Capítulo 2

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Enquanto os três bolos de tapioca que coloquei no forno para assar não ficam prontos, lavo a louça, pensando em meu futuro agora que acabei o segundo grau. Ensino médio feito a duras penas, depois que meu pai morreu e deixou a minha mãe com quatro filhos para criar.

Não é nada fácil ser diferente no meio que estou inserida. Tudo bem que nessa região que moro, boa parte da população é de origem indígena, nunca estou sozinha em uma desavença ou discussão, mas a discriminação existe e ela nem sempre é velada. Isso nunca me fez esconder o que sou e de onde venho. Tenho orgulho de ser indígena, nunca irei trair as minhas raízes, sou feliz assim e não tenho do que me envergonhar.

Mas ser a minoria às vezes cansa, então aqui em casa, na nossa barraca na beira da estrada, me sinto protegida. Gosto de ajudar a minha mãe, de ver os transeuntes pararem aqui por causa do sabor da nossa comida. É da barraca que sai o nosso sustento e se Deus permitir, eu serei alguém para dar mais conforto para a minha família.

Tiro os bolos do forno, coloco no balcão e vou me arrumar até que eles fiquem mornos para o corte.

Abro o armário e escolho a minha estampa favorita, a de onça. O vestido é justo e marca meu corpo magro e cheio de músculos. Olho no espelho e gosto muito da minha aparência. Nunca fiz academia igual as pessoas com posses, o que possuo é fruto de trabalho pesado no roçado que temos atrás de casa. É daqui que sai quase tudo o que produzimos para vender na barraca. Coloco uma sandália nos pés, passo meu perfume, algo que não vivo sem e volto para a cozinha para cortar os bolos.

- Sabe onde está Niara, Jandir? - Meu irmão mais novo está fazendo colares para a barraca de artesanato que temos na feira de São Luís. Todo o dinheiro que entra de lucro nessa barraca, vai para a nossa educação. Minha mãe sempre faz questão que ninguém fique sem estudos e eu também concordo com ela, apesar de saber que meu sonho nunca se concretizará com essas parcas economias.

- Ela foi na casa da Nancy. Têm um trabalho para entregar essa semana.

- Estou feliz com a sua dedicação na escola. Niara vai longe. - Minha mãe entra na sala.

- Dandara, leve um bolo para a barraca e sirva o cliente que está lá. Tem um milho assando para ele, não deixe passar muito, o homem é de fora, não deve apreciar o sabor muito tostado. - Faço o que ela me pede, correndo. Gosto quando chega na barraca, pessoas de outros estados. Fico prestando atenção no sotaque, no jeito de gesticular, no prazer que sentem quando provam da comida dos índios. A maioria acha que somos selvagens e não gostamos de trabalhar.

Saio de casa, apoio o prato principal no balcão, apanho um prato de sobremesa e coloco um pedaço generoso do bolo nele. Quando me viro, encontro um par de olhos me encarando. Não que isso seja incomum, só por ser índia as pessoas já me olham. É que o homem que dirige seu olhar para mim é o mais bonito que eu já coloquei meus olhos. Caminho em sua direção com o seu olhar pregado em mim. Em outra situação eu já estaria na defensiva, mas com o estranho bonito eu não sinto que preciso fazer isso.

Entrego o bolo para ele e aproveito que ele está focado em comer para analisar seu perfil. Alto, branco, cabelos fartos e organizados, roupa cara. Come o bolo com educação, parece que vem de berço. Ele elogia a comida, eu agradeço e corro buscar seu milho. Minha mãe falou sobre a tostagem do milho e é real, os turistas não gostam muito se passar um pouco do ponto.

Quando ele pergunta o meu nome, eu me derreto. Não foi impressão minha, ele realmente se interessou por mim. Ouso perguntar o seu nome, já que minha mãe ainda está dentro de casa. Eu jamais perguntaria o nome de um cliente se ela estivesse aqui. Ela não acha certo e eu também não gosto.

Luiz Miguel, um nome bonito. Combina com ele.

Odeio a intromissão de clientes assíduos da quinta-feira, dia de fornada de bolo de tapioca, mas como minha mãe não voltou para a barraca, tenho que atender. Queria saber mais do homem bonito.

Quando ele se levanta e paga pelo consumo, mais uma vez, eu agradeço e sugiro que ele volte outras vezes. Acompanho sua saída, sabendo que é muito raro um forasteiro parar na barraca duas vezes.

Só penso nele outra vez quando deito em minha cama. Eita, que homem vistoso. Eu não sou de me impressionar com alguém, nunca tive tempo para pensar em homem, namoro, sempre usei todo o meu tempo para estudar e trabalhar. Fiquei impressionada com ele, parece um homem seguro de si, poderoso, olhar quente. Sinto a pele do rosto pegar fogo, só de imaginar aquele homem sem roupas, roçando na minha pele.

Levanto-me da cama, vou até a pia do banheiro e jogo água no rosto, achando ridículo pensar em sexo com um homem que nunca vi na vida. Tudo bem, ele é lindo, tem masculinidade, um corpo sarado, mas não sei nada sobre o seu caráter, a não ser que ele me olhou como se estivesse me desnudando. Fecho a porta do banheiro, encosto nela e acho inapropriado estar excitada a essa hora. Meus irmãos dormem do outro lado da porta e eu me nego a gastar água outra vez para aplacar essa quentura do corpo, me masturbando antes de dormir. A minha sexualidade está cada vez mais aflorada e agora que completei dezenove anos, um fogacho sobe, tomando todo o meu corpo, quando penso nesse assunto.

Saio em silêncio e vou até a cozinha tomar um chá calmante. Acendo o fogo para esquentar a água e amasso camomila com folha de maracujá no pilão até a água ferver. Depois de pronto, apanho um pedaço de bolo, sento na mesa e tento não pensar no estranho. A porta se abre e Raoni entra em casa.

- Acordada, Dandara?

- Perdi o sono. Chegou tarde hoje. - Ele coloca suas coisas sobre a mesa dele.

- As vendas foram boas. Parece que há mais turistas na cidade nesse mês. Acho que no ano que vem você poderá fazer um cursinho para tentar o Enem para medicina. - Raoni toca em um assunto delicado. Mesmo que eu consiga atingir a nota máxima para entrar em uma universidade de medicina e seja aprovada em alguma universidade pública, como vou me sustentar nela? É um sonho impossível.

- Não é fácil, Raoni. Acho que terei que pensar em outras opções, mais próximas da nossa realidade. Um curso de enfermagem, talvez. - Ele passa a mão na minha cabeça.

- Você não vai desistir antes de tentar, já conversamos sobre isso. Vou deitar, estou cansado. Boa noite, cunhã.

Termino o chá e o bolo, escovo os dentes e deito na cama mais contrariada do que antes. É só falar nesse assunto de universidade para a minha cabeça doer. Eu podia querer ser tantas coisas, porque fui me apaixonar pela medicina?

Pela manhã, acordo de bem com a vida. Sempre será assim, o que não é para ser, não será e está tudo bem.

- Dandara, quero que você use o período da tarde para pagar o nosso aluguel e na volta passe para pegar fermento. - Gosto quando tenho que ir até o centro da cidade. Olho vitrines, vejo pessoas, saio um pouco do meu mundinho.

Dou sorte na ida, um vizinho vai para o centro e me dá carona. Com isso ganho um tempo a mais para olhar vitrines e provo umas roupas em uma loja de departamento só para ver como fica. Quando vou ao centro, procuro usar roupas que não chamem muita a atenção. Não faço isso por vergonha, faço porque não gosto de receber muitos olhares quando estou sozinha. Estou de jeans e camiseta preta, os cabelos amarrados em uma trança enorme e o adereço que entrega a minha origem é um brinco imenso de penas.

Com o pacote de fermento em mãos, decido ir para a casa ao invés de parar na banca de artesanato do Raoni e encontrar com Jandir para irmos embora mais tarde juntos.

Estou no ponto do ônibus e ele está atrasado, só para variar. Só noto quando um carro preto bonito para no ponto, quando o motorista abaixa o vidro do passageiro. É o estranho do dia anterior e ele sorri para mim.

- Oi, Dandara. Quer uma carona? Estou indo naquela direção. - Todos que estão no ponto de ônibus olham para nós e eu fico sem jeito de negar a carona. Vou até a porta do carro e ele abre para mim. Sento-me ao seu lado e coloco o pacote no colo, toda envergonhada. Assim que o carro se coloca em movimento, eu reclamo.

- Não precisava, senhor Luiz Miguel.

- Me chame de Miguel e não fique na defensiva, é apenas uma carona. Foi por acaso que a vi no ponto de ônibus. - Ele diz, me parece sincero, e decido relaxar. Ele não tem perfil de homem perigoso, meu sexto sentido me diz.

DANDARA - UMA HISTÓRIAOnde histórias criam vida. Descubra agora