— Amor? — Toco em seu corpo desacordado. — Thalia!
Não me rotulo como um sentimentalista, não, isso seria uma simplificação grosseira. Emoções? Sim, eu as tenho. Experimento uma satisfação cruel ao realizar procedimentos cirúrgicos desafiadores. Uma surpresa gélida me acomete quando ela murmura palavras de afeto, tão inapropriadas para o contexto. Um calafrio de repugnância me percorre ao recordar a covardia de meu irmão, que fugiu do país e me deixou sozinho. Sinto o temor lancinante quando minha parceira desfalece após minha investida selvagem contra um adversário. E, sobretudo, há a ira.
Essa ira é meu companheiro constante, uma sombra escura que habita os recônditos mais profundos de minha alma.
Ela é o manto sob o qual me abrigo da dor insuportável de lembrar que foi meu próprio pai quem ceifou a vida de minha mãe, num frenesi de violência incontida.
Apesar da intensidade de meus sentimentos, recuso-me a ser rotulado como um sentimentalista. Não permito que minhas ações sejam ditadas por impulsos emotivos efêmeros, não cometo o erro de tomar decisões enquanto me encontro em estados de júbilo ou desespero. Não me aventuro em cirurgias além de minha experiência apenas por um lampejo de felicidade momentânea. Não digo palavras doces em resposta ao inesperado amor declarado por ela. Não sucumbo ao vômito sempre que o nome de Francisco ressurge em minha mente. E não sou paralisado pelo êxtase adrenalínico do medo, mesmo quando minha companheira desaba após minha violência irrefreável.
Mas agora, neste instante, meu sistema simpático entra em overdrive.
Minha frequência cardíaca dispara, minhas vias respiratórias se expandem numa busca desesperada por mais oxigênio, e a adrenalina verte em minhas veias como um rio enraivecido.
Não posso perdê-la. Não posso permitir. Não, jamais.
— Dante? — Ela acorda e eu volto a respirar.
Minhas mãos latejavam, uma mistura de dor e entorpecimento provocada pela torrente de adrenalina que inundava meu sistema. Não me reconheço como um indivíduo inerentemente violento, mas sei defender-me com uma eficácia brutal quando necessário. E não hesitaria em proteger a pessoa mais preciosa deste mundo.
Quando deparei com aquele sujeito prensando Thalia contra a porta do elevador, assediando-a com suas palavras vis e raivosas, meu sangue fervente gelou nas veias, e a lógica se esvaiu de minha mente. Só recobrei a consciência de meus atos quando o corpo de Thalia tombou, um som surdo ecoando no saguão.
Encarei o rastro de sangue que se espalhava pelo chão e tingia meus punhos, o sangue de Esteban. Embora não o conhecesse profundamente, já cruzara com ele inúmeras vezes nos corredores do hospital, colaborando em cirurgias e procedimentos. Sabia o suficiente para reconhecê-lo como o interno, ex-namorado de Thalia, um indivíduo de moral flexível e caráter duvidoso. Talvez tenha agido com uma violência exacerbada, mas conscientemente, motivado pela certeza do que ele representava e pelo conhecimento de suas entranhas.
Juntei o corpo mole de Thalia, seus membros inertes pendiam como os de uma marionete. Esteban já havia desaparecido do cenário, como uma sombra covarde. A ameaça que sussurrei em seu ouvido, prometendo arrancá-lo do programa de internato no hospital e exilá-lo dos sagrados corredores da medicina brasileira, foi suficiente para fazê-lo recuar em terror.
Não me importei com a possibilidade de ter minha licença profissional questionada. Tenho aliados poderosos no conselho médico, minha reputação como cirurgião é inabalável. Pois, como sempre, os grandes não são subjugados pelas mesmas leis que regem os comuns. E isso, sem dúvida, joguei a meu favor.
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Autópsia de Thalia
Romance+18 Ah, o velho e doce clichê... O professor arrogante e experiente, com um passado sombrio, ávido por dominar suas alunas dentro e fora da sala de aula. O Dr. Dante Alexandre Costa poderia muito bem se encaixar nesse estereótipo, se sua aluna brilh...