Lentamente, Sol mastiga o pão ofertado pelo garoto chamado Tales, nervoso e cheio de receios. Não um rapaz qualquer aquele que Sol observa, com olhos bem abertos e atentos. Tales, uma das reencarnações dos Três Heróis. A audição de Sol está constantemente alerta aos arredores, pelo medo disso ser uma emboscada.
— Então você só quer conversar? — Sol pergunta, desconfiado.
O Aspecto da Água tranquilamente afirma que sim, ainda fazendo carinho nos pelos de Brava, a javali. Isso enerva Sol, sem saber se aquele gesto é genuíno ou se sua parceira está sendo mantida como refém. Ouvir seria o mínimo que poderia fazer. Ao menos até que termine de comer o pão, não é todo dia que pode comer um desse. É, de fato, um pão muito bom.
— Esse pão é bem saboroso — Sol pontua, de boca cheia. — Macio.
— Ah, obrigado! Foi minha mãe quem fez — Tales responde com um sorriso, sua voz saltitando para fora de sua boca.
O Aspecto do Caos parece segurar um risinho, desviando o olhar. Apesar do sorriso e da simpatia, não é como se Tales não estivesse com os nervos à flor da pele com aquela situação. Mantém um sorriso no rosto e o otimismo por saber a importância disso, mas seu coração está tempestuoso. Com medo desse sujeito subitamente atacá-lo. Ou só fugir. Talvez seja só tudo um plano engenhoso para emboscar Tales! Está andando sobre o fio de uma lâmina ao conversar com o Avatar das próprias Trevas. Sua última encarnação, Nasshan'Thun, foi uma Agente do Caos especialmente ardilosa. Especialmente perspicaz, tenebrosa. E não tem como saber o quão astuto é aquele Agente da Mudança.
— Eu presumo que saiba quem eu sou — Tales inquere, nervoso. — Certo?
É esse rapaz, tão nervoso, quem iria matá-lo? Sol acaba por achar adorável o modo inquieto que os pés dele, suas mãos e olhos vagueiam. O quão franzino ele é, e o quanto suas risadinhas nervosas, o jeito empolgado como fala, é adorável. Sentado em uma pedra, Sol ajeita sua postura. Ainda assim, se sente intimidado, acuado. Sua cabeça está uma cacofonia de pensamentos. Seu coração, um turbilhão de sentimentos bombeados com urgência. Por um momento se pergunta se todos aqueles pensamentos e medos são só dele, ou seriam das outras encarnações que a Alma do Caos já teve. Quantas delas teriam sido mortas pelos heróis que possuíam a alma desse rapaz, Tales?
Sol engole em seco e ergue seu olhar — que até então se contentava em encarar o solo e somente os pés de Tales —, encarando o Aspecto da Água nos olhos.
— Eu sei que você é um dos Três Heróis, o Aspecto da Água, reencarnação de Enqui, pai do conhecimento, das faculdades de magia e patrono das sereias e criaturas mágicas que habitam os mares — Sol diz, a voz firme. — E sei que você sabe quem eu sou, eu... Eu presumo. E por isso veio aqui.
— Sim — Tales meneia a cabeça positivamente (tentando disfarçar o quanto se sentiu acuado com aquela descrição completa de "quem ele é").
— Veio me matar? — Sol pergunta, finalmente tirando o peso que amargurava seu peito.
Tales se assusta, seus olhos se arregalam e ele passa a negar com a cabeça e com as mãos freneticamente.
— Não! Pelos céus, não, não — ele responde, espantado com a ideia, por mais que o conceito nos livros de história fosse familiar. — Eu... Bem, primeiramente preciso agradecer por ter me salvado. Obrigado, você não somente me salvou, mas também apenas afugentou aquele urso. Foi bastante honrado da sua parte.
Novamente, Sol baixa o olhar. Uma parte dentro de si ficou tímida por ser elogiada. Por um dos Três Heróis, ainda por cima! Existe, então, bondade nele? Bondade pura e digna de ser elogiada? Ele é capaz de atos de bondade? Contudo, ao mesmo tempo que sente essa alegria, sente tumulto dentro de si. Indignação, raiva. E não provém de nenhum lugar de Sol. Não crê possuir motivo para isso. Esses sentimentos negativos são o amargor de vidas e vidas encerradas por aqueles heróis. E que agora, elogiam-o daquele jeito. Como se fosse uma criança, que após errar e errar finalmente acertou em algo.
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Aspecto do Caos - Alma de Fogo
Fantasy~ Não recomendada para menores de 16 (dezesseis) anos ~ Essa história será uma tragédia que não precisava terminar deste modo ou uma ela será uma tragédia porque só poderia acabar deste modo? Em um ciclo que se repete, três almas heroicas reencarnam...