Ferro e fogo

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Em cima da mesa, ainda existe uma garrafa com água ardente o suficiente. Viro-a em cima do pedaço de carne na minha frente, daquela coisa nojenta no chão, dou um gole e arremesso a garrafa na parede, mas ela não quebra. O que é uma pena. Em uma gaveta em um armário quebrado e vazio na cozinha, existe uma caixa de fósforos velha. Ao lado, existe um saquinho de tecido com sal. Não seria uma má ideia repetir o que ele fez comigo a tantos anos. Pego o sal e a caixa de fósforos, abro, e existem apenas três deles, mas para mim já é o suficiente.

Jogo o sal na ferida aberta e esfrego na ferida enquanto jogo álcool nela e sinto meu pai se contorcendo de dor, mesmo tendo perdido os sentidos. Quando acabo, abro a boca dele e jogo o resto do sal, despejando mais álcool nela.

O fogo se espalha rapidamente, e as tábuas de madeira estralam ao meu redor. O cheiro de um corpo virando cinzas nunca foi tão agradável como aquele..., mas não posso perder a cautela. Se alguém me ver intacto, saindo de uma casa em chamas, tudo pode estar perdido.

 Se alguém me ver intacto, saindo de uma casa em chamas, tudo pode estar perdido

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"O canivete."

O maldito canivete que seu pai usou para fazer aquela horrível cicatriz no seu rosto, ele acreditava que a dor curava e que um corte profundo e a perda de sangue fariam suas convulsões pararem, mas nunca pararam. E agora, usar aquele canivete era o único caminho para melhorar sua influência e sair daquela situação.

-Tem alguém na casa? Alguém consegue me escutar?

A voz vinha do lado de fora, provavelmente estava na frente da casa. Uma multidão se aproximava e jogava bolas de neve e baldes de água para apagar o fogo.

"Estava salvo."

Não seria tão complicado.

Rápido.

Um único golpe.

Segurei o canivete com a mão direita. A lâmina entraria no meu estômago, e me levariam para o hospital. A facada teria sido por um opositor que tentou me matar, mas estava bêbado demais para terminar o serviço, e um foco de incêndio começou. Uma tentativa de assassinato fracassada da oposição, com uma vitória gloriosa de um líder que não abandonaria seu povo. Era tudo o que eu precisava dizer.
"Eu iria dizer "

Foi rápido. Sem hesitação, dirigi o canivete em direção ao meu próprio estômago e me lancei ao chão, aterrissando sobre ele. A lâmina gelada penetrou em mim, gradualmente esfriando meu interior, enquanto uma dor aguda percorria minha espinha. Meus dentes cerrados, minhas roupas se encharcando com o meu próprio sangue, e o calor opressivo das paredes apenas intensificava minha tontura... tonto... tonto... ton... to...

A intensa luz me cegava, acompanhada por uma dor paralisante, mas estranhamente, não sentia o calor do fogo. Em vez disso, estava envolto em uma cama confortável, embora no seu limite, com um cobertor de lã salpicado de buracos, ainda assim, o melhor que já havia experimentado: quente e macio. Era uma sensação de conforto que não experimentava há muito tempo. Ao meu lado, uma cadeira de madeira exalava correntes delicadas de vapor com um aroma agradável de eucalipto, aquecendo-me por dentro. À minha frente, uma janela suja de fuligem permitia a entrada de pequenos raios de sol que lutavam para penetrar.

Alan repousava ao meu lado em uma cadeira, mergulhado em um sono profundo. Seu rosto, pálido e cansado, denotava preocupação, enquanto seu casaco, agora sobre mim, aumentava o isolamento térmico, talvez explicando suas mãos geladas. Quanto tempo ele passara naquela velha cadeira de madeira, é difícil dizer.
-Alan , Alan

-Bom dia, senhor
A enfermeira trouxe os remédios e o novo soro, que seriam administrados em meu corpo. Ela aplicou o soro e o remédio e saiu pela porta, passando pelo grande arco de madeira, sem responder à minha pergunta. 'Inútil.'

- O que aconteceu?. -precisava fingir minha inocência, precisava manter meu papel na minha própria peça.
"Eu sabia exatamente o que tinha ocorrido."

- Edgar, há quanto tempo você acordou?
Acabei de acordar. O que aconteceu? Por que estou aqui? Por que minha barriga dói tanto?

- Edgar, calma. Está tudo bem. Vou te explicar, mas se acalme primeiro.
Ele se levantou preocupado e me forçou a deitar novamente. Estava tudo indo conforme o planejado.

- Bem, por onde posso começar? Você foi atacado. Acreditamos que tenha sido por um opositor.
A preocupação tomou conta do seu rosto, ficando cada vez mais evidente, talvez intensificada pelas linhas de expressão.

-Edgar, você não se lembra de nada?
-Não, tudo que consigo lembrar é do calor e de uma dor horrível.
"Isso era uma mentira. Eu me lembrava de cada segundo."
-Edgar, tudo aconteceu em sua casa. O ferimento, o fogo... E seu pai. Todos acreditam que ele foi o responsável. Ele era agressivo e vivia recluso, falando com estranhos, e algumas pessoas disseram que no dia do incêndio ele estava em um bar e chegou a mencionar que iria acabar com você. O povo acredita que ele tenha sido pago ou simplesmente mandado para fazer o trabalho. - Alan fez uma pausa, como se uma pedra estivesse pressionando seu peito, tirando seu ar. - Ele foi encontrado dentro da casa, embaixo dos escombros... Carbonizado, Edgar, me desculpe, todos não paravam de perguntar como ele era com você e se alguma vez ele levantou alguma suspeita, e eu acho que falei demais.

-O que você disse?
"Preciso saber se falou o suficiente para incriminar aquele desgraçado."
-Disse que ele era um homem agressivo, de poucas palavras, que se arrastava pelos cantos, e que às vezes passava dias fora de casa.
-Olha, está tudo bem, você está certo, ele tentou me matar me esfaqueando, mas eu vou acabar com quem tentou fazer isso.
"De jeito nenhum."
-Eles te admiram, sabia?
-Eles?
-Todo o povo, acreditam que você luta por eles, Edgar, acreditam que você é uma espécie de libertador que vai salvá-los de toda a miséria que vivem. Não podia ser diferente, você influenciou eles e encorajou a paralisação. Eles te veem como um herói.

Isso me arrepiava inteiro. Não quero ser herói de um povo miserável e nojento. Estava fazendo tudo isso por mim, porque não aguentava mais viver naquela imundície, porque eu mereço muito mais que tudo isso. Mas isso era uma oportunidade imperdível, usaria esse apoio para subir até onde eu quisesse, e eles me colocariam no meu lugar de direito.

-Edgar, tem certeza de que não lembra de mais detalhes?
-Tenho certeza.

"Eu me lembrava de tudo: do calor ardente do álcool descendo pela minha garganta, como se cada gole fosse uma chama acesa dentro de mim, dando-me uma coragem feroz. Lembro-me de jogá-lo em cima do meu pai logo depois, o líquido inflamável abraçando seu corpo, a sensação de poder sobre ele, vendo-o se contorcer em agonia enquanto as chamas o consumiam. Senti o cheiro acre de sua carne queimada, vi suas roupas derretendo em seu corpo como cera derretida. E então, a lâmina fria do canivete de aço, penetrando minha pele, uma dor aguda que se misturava com o alívio, enquanto lembrava das vezes em que ele me espancou. Ainda posso sentir as marcas da última vez, como sulcos profundos nas minhas costas, uma lembrança física do tormento que ele me causou."

Pétalas de guerraOnde histórias criam vida. Descubra agora