Capítulo 5

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Existe uma maldita peculiaridade humana que me irrita profundamente: nós nos apegamos a fatos e acontecimentos bobos na mesma frequência que pegamos um resfriado. É como se estivéssemos destinados a acumular lembranças inúteis e experiências tolas, carregando-as conosco como bagagem pesada em uma jornada interminável, assim como estamos propensos a ficarmos espirrando e de nariz escorrendo.

Essas pequenas memórias se agarram nas esquinas e vielas de nosso córtex pré-frontal, como vírus. E então produzimos o muco, vulgo a memória, e o engolimos de novo e de novo, querendo mudar algo que ocorreu há muito tempo ou tentando assoar o nariz. Só que não podemos mudar o passado. Podemos evitar ter atitudes idiotas e quem sabe se alimentar melhor, se agasalhar e cuidar da imunidade para não pegarmos gripe de novo.

E então, devemos simplesmente esquecer e não ficar remoendo.

É uma droga como somos capazes de nos agarrar a momentos idiotas específicos, como se cada detalhe fosse crucial para entendermos quem somos e como chegamos até aqui. Como se fosse importante, agora, aquela vez que tropecei no meio do metrô em São Paulo e um sem teto riu. Aquela situação é tão irrelevante agora quanto a gripe que peguei ano passado.

"Thalía? Dante?"

Mas essa situação não parecia ser.

A voz de Cássio ecoava em minha mente na última semana, desencadeando uma sensação de fúria contida em meu estômago. Nos meus tormentos noturnos, a cena se recreava com insistência: Eu e Thalia, estáticos diante do freezer aberto, minhas costas marcadas e chupões em seu torso, ambos nos encarando. Cássio irrompeu bruscamente a porta do porão, impaciente com nossa demora, alimentando minha ira contida e a fleuma em frangalhos.

Ela não viu nada de excepcional. Pelo menos, eu acho. A escuridão era densa o bastante para obscurecer qualquer visão clara, no entanto, havíamos demorado o bastante para insinuar que algo havia acontecido. Não sexo, mas algo.

Eu preferia ter ficado resfriado.

— Ao menos não sou Camilla! — Falo sozinho.

Encaro as páginas rabiscadas dos artigos que estava lendo, e tudo parece borrado. Quatro horas mergulhado no estudo e revisão de técnicas de cirurgias menos invasivas. Meus olhos estão cansados, mas minha mente está longe de sentir sono.

Droga.

Observo o relógio que marca o início da madrugada.

Eu não sou do tipo que se faz de vítima, muito menos sou ignorante ao ponto de achar que minha relação com Thalia era normal. Não é. Talvez nem seja socialmente aceitável. O pai dela é meu amigo, sou o professor dela, ela é 17 anos mais nova que eu. Não era apenas um território perigoso, é a droga de um precipício do qual estou sendo avisado constantemente para não pular, mas eu pularei.

Eu já tinha escolhido pular na primeira vez que a vi.

Maldita seja minha sina.

Checo mais uma vez a caixa de entrada dos meus e-mails antes de desligar o computador. Eu seria um dos palestrantes do Simpósio de Cirurgia Geral, em Gramado, no próximo mês, então eles sempre estavam me enchendo de e-mails com os detalhes finais sobre a programação e logística do evento.

Desligo o computador e opto por tomar um banho quente, já que estava começando a esfriar na cidade. Sinto o vapor subindo ao abrir o chuveiro, e o calor reconfortante envolve meu corpo tenso. Deixo-me afundar na água quente.

Eu estava nutrindo por Thalia algo visceral. Irracional.

É um sentimento que me moí, me consome e me cansa. E toda vez que estávamos juntos, era a maldita de um constante paradoxo. Um paradoxo doloroso. Eu a queria tanto, mais do que qualquer coisa neste mundo, e, ao mesmo tempo, temia o poder avassalador de meu próprio desejo. Mas eu já tinha decidido que iria me atirar do maldito precipício, então não importa se é um paradoxo, eu vou ter-lá.

Autópsia de ThaliaOnde histórias criam vida. Descubra agora