessoas. Ele está parecendo o Carlinhos pouco antes de o álcool afogá-lo na incoerência. Dou a ele mais uma dose do remédio para febre antes que perca completamente as estribeiras.
Enquanto desço ao riacho para me lavar, só consigo pensar que ele vai morrer se eu não for ao ágape. Vou conseguir mantê-lo por um ou dois dias, mas depois a infecção atingirá o coração ou o cérebro ou o pulmão e ele estará morto. E estarei aqui o tempo todo. Novamente. À espera dos outros.
Estou tão imerso em pensamentos que quase não percebo o paraquedas flutuando bem ao meu lado. Então, corro atrás dele, arrancando-o da água, rasgando o tecido prateado para retirar o frasco. Carlinhos conseguiu! Ele arranjou o remédio – não sei como, persuadiu algum bando de tolos românticos a vender suas joias, talvez – e vou poder salvar Caio! Mas é um frasco pequeno demais. O conteúdo deve ser bem forte para curar alguém tão doente quanto Caio. Uma pontinha de preocupação percorre meu corpo. Desatarraxo o frasco e aspiro profundamente. Meu ânimo despenca diante do aroma doce e enjoativo. Só para me certificar, coloco uma gota na ponta da língua. Não há dúvida, é xarope do sono. É um remédio comum no Distrito 12. Barato, para um medicamento, mas causa muita dependência. Quase todo mundo já tomou uma dose em algum momento da vida. Temos um pouco em casa. Minha mãe o administra a pacientes histéricos que necessitam de pontos em algum ferimento grave e precisam ser tranquilizadas, ou simplesmente o utiliza para ajudar pessoas com dor a dormir bem. Basta uma pequena quantidade. Um frasco desse tamanho poderia tirar Caio do ar por um dia inteiro, mas para que isso serviria? Estou com tanta raiva que estou a ponto de jogar a última dádiva de Carlinhos no riacho quando uma ideia me ocorre. Um dia inteiro? Isso é mais do que preciso.
Misturo um punhado de amoras, de modo que o sabor não fique tão acentuado a ponto de ser reconhecido, e adiciono algumas folhas de menta para equilibrar. Então, volto para a caverna.
– Trouxe um presentinho pra você. Acabei de achar mais um pé de amoras descendo o riacho.
Caio abre a boca para a primeira mordida sem hesitar. Engole e em seguida franze levemente a sobrancelha.
– Como são doces!
– São sim. São amoras de olmeiro. Minha mãe faz uma geleia maravilhosa com elas. Você nunca experimentou? – pergunto, enfiando mais uma colherada na sua boca.
– Não – diz ele, um pouco perplexo. – Mas o sabor é bem familiar. Amoras de olmeiro?
– Ah, não dá pra encontrar no mercado com muita facilidade, elas só crescem na natureza – explico. Outra colherada. Basta mais uma.
– O sabor é doce como xarope – diz ele, tomando a última colherada. – Xarope. – Seus olhos ficam arregalados quando ele percebe a verdade. Empurro a mão com força em sua boca e em seu nariz, forçando-o a engolir em vez de cuspir a papa. Ele tenta vomitar, mas é tarde demais, já está perdendo os sentidos. Enquanto ele apaga, vejo em seus olhos que o que acabei de fazer é imperdoável.
Fico sentado sobre os calcanhares, olhando para ele com uma mistura de tristeza e satisfação. Um rastro de amora escorre de seu queixo e eu o limpo.
– Quem é que não sabe mentir, Caio? – pergunto, embora saiba que ele não pode me ouvir.
Não tem problema. Panem inteira pode.

Jogos vorazes - CailuversionOnde histórias criam vida. Descubra agora