Quase o fim

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Eram exatas 22:40 da noite quando começou todo o barulho. Sei disso porque passei mais um dia imóvel, apenas encarando o relógio que fica ao lado da minha cama. Tinha sido mais um dia barulhento e seria mais uma noite como as outras.

Ou pelo menos era o que eu pensava.

Ouço vozes um tanto quanto altas vindo do andar debaixo. Eram eles, Gomez e sua mulher mais uma vez envolvidos em discussões. Estavam sempre juntos mas sempre brigando. Algo me diz que dessa vez a briga está sendo feia, claro, em um nível muito maior que das outras vezes.

Continuo deitada na minha cama tentando não me importar com os gritos, xingamentos, coisas quebrando e tudo que uma briga possa ter direito. Me viro para o lado, pego o meu travesseiro e coloco em cima do ouvido para tentar abafar todos esses sons. O aperto cada vez mais forte na esperança de tudo isso acabar, mas só piora.

Então de repente ouço passos rápidos subindo os degraus. Pisavam tão fundo que deviam estar deixando marcas. Tenho certeza que tinha ouvido Gomez sair às pressas com o seu carro logo no meio da discussão, como ele sempre faz. Então só poderia ser ela. Rapidamente puxo meu lençol e começo a fingir que estou dormindo. E com uma batida forte ela abre a porta com tudo e começa a falar alto.

– Já era de se imaginar que essa coisa estivesse de novo fingindo estar dormindo. Você me acha com cara de idiota, Wednesday? - ela pergunta em tom raivoso.

Permaneço imóvel e então ela entra em surto.

– VOCÊ NÃO CONSEGUE RESPONDER A UMA SIMPLES PERGUNTA?

Ela grita enquanto usa a força para puxar o lençol de cima de mim.

– Qual o seu problema? - a questiono sem a maior paciência. Porque acho que já está estampado no meu rosto o que eu acho de você.

Ela não fala nada, apenas fica parada olhando para mim como se estivesse com a maior vontade de me esganar. Começa então a andar e eu a observo de onde estou. Fica de costas encarando a janela fechada do meu quarto por alguns segundos e solta uma estranha risada.

Fico sem entender o motivo para tal riso inesperado. Meus olhos então são irritados após presenciarem a imensa luz do poste que adentrou pela janela, logo após que ela a abriu na maior das irritações.

Tento cobrir meus olhos por causa da claridade insuportável. O fato que sequer saio de casa faz com que a iluminação do poste soe como a luz do sol em meus olhos. Quando penso em tentar questionar ela começa a me encher de palavras.

– Sua vida é realmente boa não é, Wednesday? - ela diz me olhando fixamente. Você não trabalha, parou de estudar a tempos e não move um dedo sequer para nada. Continua sendo apenas a inútil que você é.

Eu opto por não abrir a boca, apenas a deixo continuar com o que está dizendo. Afinal, vale a pena alimentar mais uma discussão sem sentido?

– É sempre por sua causa que eu e Gomez começamos a discutir. Sempre sobre a pobre coitada e intocável Wednesday. Desde aquilo tudo você ainda continua se fazendo de coitadinha.

Ela está mesmo falando sobre o que eu estou pensando? Ela não seria tão baixa a esse nível, ou seria? Minha cabeça começa a martelar e meu corpo fica inquieto. Não consigo me controlar, então grito.

– COMO OUSA TOCAR NESSE ASSUNTO? - falei tão alto que nem parecia ser eu. Você não tem direito algum, você não é nada!

– Não sou nada? - ela imediatamente retruca. Sou a mulher do seu pai, sou sua madrasta. A nada aqui é você, que nem mesmo o seu pai te suporta. E mesmo assim você só está de pé por causa dele, necessita dele pra viver.

– Eu não preciso dele!

Fico cada vez mais brava com essas palavras idiotas vindo dela.

– Não precisa? - ela continua a falar enquanto se dirige até a minha cômoda.

– Será mesmo que não precisa?

Começa a abrir minha última gaveta e imediatamente pega algo.

– E todos esses remédios para suas loucuras? - começa a jogá-los no chão e as pílulas se espalham por todo o quarto.

– É graças a quem que você os tem? É claro, graças a ele. E ainda tem coragem de dizer que não precisa dele? Você tem tudo nas mãos e continua sendo do jeito que é, e sempre consegue estragar as coisas entre mim e ele, SEMPRE! Por que você continua estragando minha relação com o seu pai?

– Eu não estrago nada! Está querendo dizer que a culpa é minha por vocês dois formarem um casal patético?

– Eu sei que você entende que é a culpada de tudo. Até mesmo pela morte da Mort-

– JÁ CHEGA!

Saio correndo escada abaixo sem olhar para trás e em completo desespero. Começo a relembrar os momentos passados e isso me causa um vazio imensurável. Eu não deveria me importar, mas porque estou me importando? Por que estou dando ouvidos a ela? Talvez ela tenha razão. Talvez eu seja a culpada de tudo. Desde o princípio o problema sempre foi eu. Eu sou a verdadeira maldição dessa família.

Quem eu estou querendo enganar? Posso tentar esquecer de diversas formas mas tudo sempre continua voltando para me assombrar. Remédios ou qualquer outra coisa nunca iriam fazer nada sumir. Eu que preciso desaparecer...

Os pensamentos mais obscuros tomam conta da minha mente a medida em que eu corro pelas ruas sem nenhum rumo. Eu não enxergo nada a minha volta, apenas uma sombra que insiste em me perseguir.

Corro até ficar sem fôlego, chegando então ao meu destino. Fui guiada por forças que nem eu mesma consigo explicar. A rua está quase que completamente escura. Havia apenas um poste nos seus últimos momentos funcionando, que está a piscar cada segundo ao fim da rua.

Está frio, mas não um frio congelante. É uma temperatura fria de fim de noite. Não tem ninguém passando por aqui a esse horário, tudo é como um breu. Eu não tenho noção de por quanto tempo corri, eu nem sequer reconheço esse bairro. Pelo menos não nesse estado em que me encontro que não me permite raciocinar direito. Sento no chão com as costas encostadas na ponte, os ferros entram em contato com minha nuca me fazendo sentir um choque por causa do impacto gelado.

Será aqui onde tudo irá se acabar por completo, onde todos os problemas irão sumir.

Depois de tanto levantar, sentar e andar de um lado para o outro sem parar de pensar já não me restava mais dúvidas, seria agora ou nunca. Não posso mais prolongar o que eu já deveria ter feito a tempos e não fiz por falta de coragem. Não quero mais me sentir uma fraca, não quero mais sentir... nada.

Ou sentir tudo.

No exato momento em que me levantei, gotas d'água começaram a cair sobre mim. Olhei para o céu e parecia que ele estava prestes a desabar. A chuva não começou lenta como sempre começava, ela estava forte e barulhenta. Parecia que estava se preparando para este momento a tempos. Mas não seria uma mísera chuva que iria me impedir de continuar com minha decisão.

Movo minha cabeça para olhar para baixo. A água permanece serena apesar da chuva presente. As ondas nada agressivas, apenas alguns resquícios de movimentos com o pouco de vento que essa noite causava.

Tudo que está envolvido no momento me faz ser atraída por mais. Sinto a brisa fria batendo no meu rosto enquanto permaneço estática à beira da ponte. Meu corpo treme com a temperatura mórbida da noite e com a tristeza profunda que invade minha alma. Meus olhos parecem se perderem na escuridão que observo abaixo.

Aquela sombra ainda está por aqui. Preciso ir agora...

Quando estou pronta para subir todos os pensamentos começam a rondar minha cabeça como um só, quase me fazendo fraquejar. Mas não fraquejo.

Seguro minhas mãos firmemente na borda e finalmente me preparo para subir. Quando de repente sinto uma pontada de dor em minha cabeça com algo desconhecido que acabara de me atingir.

Quando a chuva cair novamente - WenclairOnde histórias criam vida. Descubra agora