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Espírito com pedaços quebrados, esperança volátil, uma liberdade almejada. E uma respiração ofegante.

Correndo pela longa planície, além dos muros branco-prateados da capital do reino de Valaree — Airleas —, Hawlie Darvellian apenas ouvia o som dos apressados passos contra a relva verde-amarelada e a própria respiração ofegante. A longa trança castanha e assanhada atrás de si era como uma bandeira prestes a soltar do mastro devido uma forte ventania; suas pernas doíam e não conseguiam mais ser controladas direito. Hawlie sentia como se estivesse movimentando–se automaticamente, e o espírito voltado ao corpo, após dias com a cabeça nas nuvens, por aquele curto momento para sentir a adrenalina de fugir de perseguidores. Há quanto tempo não comprava uma briga?

Seus pensamentos, porém, estavam exclusivamente em seu quarto, tinha boas — muitas — horas de sono pendentes. Há dias, não dormia bem ou parava para, ao menos, sentar numa cadeira por mais de quinze minutos.

A jovem dispensou esses pensamentos, pois, antes de suas pernas pararem de vez, precisava chegar ao limite da planície e nunca mais pensar em quem estivera atrás dela, não queria ficar enojada novamente. E não, não eram guardas reais ou afins, Hawlie Darvellian apenas demonstrara não ter interesse em lavar a louça de um bar sujo em que escolheu fazer uma refeição porque, pela aparência enferrujada e encebada, parecia ter um preço barato. Os bêbados compraram a briga do dono charlatão e saíram atrás da jovem com garrafas de vidro quebradas empunhadas na mão ou facas que, por algum motivo, carregavam.
Onde já se viu! Três moedas de bronze em uma sopa gordurosa e um copo de água salgada? Esse velho é um ladrão disfarçado de dono de bar ou o quê?

Bem, se talvez soubessem que ela era uma rebelde... das duas, uma: ou assumiriam expressões cautelosas e de medo, ou demonstrariam apoio. Mas se soubessem que ali estava o maior terror do governante, morreriam de medo e dariam até o estabelecimento para ela, se possível. Não era todo dia que estava para briga, e naquele, em específico, só queria dormir.

Sem nenhuma paciência, após as sessões de monitoramento e reuniões que tivera — e querendo livrar-se daqueles idiotas —, Hawlie forçou um sorriso preguiçoso e uma piscadela e pôs–se a correr rumo à Mansão das Trepadeiras de Espinhos, ou para seus mais fiéis moradores, Resistência Rebelde.

A parte sul, periférica, repleta de crimes e esquecida da capital era como um quebra-cabeça que ela sabia montar de olhos vendados, o mesmo que a palma de sua mão. Não demorou muito para que conseguisse despistar os bêbados desocupados, enganando-os ao subir em um telhado e, em seguida, virando-se na direção do portão sul de Airleas. Ela só queria chegar na Resistência.

Naquele lugar, que chamava de lar desde quando chegara à porta durante os primeiros anos de vida, aprendeu tudo o que sabia. Foi ensinada a como ser alguém no mundo, como viver em coletivo, como elaborar planos e a lutar, como ser uma arma viva. Todos os rebeldes eram altamente treinados desde que podiam empunhar armas, pois a arte da luta e sua filosofia era um conhecimento passado de geração em geração, visando criar guerreiros zeladores da vida, e não assassinos. Matar outro indivíduo apenas era cogitado caso não existisse mais solução. Um juramento de honra que nunca poderia ser quebrado ou questionado.

Ser uma rebelde jovem e ativa requeria tudo o que ela tinha para oferecer no auge de seus 17 anos, fazendo-a abdicar de muitos momentos de liberdade. Isso a deixava arrasada, pois os esforços aumentavam e descansos diminuíam devido à escassez de recursos que a corporação passava. Todos faziam o que podiam para mudar a situação, mas aquilo levaria anos.

Além das doenças que atingiam os rebeldes e dos muitos que não conseguiam ser curados a tempo, incontáveis foram presos e mortos durante um ataque que ocorrera quase um ano antes do momento narrado, deixando a Resistência destruída, em desfalque e profunda crise. Hawlie preferia não passar muito tempo pensando no fato para não enlouquecer, muitas dores ainda eram sofridas e ela não queria — não conseguia — suportar mais daquilo. Seus esforços já estavam se esgotando, não comia direito, não vivia, apenas existia. Sua mente e seu corpo já não estavam em harmonia há meses. Ela não suportava mais aquilo, mas não se permitia parar.

12 quilômetros. 6 quilômetros. 3 quilômetros. A porta, finalmente.

Ela talvez estivesse cambaleando por não conseguir mais impor controle sobre as próprias pernas; talvez tenha ouvido alguém falar em sua direção, quando se deparou com o jardim de entrada habitual da mansão, e talvez tenha respondido; talvez tenha subido as escadas e quase caído de cara num degrau, mas só se lembrou mesmo do momento em que atirou as bolsas que carregava no chão e se jogou na cama, sem tirar as botas ou as roupas desgastadas e sujas de poeira, e dormiu por horas e horas.

As Joias dos ReisOnde histórias criam vida. Descubra agora