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BOTANDO FOGO NA CASA
O síndico cumpriu sua promessa. No dia seguinte, Murray tinha fechado o buraco, eliminando qualquer chance de futuras sessões de terapia improvisadas com o dr. Wangji.
Na verdade, uma semana inteira se passou sem uma única briga entre L.W.  e eu.
Os cachorros ainda latiam todas as manhãs, mas eu não me atrevia a chegar perto deles por tempo suficiente para reclamar. Agora que sabia que o ex dele os deixava lá, se estava acordado eu olhava pela janela para ver se conseguia vê-lo.
Um dia, consegui olhar na hora certa e vi um cara da minha idade, de cabelo castanho e curto, entrando no prédio com os dois rottweilers. Corri até a porta e abri uma fresta para espiar quando ele passasse pelo corredor. Ele passou tão rápido que não deu para olhar direito, só o suficiente para ver
Que ele era mais curvilíneo do que eu.
Depois de cinco minutos, ouvi seus passos saindo do apartamento dele. Observando pela janela enquanto ele corria pelo pátio, eu me perguntava que tipo de relacionamento eles tinham agora, se era amável, se ainda faziam sexo. E me perguntava quem tinha terminado. Também queria saber por que estava pensando em algo que não era da minha conta
Por que ultimamente eu estava constantemente pensando em Wangji. Uma coisa era certa: era muito melhor do que pensar constantemente em Chao.
Naquela mesma tarde, a caminho do trabalho, notei que Wangji havia acrescentado mais coisas ao mural desde a última vez que eu tinha olhado. Havia agora um trecho com muitas pirâmides.
Senti um arrepio enquanto apreciava seu talento e todos os detalhes complexos do trabalho, a forma como as cores se mesclavam e se fundiam. Queria saber se tinha algum significado para as imagens cênicas.Lan Wangji  era um ser humano complexo.
Quando cheguei ao Centro da Juventude, Ariel estava esperando no meu escritório. Ela parecia ter chorado.
Merda.
Mesmo sabendo o que provavelmente havia acontecido, perguntei:
— O que houve?
— Eu estava certa sobre o Kai. Ele estava me traindo.
— Eu sinto muito.
Depois de deixá-la desabafar por quase uma hora, finalmente falei:
— Tem uma razão para a oração da serenidade, Ariel. Já ouviu falar dela?
— Aquela que pede força para aceitar as coisas que não podemos mudar? Sim, minha mãe me ensinou há muito tempo.
— Isso. É essa. Ainda estou trabalhando nisso, mas a verdade é que, com certas coisas, não temos escolha senão aceitar. Tudo o que podemos fazer é nos esforçar para seguir em frente.
Sorri para mim mesmo, percebendo que eu estava dando a Ariel o mesmo conselho que Wangji tinha me dado. Era muito mais fácil repassar esse conselho do que segui-lo.
Naquela noite, quando voltava para casa, por algum motivo desconhecido, eu me sentia mais em paz do que havia muito tempo. Decidi comprar uma das minhas lasanhas individuais congeladas favoritas da seção de orgânicos do mercado. Eu assaria a lasanha e a comeria com um pouco de vinho, talvez assistindo a alguma coisa na Netflix. Estava ficando animado com isso.
Rapaz, minha vida era bem patética.
Cheguei ao apartamento e coloquei a lasanha no forno elétrico preaquecido. Levaria quarenta minutos para assar completamente. Eu tinha tempo suficiente para tomar um banho,  e talvez ler um pouco na banheira.
Foi provavelmente o banho mais relaxante que eu já tomei.
Cercada de velas, mergulhei em um livro viciante que Qing havia me dado. Na verdade, era um romance envolvendo ménage. Eu normalmente não lia essas coisas excêntricas, mas ela tinha certeza de que eu adoraria, especialmente porque eram dois homens e uma mulher, e não o contrário.
Acabei me envolvendo muito com o livro, tanto que, de alguma forma, adormeci depois de me satisfazer lendo um dos trechos mais quentes.
O som do alarme de fumaça e o cheiro de queijo queimado me fizeram saltar da banheira. Agarrando uma toalha, corri para a cozinha e vi as chamas saindo do meu forninho. Estava pegando fogo!
Em pânico, peguei uma tigela e comecei a enchê-la com água. Antes que eu tivesse a chance de despejar a água em qualquer coisa, minha porta se abriu. Vi Wangji correndo em minha direção, gritando para eu recuar.
Tudo aconteceu muito rápido. Fiquei ali paralisado,
Segurando a toalha em volta da cintura enquanto ele apagava as chamas.
Quando o fogo foi totalmente extinto, Wangji e eu ficamos parados e em silêncio olhando para os restos carbonizados do meu amado forninho elétrico. O estrago maior se concentrava dentro dele, mas a bancada parecia ter sido chamuscada também.
Tossi por causa da fumaça.
— Que porra — ele murmurou, ainda olhando para a cena do desastre.
— Desculpa. Eu pago por qualquer dano que tenha acontecido à bancada. Eu...
— Como isso aconteceu?
— Lasanha congelada... queimou.
— Não. Quero dizer... como isso aconteceu?
— Eu estava lendo um livro na banheira e...
— Você estava lendo na banheira — ele interrompeu, rangendo os dentes. — Você estava lendo na banheira enquanto cozinhava alguma coisa que quase incendiou a porra do meu prédio?
— Não. Você não entendeu. Eu...
Wangji começou a andar para o banheiro.
— Aonde você vai?
— Quero ver que livro é tão importante que quase custou a sua vida.
Cacete.
Não.
Cacete!
Tarde demais. Ele já havia recolhido o Kindle do chão. Meu coração provavelmente batia mais rápido do que jamais havia batido.
Depois de dar uma olhada no título e virar algumas páginas, ele olhou para mim e riu incrédulo.
— Legal. Muito legal. O apartamento estava quase pegando fogo enquanto você estava aqui, lendo sobre dois caras penetrando uma garota em todos os orifícios — ele bufou antes de jogar o Kindle de lado. Um meio sorriso surgiu quando disse: — Seu pervertidozinho.
Mortificado não era suficiente nem para começar a descrever como eu estava me sentindo. Queria chorar, mas estava congelado demais pelo choque para formar lágrimas.
— Peguei no sono. Desculpa. Não queria que isso acontecesse.
— O que teria acontecido se eu não estivesse em casa?
— Não sei. Não quero nem pensar nisso. — O choque devia ter diminuído um pouco porque a primeira lágrima caiu dos meus olhos.
Wangji respirou fundo quando me viu chorando.
— Porra. Não chora.
— Eu realmente sinto muito.
Wangji saiu do banheiro e começou a abrir todas as janelas. Ainda coberto apenas por uma toalha, eu o seguia como um idiota.
— O apartamento precisa ser arejado. Não é bom respirar essa porcaria — ele disse.
— Ok.
— Você come pizza?
Era uma pergunta aleatória. Ele era muito imprevisível.
— Sim.
— Vai se vestir, então, e me encontra no meu apartamento. Dá um tempo para a fumaça se dissipar.
Wangji pegou o extintor e saiu do meu apartamento tão depressa quanto havia entrado nele.
Ele tinha acabado de me convidar para jantar depois de eu quase ter posto fogo em seu prédio?
Tossindo, corri para o quarto e coloquei uma roupa. Eu me sentia estúpido por tentar me arrumar quando Wangji me oferecia abrigo e comida depois do desastre que quase provoquei. Mas, por algum motivo, eu queria me apresentar bem.
Essa noite podia ter sido mais estranha?
Minhas mãos suavam quando parei na frente da porta do apartamento dele.
Segura a onda, Wuxian.
Bati delicadamente e respirei fundo.
A porta se abriu mais depressa do que eu esperava.
— Ah, olha só o Incendiário — ele brincou. — Entra.
— O incendiário, que virou Chamas da vingança no cinema, e o Indomável...  nós dois trouxemos de volta personagens complexos e aterrorizantes. Você me convidou para tirar uma onda com a minha cara?
Wangji levantou uma sobrancelha. — Você esperava outra coisa? Ainda assim... veio.
Ele tinha vestido um suéter cinza justo e jeans escuro e cheirava a colônia, que devia ter acabado de passar.
— Você trocou de roupa — comentei como um idiota.
— Estava com cheiro de chaminé. Não dava para não trocar de roupa.
— Certo.
Ele não usava mais a touca e, pela primeira vez, notei que o cabelo escuro tinha uma leve ondulação. Também vi que tinha um pó branco em sua bochecha.
— O que é isso no seu rosto?
Ele limpou o rosto e respondeu:
— É farinha.
— Pensei que ia pedir pizza. — Eu olhei para o balcão da cozinha e vi alguns vegetais picados e um recipiente com molho. — Espera... você vai... fazer?
— Sim. Caseira é melhor e mais saudável. Uso farinha integral na massa e queijo com pouca gordura.
— Então é um desses obcecados por saúde? Sei que se exercita muito.
— É, eu tento me cuidar.
— Eu também. Eu tento. Nem sempre com muito sucesso, mas tento.
— Sei. Lasanha congelada, essas coisas. — Ele piscou.
— Vamos dizer que sem nenhum sucesso.
— Vou ter que concordar com você.
Sorrimos um para o outro. Fiquei aliviado por ele estar lidando com a situação de um jeito tranquilo. Quando seus olhos demoraram nos meus por alguns momentos, senti que fiquei vermelho. Na verdade, foi desconfortável porque tive receio de que minha atração por ele ficasse evidente, de algum jeito.
Precisando me distrair, olhei em volta e disse:
— Isto aqui é muito silencioso sem os cachorros.
— Eu sei. Não gosto disso. — Wangji foi para o outro lado do balcão e começou a espalhar molho sobre a massa aberta.
— Sente falta deles quando vão embora à noite? — Perguntei, sentando em um dos banquinhos.
— Sim.
— Eu o vi deixando os cachorros. Como é o nome dele?
Ele hesitou, mas respondeu:
— Yu Bin.
— Hum.
Ele interrompeu o que estava fazendo.
— Qual é, Wuxian?
— Como assim?
— Parece que quer me perguntar outra coisa.
— Não... é que... o que aconteceu entre vocês?
— Só para constar, ele não é meu irmão de criação.
Babaca.
— Bom, graças a Deus por isso.
— É meu primo. — Ele riu.
Estendi a mão, peguei um pouco de farinha e joguei nele.
— Você não sabe falar sério.
— Eu estava falando sério quando disse que sinto falta dos cachorros quando eles não estão por aqui.
— Sabe de uma coisa? Não é da minha conta.
— O que você quer saber?
— Você terminou com ele?
— Sim.
— Por quê?
— Ele queria coisas que eu não podia dar.
— Que coisas?
— Casar e ter filhos.
— Você não quer essas coisas? — Ele não respondeu, e eu insisti: — Ou não queria com ele?
— É complicado.
— Tudo bem. Como eu disse, não é da minha conta.
— O resumo da história é que... quando o conheci, ele me disse que não queria essas coisas. Depois, com o tempo, mudou de ideia. Eu não quis impedi-lo de viver o tipo de vida que ele imaginava para si mesmo.
— E terminou com ele.
— Sim.
— Você o amava?
— Sinceramente, não sei.
Olhei para o nada por um instante.
— Bom, se precisa pensar sobre isso, provavelmente não o amava.
— Eu sei o que está tentando fazer, Wuxian.
— O quê?
— Está tentando analisar a minha situação para encontrar de alguma forma as respostas para sua própria confusão. Nem todos os caras são iguais. Somos difíceis por diferentes razões.
Aliás, espero que tenha parado de falar com a dra. Cretina.
— Na verdade, parei. Segui seu conselho. Ela não estava fazendo muito sentido nas últimas conversas.
— Legal. De qualquer maneira, você deveria estar olhando para a frente, não para trás.
— É o que estou tentando fazer... sabe, quando não estou acidentalmente botando fogo em prédios.
— É você quem está dizendo, não eu — ele respondeu, colocando as duas fôrmas redondas no forno preaquecido. — Vai demorar uma meia hora. O que gosta de beber?
— Qualquer coisa, o que você tiver aí.
— Suco concentrado de ruibarbo, então? — ele brincou.
— Eca... não.
— Do que você gosta?
— Vinho.
— De que tipo?
— Qualquer um.
— Você tem algum problema para dizer o que quer, ou alguma coisa assim?
— Sério, qualquer um é bom... menos Moscatel.
— Olha só... e se eu tivesse aberto o Moscatel? Você teria bebido e ficado infeliz.
— Provavelmente.
— Não tenha medo de pedir o que quer. A vida é muito curta.
— Legal, então. Você tem um Chardonnay?
— Não.
— Zinfandel branco?
— Não.
Eu ri.
— O que você tem?
— Cerveja.
— Cerveja...
— Nem sempre você vai ter o que quer. Mas não tenha medo de pedir.
— Água está ótimo.
Meu Deus, eu precisava de uma taça de vinho.

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