A fé, nas belíssimas e valorosas terras do Santuário, é um elemento importante na vida de todos. Não só pela manutenção do espiritual e da fé — da literal esperança — nos Aspectos. Afinal, as entidades que beiram ao divino e incorporam elementos literalmente os rodeiam, seja no Aspecto da Luz que reside na Cidade de Ouro como monarca, mas também nos bravos heróis que, geração após geração, lutam para manter a vida e a ordem dentro daquelas terras.
Contudo, a maior parte das cidades e vilarejos possuem no máximo um templo simples para todas as pessoas da comunidade. Poucas cidades possuem igrejas próprias e muitas das que possuem viram palco de peregrinações eventuais. Os grandes templos? Ainda mais raros e ainda mais visitados em tempos de necessidade, com sacerdotes nômades viajando através do Santuário para conduzir rezas e bênçãos nesses locais mais afastados.
Em um desses grandes templos que Tales se encontra, dedicado ao próprio Aspecto da Água. Além de um espaço espiritual, ele também serve como uma vasta biblioteca e um retiro para os estudiosos. Sendo o próprio Aspecto da Água, as idas que Tales faz para lá são anuais e sempre repletas de regalias. Sua presença ali é um símbolo da renovação de fé, de esforços. O próprio divino, em forma humana, fazendo parte dos rituais.
Já está horas na noite profunda e não consegue dormir. Está nervoso, agitado, ansioso. Sempre fica assim neste lugar, onde todas as expectativas e olhares que recaem sobre ele são redobradas. Em um passeio noturno, Tales admira uma fonte com uma grandiosa estátua de Enqui, o primeiro Aspecto da Água. Como pode relaxar e aplacar suas ansiedades sabendo que trouxe o Aspecto do Caos e do Fogo para a morada de Enqui? Deixou que a reencarnação de Guirrabil, o Aspecto do Fogo, viesse ali secretamente. Aspecto do Fogo somente, antes de Caos e Fogo serem um e fogo queimar as mãos de quem o alimenta. Guirrabil, que era leal ao rei, apenas para depois se aliar a Dyeus, o Aspecto do Caos.
— O que está fazendo? — uma voz o retira da introspecção e o imerge em susto.
— Sol? — Com a mão no peito, tentando acalmar o coração acelerado, Tales respira e inspira fundo devagar. — Que susto.
Ele apenas ri, vendo uma graça abobalhada na reação de Tales.
— Oiê. — Ele acena com a voz sussurrada.
— Eu não conseguia dormir. — Ele endireita a postura e coloca a mão na cintura. — E você?
O que assola Sol, conforme responde, não difere muito do que o próprio Tales sente. Com a voz baixa e assustada, ele adiciona:
— Me sinto um intruso aqui. Apesar de tudo... — Ele leva a mão ao coração onde sua alma está selada. — Ansiedades enchem minha mente com medos, ainda mais aqui. Sou a reencarnação do inimigo que custou que um herói como Enqui surgisse.
Sol olha as próprias mãos, limpas, mas que sente imundas em sangue.
— Quem sabe quantos outros heróis eu matei — ele diz, pecados que nem é o responsável o aterrorizam e o fazem ter nojo de si.
O modo como o rosto de Sol se distorce em tristeza, medo e desgosto fazem com que Tales, angustiado, segure-o pela mão e o conduza para longe dali. Atravessam pátios, corredores e diversos salões — todos estampadas com murais e vitrais de eras incontáveis de confronto dos Três Heróis contra o Aspecto do Caos —, até que enfim chegam em um vasto lago, onde riachos e pequenas cachoeiras desaguam. Desaguam e seguem fluindo, indo cascata abaixo por uma imensa cachoeira, onde reside uma das maiores comunidades de sereias — seres abençoadas pelo Aspecto da Água — de todo o Santuário.
— O que viemos fazer aqui? — confuso e maravilhado, Sol pergunta.
Tales estende a mão para Sol, em convite gentil.
— Quer tomar um banho de lua comigo?
A resposta de Sol fica presa entre a surpresa e o nervosismo adolescente.
— As águas daqui vão te fazer bem. — Tales volta seu olhar para as águas iluminadas pelo luar.
Apesar de transpassar calma e estar fazendo aquilo por genuína boas intenções — as águas dali são ditas como terapeúticas e até "mágicas" em certo nível —, Tales fica um pouco nervoso assim que Sol lentamente escorre os dedos por sua mão, segurando-a. Os dois se aproximam por um breve momento, até que precisam tirar as camisas e as calças simples, os saiotes, ficando apenas com as tangas. Para Tales, é sempre confuso lidar com a timidez que sente perto de Sol e em relação a Sol. Claro, nunca teve muitos amigos (ainda mais de sua idade), logo a intimidade com alguém lhe é algo novo, a timidez é inevitável. E com Sol sendo sempre tão caloroso e alguém verbalmente carinhoso e tátil, é difícil para Tales não ficar tímido.
Deveriam ter sido inimigos mortais e continuado o conflito eterno e a cruzada sem fim e dedicados suas vidas para matar e caçar um ao outro.
E, apesar disso, estão ali. Com Tales escondendo o rosto debaixo da água para evitar de ser visto corado ao ver o corpo de Sol despido e umedecido pelo mar.
— Você não tem por que sentir nenhuma daquelas coisas que disse — Tales diz em sussurros, escondido nas costas de Sol. — Você é diferente, diferente de todos que vieram antes. Eu, a reencarnação de Enqui, te peço: relaxe. Não se veja assim.
E assim o corpo do Aspecto do Caos é lavado de suas inseguranças em meio a aquelas águas abençoadas e pelas palavras igualmente mágicas do Aspecto da Água. Lavado e se sentindo limpo dos pecados de vidas passadas, renovado e renascido, Sol se permite respirar fundo e sentir a presença de Taes ali consigo. Seus gentis toques e suas gentis palavras.
Sem ver maldade ou malícia naquilo, Sol engata os braços ao redor do pescoço de Tales — alguém que nada muito melhor que ele e claramente não está com problemas para se manter boiando — e deposita um único beijo em sua bochecha.
— Obrigado por tudo isso, herói.
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Aspecto do Caos - Alma de Fogo
Fantasi~ Não recomendada para menores de 16 (dezesseis) anos ~ Essa história será uma tragédia que não precisava terminar deste modo ou uma ela será uma tragédia porque só poderia acabar deste modo? Em um ciclo que se repete, três almas heroicas reencarnam...