Eu quero te amar. (part. 2)

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(Aviso de conteúdo: homofobia, lgbtfobia)

A madrugada era marcada de enjoos e mais enjoos, uma empregada segurava o balde da mulher que vomitava todo o belo jantar que tinha comida aquela noite em comemoração ao compromisso da sobrinha. Miralva estava verde de tanto passar mal e os olhos vermelhos mostram que chorava antes de sentir que colocaria tudo para fora.

–Minha irmã? O que aconteceu? - Manoel Santana perguntou para a irmã mais velha, notando como ela estava encolhida no seu quarto.

A empregada resolveu os deixar sozinhos após explicar que viu a mulher passar mal enquanto procurava algumas ervas medicinais na cozinha. Quando estavam sozinhas a mulher se colocou no papel de irmã mais nova que precisava de cuidados e chorou como um bebê.

–Meu irmão, - tentou dizer enquanto secava os olhos, se encostando no balde acreditando que vomitaria novamente - eu presenciei uma coisa horrível essa noite e você sabe como eu sou muito sensível para isso.

–O que aconteceu? Fizeram alguma coisa com você?

–Não, fizeram conosco, com o nome da nossa família, meu irmão, - disse em tom decepcionado - o que você errou? Onde você errou? Por que não escutou nossos pais? Por que não escutou o Padre Ruy e deixou seu menino aos seus cuidados?

O Sr. Santana sentiu seu corpo gelar ao escutar as lamúrias da irmã, sabendo que envolvia seu filho primogênito tinha ciência que estava relacionado a sua inversão. Mesmo com as repreensões, mesmo que fechasse os olhos diversas vezes, mesmo que se convencesse que tudo estava bem, era impossível negar esse lado do rapaz.

–O que aquele sodomita fez?

–Você sabe?! - Ela gritou - E por que não resolveu isso logo? Meu irmão, que ruina! Acredito que também sabe o que aconteceu? - Manoel negou, não conseguindo falar nada com a garganta seca de angústia - Ele estava de mãos dadas, tocando um rapaz aqui em sua casa.

–Quando você viu isso?

–Durante o jantar de noivado, eu vim ao meu quarto aqui durante o jantar tirar meu colar que estava me incomodando muito, você sabe não escolhi os quartos do térreo por conta das minhas pernas não aguentariam subir essas escadas, e ao passar pelo quarto de estudos do Kelvin eu escutei murmúrios. O quarto estava escuro, tinha apenas um abajur ligado e eu vi os dois ajoelhados um para o outro - E virando sua cabeça de volta sentiu que iria vomitar novamente- Não me faça repetir nada disso, por favor.

–Eu só preciso saber com quem ele estava, sabe reconhecer com quem ele estava? - A mulher assentiu fraca e viu o irmão explodir de raiva - Me conte logo!

–Mesmo o quarto estando escuro eu reconheceria pois o porte selvagem não mente, era o filho do Dr. Almeida; o Ramiro.

Escutar aquelas palavras fez o patriarca da família se sentir um grande idiota. Sua mulher havia lhe alertado em uma noite em Manaus sobre essa possibilidade, mas acreditou que se eles tivessem todo o cuidado do mundo não aconteceria nada. Subestimou o visitante, não acreditou que Kelvin poderia se relacionar justamente com aquele tipo de rapaz, agora entendia os comentários sobre como os Almeida trouxeram uma mancha para Minas Gerais.

Não sabe onde tirou a frieza de apenas sentar no sofá em silêncio. Sua irmã chorava em seu ouvido para fazer algo, mas sabia que se fosse pela força de seus instintos pegaria uma espingarda e acabaria com a sua própria vida, então mandou a irmã se calar e ir dormir. A casa em silêncio foi importante para colocar seus pensamentos em ordem e saber como iria agir, e ao notar o céu ficando mais claro se levantou para trocar de roupa e aguardar o momento café da manhã, pedindo antes a um empregado que mandasse um recado cedo para a família Almeida.

Durante o café da manhã o ruivo estava mais bruto que o cotidiano, não deu bom dia, não elogiou sua esposa ou parabenizou sua filha, apenas tomou sua refeição em silêncio, engolindo junto às frutas a raiva por escutar seu filho, sonso, compartilhar o desejo de ir a Portugal estudar Direito assim que o casamento passar. Lembrava do Antônio Almeida falar sobre suas viagens a Lisboa e como o filho mais velho desejava passar uma temporada pelo país, se sentiu mais idiota ainda: então era esse o plano? Viver em sodomia em outro pais?

Na hora do almoço, se juntou à irmã e alegou disposição, resolvendo não almoçar com a família e aguarda o jantar, sabendo que o sangue quente do doutor o faria aparecer em sua porta hora ou outra. Pouco tempo antes do jantar ser servido, quando todos estavam na sala aproveitando um cigarro, a família chegou.

–Boa noite, - Santana falou não escondendo sua cara de nojo ao enxergar o mulato e seus dois filhos - querem se juntar a nós para jantar?

–Boa noite, gostaria de conversar primeiro com o senhor sobre o mal entendido da informação passada mais cedo.

–Mal entendido? - Fingiu confusão - Não há mal entendido algum, aliás deveriam ter avisado que estavam chegando, não posso deixar minha filha moça assim as disposições dos olhos de todos.

–Meu pai? - Graça perguntou confusa, notando o ar estranho da sala ir aumentando - Não é necessário fazer isso com a família do meu noivo.

–Não existe mais noivado, Graça. - Respondeu frio, fazendo sua família derrubar o queixo em surpresa - O noivado está cancelado.

–Como cancelado? Querido, - sua esposa se aproximou, segurando seu braço para acalmá-lo - confirmamos ontem com a festa a notícia, o que faremos agora?

–Fazemos outra festa para comemorar o cancelamento do acordo, - respondeu dando uma risada maluca - acabou, não existe mais casamento ou negócios entre nós e a família de Almeida.

–Sr. Santana, - Jonatas tomou a frente, com a voz polida e educada que escondia seu coração acelerado de medo - se houve algum mal entendido, algo que fizemos que acabou machucando sua honra ou nome da sua família podemos sentar e resolver, não é necessário tomar medidas tão drásticas.

–O senhor precisa estar aberto às discussões, parte do dote já foi passado, - Ramiro falou tentando ajudar - não acho justo com os convidados, com nossas famílias ou com sua própria filha este anúncio repentino.

–Sabemos do histórico de casamentos cancelados de vocês, para uma pessoa a beira da falência não deveria ser tão exigente da forma que é, - Antônio falou fazendo a pressão dos filhos baixarem, o correto era o pai não abrir a boca, pois não controlava sua língua afiada em frente a uma injustiça - Estamos lhe dando a chance de se resolver conosco como um homem, honre as calças que veste e converse conosco o motivo de tal decisão.

Manoel riu em deboche ao ver a atitude do mestiço, ele poderia estar certo sobre sua falência, mas não iria deixar que coisas tão baixas acontecessem debaixo do seu teto por conta disso. Poderia perder seu dinheiro, mas nunca a moral.

–Se querem saber o motivo, - abriu a boca, fazendo toda sua família suar frio com o que viria - deve perguntar primeiro a seu filho mais velho, ele sabe o que fez.

Ramiro levantou a cabeça assustado, sentindo o olhar de seu pai e seu irmão em cima de si julgadores, mas não querendo colocar em palavras suas hipóteses. O Neves olhou de relance para Kelvin que respirava nervoso sem saber qual seria a resposta do amante.

Resposta que nunca chegou, pois Tia Miralva apareceu do seu quarto em uma crise de histeria, iniciada talvez quando colocou os olhos dos visitantes. A mulher começou a gritar para que eles deixassem a casa, chamando de sujos, pecadores, sodomitas e crioulos. Kelvin e sua mãe resolveram tentar conter a mulher, enquanto Graça estava com o coração tão partido com o cancelamento do casamento que subiu para seu quarto para chorar.

Miralva apenas se acalmou quando seu sobrinho saiu de seu quarto, não antes de amarrá-la a cama para que não agredisse ninguém, e ficou sob os cuidados da cunhada que tentava acalmar a mais velha como se fosse um neném.

Kelvin estava nervoso, seus pensamentos estavam longe, preocupado sobre o que aconteceu e o que notaram de toda aquela confusão, por isso sequer notou o pai na escada olhando para ele com o maior desprezo do mundo.

Se encararam por alguns segundos, Kelvin se sentiu menor que uma criança e insignificante como um verme ao ser fuzilado com os olhos e quando abriu a boca para tentar perguntar se o pai desejava algo sentiu o tapa queimar em seu rosto.

O estalo foi tão alto que fez os ruídos da noite cessarem de medo, os olhos de Kelvin começaram a ficar cheios e agora ele não tinha coragem de falar mais nada.

–Você sabe o que ele fez? Não sabe? - Perguntou frio descendo para o mesmo degrau que o filho - Nojentos, debaixo do meu teto, a quanto tempo isso está acontecendo? - Kelvin ainda se mantinha quieto, e foi o suficiente para seu pai puxar seus cabelos da nuca com força escutando o filho gritar de dor - A quanto tempo?!

–Não sei o que o senhor está falando, não havia nada - Kelvin disse aquela meia verdade, realmente não tinha acontecido nada antes da noite do noivado.

Porém a resposta não agradou o homem, seu rosto queimava de raiva e sem pensar empurrou seu filho escada abaixo, percebendo que diversas vezes suas costas batiam na quina dos degraus e sua cabeça foi acertada em cheio pelo impulso da última queda.

Kelvin estava atirando no chão de dor, tanto física quanto emocional, o Sr. Santana apenas o observava de cima, mas os olhos cheios de lágrimas do filho impedia de saber qual sentimento se expressava nos traços do pai que logo o deixou sozinho, com dor e proibindo qualquer pessoa que passasse por ali de ajudá-lo. Desmaiou acordando apenas pela madrugada.

Ao acordar o Santana se sentia humilhado, fora tratando como um móvel qualquer por que passava e nem o carinho de sua mão teve. Depois de minutos se levantou, não havia jantado como todos da casa, então sua barriga doía de tão vazia. Subiu as escadas devagar se apoiando no batente, sentindo o sangue descer pelo seu rosto junto às lágrimas, e quando finalmente chegou ao segundo andar implorou baixinho por ajuda de um empregado antigo da casa, Matias, que se compadeceu e o guiou até o quarto.

–Escuta, - pediu engolindo seco - poderia me ajudar mais um pouco?

–Sr. Kelvin, não sei se devo. - O homem falou, coçando a barba branca que tinha pelos anos de trabalho naquela casa.

–Eu só preciso que envie um recado, estará enrolado em um papel, não leia de forma alguma, - pediu puxando sua caneta tinteiro grata por ela estar cheia e passando em uma folha de papel - entregue ao Ramiro, mais ninguém, somente a ele, por favor.

Os olhos molhados e o sangue na testa poderia fazer o coração de qualquer um doer, Kelvin nunca foi ruim como o dono da casa era, era uma criança amável e se tornou um jovem fechado, mas nunca maltratou ninguém com gestos e palavras.

–Preciso sair daqui antes que o patrão perceba. - Falou tomando o papel, Kelvin assentiu, tocando na sua ferida com cuidado, agradecendo mil vezes pelo gesto do empregado. O que lhe restava era esperar a confirmação com suas malas prontas.

passado presente - kelmiroOnde histórias criam vida. Descubra agora