Após o feitiço acabar, a memória de Sol é esparsa. Lembra da sensação de ser carregado. De vozes. Tudo parecia distante, como estar ouvindo uma conversa de outro cômodo, desconexo do próprio corpo, flutuando em uma vastidão sem luz. Se lembra de acordar, momentaneamente, várias vezes. Várias vezes onde quase recuperou a consciência, apenas para retornar a escuridão. Lembra de se ver em um quarto modesto, sempre com alguma velha senhora monitorando-o. Tem a impressão de as vezes ouvir a voz de Tales, sentir sua presença, mas poderiam ser só os sonhos delirantes que teve.
Sonhos estranhos, que pareciam evocar memórias, mas que se tornavam fluídos, irreais. Memórias distorcidas. De ser uma criança, de mãos dadas com sua mãe, e ver a praia (só que onde morava não haviam praias). De estar andando de noite com um cachorro, mas de onde veio não haviam cachorros. Lembra de carregar uma tocha e espantar a escuridão da noite com ela. De ser o Sol de agora — talvez mais adulto — e estar em um vasto palácio e sempre ao lado de uma mulher confiante e radiante. Sol sempre com pergaminhos e tábuas, logo atrás dessa mulher — que tinha uma coroa tão, tão, tão, tão, tão, tão linda sempre logo ao alcance de Sol. Sonhar consigo muito pequeno e se aproximar de sua mãe, que o convidava para chegar perto dela, enquanto ela usava um almofariz. Quando enfim espiou o que ela moía ali, se deparou com um céu noturno e uma vastidão de estrelas dentro do pilão.
Sempre que acordava, ainda chovia. A mesma chuva torrencial de antes. Sabe que já tinham se passado dias, mas não tinha certeza de quantos. Seu corpo ainda ardia, ainda doía.
Quando enfim consegue despertar, rapidamente se senta, abraçando os lençóis finos que envolviam seu corpo. Assustado, só agora teve a capacidade de questionar onde exatamente ele está. Não havia ninguém ali consigo. Apenas ele. Vê um criado mudo ao lado da cama em que estava e vê jarros, remédios, panos que eram usados para aplacar sua febre. Febre que não estava mais presente, nem a dor física. Algumas velas ajudam a manter o quarto levemente iluminado, mesmo de noite.
Sol estende a mão na direção delas e tenta comandá-las.
Tenta fazê-las crescer, tenta imbuir elas com vida.
E elas permanecem ali, alheias a sua vontade.
Diminutas.
— Deu certo — ele pensa alto, sussurrando.
O ritual funcionou, Tales conseguiu.
Assim que consegue empurrar o corpo para fora da cama, seus pés são recebidos pelo chão gelado, e vagarosamente anda até um espelho. Sol olha para si mesmo, vestido em roupas limpas, que não são as suas. Algo na sua testa chama sua atenção, mas ela é roubada ao perceber que seus olhos, antes alaranjados, agora são azuis, como um mar aberto.
"Se dizem que os olhos são a porta da alma", sua mente pensa em um tom jocoso atípico de Sol. "Aí está nossa alma cercada pelo Aspecto da Água."
É um tom tão vívido e belo que Sol acaba por passar mais tempo do que percebe encarando a si mesmo. Encarando uma versão de si que, para todos os efeitos, não é nada do que ele tem tanto desgosto em ser.
Seu olhar sobe um pouco acima dos olhos, para sua testa, e lá ele vê uma marca. Um símbolo que parece um misto de uma gota e um olho adorna seu fronte.
— O que é isso? — ele resmunga tateando a marca com cuidado.
"Possivelmente o que mudou a cor de seus olhos", sua mente responde.
Sol dá um passo para trás, em um susto e seu olhar vasculha o quarto. Não tem ninguém. Enquanto ele leva a mão à própria cabeça, ainda processando o que faria, um sorriso abre espaço por sua mente.
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Aspecto do Caos - Alma de Fogo
Fantasy~ Não recomendada para menores de 16 (dezesseis) anos ~ Essa história será uma tragédia que não precisava terminar deste modo ou uma ela será uma tragédia porque só poderia acabar deste modo? Em um ciclo que se repete, três almas heroicas reencarnam...