Primeiro Capítulo - A Chama, a Brasa e a Maré

38 9 65
                                    

Muito tempo antes de qualquer tragédia roubar a vida do Príncipe Abelíris, uma mãe certa vez disse:

— Agora ouça, meu filho, ouça — a mãe falou, em tom manso. — Existe uma profecia, uma lenda que se repete até hoje. Sobre três almas de luz que reencarnam vida após vida, almas encarregadas de manter a paz. A ordem. A vida. Três almas que acumularam quantidades lendárias de feitos.

"Mas existe uma quarta alma, um quarto membro dessa profecia constante. Uma alma escura que é dita ser portadora de chamas que poderiam queimar o mundo todo em sua gula. Uma alma de caos. E que não importa a vida, ele sempre sucumbirá a escuridão que jaz em seu coração. Ao desejo de mudança. E que almejaria levar o mundo ao caos e a chamas.

Você entende, meu querido?" — a mãe perguntou, com a criança em seu colo. — O destino desta quarta entidade é inevitavelmente ser caçado, confrontado e derrotado por esses três heróis, que irão defender o mundo da escuridão. Vez após vez. Seu destino é sempre ser o vilão desta história.

A criança encarou a mãe, com olhos grandes e com íris alaranjadas. Um sinal do caos habitando aquela criança. Sol é o nome daquele pequeno serzinho, com poucos anos de vida ainda, mas já destinada a causar ruína.

— Você deve nunca deixar que te encontrem, Sol — proferiu a mãe daquela criança, a olhando diretamente nos olhos.

Nunca. Aquelas palavras, toda aquela história, ressoou na mente do pequeno garoto no colo de sua mãe.

— Eu sou essa pessoa má? — Sol perguntou, confuso em sua imaturidade.

A mãe tristemente sorriu, acariciando o rosto de seu filho.

— Não, Sol, você não é. Você é um jovem gentil, doce e apenas uma criança. Apenas uma criança.

— Mas eu vou ter que crescer e ficar mau? — ele questionou uma vez mais.

— Talvez, e ainda assim isso não importa. — Ela trouxe seu filho para mais perto de seu peito, abraçando. — Você é meu filho, e para mim, é isso que importa.

E dentro do abraço quente de sua mãe, de fato, nada daquilo importava. Se talvez criasse ruína, caos ou se tornasse a maldade encarnada. No momento ele era apenas uma criança aninhando no colo e entre os braços da mulher que chama de mãe e não há nada mais importante que aquilo.

E Sol nunca deixou ninguém encontrá-lo. Os anos se passaram e, tal qual seu título como Agente da Mudança implica, ele precisou mudar, se manter em constante movimento. O Fogo que arde dentro de seu peito o levou para fora de sua vila. Jamais esqueceria de sua mãe e de tudo que ela ensinou para ele, em todos aqueles anos. Poderia, sim, mudar, mas o amor que sente por sua mãe jamais se apagaria. E assim Sol atravessou os bosques, florestas e campos verdejantes em cima de um grande javali, animais comumente usados para montaria de onde veio. Atravessou rios, estradas, montanhas e todo e qualquer relevo. Sol se tornou engenhoso, sabendo sobreviver pelo mundo de forma nômade. Caçando, armazenando, colhendo e estando sempre atento a tudo que o cerca. Atento com qualquer chance de alguém reconhecê-lo, de alguém segui-lo.

A javali salta por um rio e eles aproveitam para beber da água que corre por ele. Banhado pelo calor daquele dia, Sol se espreguiça e solta um riso, sentindo alegria apenas por ser. Seu corpo se moldou em um alto jovem rapaz, cheio de força e vida.

— Será que devemos caçar, Brasa? — ele pergunta, enquanto faz carinho em sua javali, uma verdadeira (e talvez única) amiga em sua longa jornada a lugar nenhum.

O animal bufa, reagindo com alegria ao afago. Se seguirem este rio, Sol sabe que encontrarão uma cidade. Talvez consiga fazer algumas trocas lá. Tem um pouco de carne-seca e verduras que poderiam tentar trocar, algumas folhas e sementes que algum boticário ou alquimista poderia querer. Talvez conseguisse algum trabalho simples, que lhe renda algumas moedas e umas boas tigelas de comida. Contudo, sua mente o alerta dos avisos de sua mãe. Sol precisa tomar cuidado. Cidades sempre serão perigosas, o risco de ser reconhecido. Se alguém o perceber como a reencarnação do Caos, será perseguido, e seu rosto será espalhado por aí. Irão saber que ele está solto, caminhando por estas bandas. Vão vir atrás dele. E ele sabe como essa história acaba: ele perde. Ele sempre irá perder.

Aspecto do Caos - Alma de FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora