I don't belong here

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Minha playlist começa aos poucos a se repetir. Passo a viagem alternando entre ler e espiar pela janela do ônibus, vendo árvores e alguns postos de gasolina com aparência deteriorada.

Fico relutando contra a vontade de pegar um ônibus de volta e esquecer essa palhaçada de viagem, mesmo sentindo muito a falta do meu irmão. Durante toda a minha vida, devo ter visto sua família cerca de meia dúzia de vezes e, apesar de seu padrasto parecer razoável, sua mãe me dá arrepios. Carrega uma presença intimidadora e tenho a impressão de que seu olhar sempre procurou por pequenos deslizes meus.

Não que ela jamais tenha me dito algo ruim ou me destratado, claro, mas consigo distinguir a diferença entre quando uma pessoa está sendo realmente simpática e quando está tentando ser. Não a vejo há anos, assim como meu irmão, que mantenho contato por mensagem, mas ainda tenho receio de conviver com ela.

Assim que consigo um vestígio de sinal no celular, recebo uma mensagem do meu irmão, Peter, perguntando quando devo chegar. Dou uma checada no gps e, pro meu desespero, faltam poucos minutos de trajeto. Algumas construções estão começando a passar pela janela, revelando o começo da pequena cidade. Mando minha localização atual para Peter e mudo minha playlist para uma mais animada, na esperança de meu humor melhorar.

Logo estou descendo do ônibus e sendo recebida pelo meu irmão, que parece totalmente diferente do baixinho que lembro, agora com quase 1,80 e corpo definido. Trocamos um abraço desajeitado e começamos a andar até seu apartamento. As coisas eram estranhamente perto uma das outras, o que imagino ser comum em uma cidade com poucos militares de habitantes. Deve ser horrível sempre encontrar conhecidos na rua, o que me agrada em morar em Boston, já que dificilmente acontece.

- E o pai, tá bem? Ele podia ter vindo junto. - ele me olha com uma expressão neutra, já tendo uma ideia dos hábitos do velho.

- Continua o mesmo de sempre. Falei que ele deveria vir pra passar um tempo contigo, mas sabe como é, não é fácil ele largar o trabalho. - dou um tapinha em seu ombro.

- É, bem mais fácil arrumar tempo pra viajar com a namorada. - sorri, levemente chateado.

- Ele que se dane, eu estou aqui e temos muito tempo pra aproveitar. - sorrio, dando um pulinho em sua direção.

Em pouco tempo chegamos em um prédio baixo no centro da cidade e tomamos o elevador. Há anos não venho em sua casa e mal reconheço ao entrar. O hall se estende em um longo corredor com portas que levam aos quartos e, ao fundo, uma cozinha enorme com uma sala/escritório, que compartilham uma larga sacada. A casa é grande e bem decorada, apesar de alguns elementos bregas que imagino serem frutos do bom gosto de Catherine.

Me instalo no quarto de Peter, que garante não se importar em ficar no sofá durante esses dias. Abro minha mala em cima da cama de casal e pego uma muda de roupas para acompanhar meu irmão em um jogo de tênis que terá em breve, como bom esportista que é. Conheço a empregada da família (quem tem empregada hoje em dia?) e ele me leva rapidamente à cozinha e à sala de estar, que pairavam vagamente em minha memória.

Cerca de 15 minutos de caminhada do apartamento, chegamos em um clube de tênis, cheio de quadras, raquetes, bolas e até um bar/lanchonete gourmet, o que me impressionou. Sempre morei em uma cidade relativamente grande, mas nunca tinha frequentado algo assim. Eu e meu pai levávamos uma vida confortável, sem grandes luxos, mas eles eram diferentes. Um casal de médicos. Cheguei até a ver uma bolsa Birkin em um canto do hall do apartamento e tenho certeza de que não é algo incomum para eles. Engulo minha intimidação e sento em um banco próximo à quadra em que meu irmão jogaria, enquanto ele conversa com algum amigo.

- Chloe? - levanto a cabeça em sua direção - minha mãe vai voltar da clinica daqui a pouco e passar aqui para ver o jogo. Depois voltamos com ela, tá bem? - aceno com a cabeça e me volto para o celular, tentando esconder minha hesitação.

Reviro minhas redes sociais, inquieta, enquanto os minutos se arrastam. Vislumbro o jogo de tempos em tempos, me impressionando com a habilidade de Peter, mas logo me entedio com o bate-volta da bola. Escuto o barulho de saltos ecoando pelo chão e, imediatamente, percebo. Respiro fundo e olho de soslaio para trás, vendo a mulher se aproximando de mim. Seus cabelos escuros estavam perfeitamente alinhados e ela usava um vestido elegante, cheia de acessórios dourados que, com certeza, eram ouro. Não deixei de perceber sua bolsa Louis Vuitton e seu iPhone de última geração na mão mas, na verdade, ela era bem mais bonita do que eu me lembrava.

- Chloe, querida, quando tempo! - ela se aproximou para me abraçar enquanto eu, hesitante, murmurei uma resposta e a abracei sem jeito. Seus cabelos exalavam um perfume maravilhoso, notei.

- Já se acomodou direitinho lá em casa? - ela se sentou ao meu lado e vislumbrou o jogo, cruzando as pernas.

- Sim. o Peter me deixou ficar no quarto dele. Se não tiver problema... - a encarei por uma fração de segundo e logo voltei os olhos para baixo.

- Claro, vai ficar mais confortável lá e é melhor você ter privacidade. - ela sorriu, suave.

Fiz o possível para parecer relaxada e educada, o que, não vou mentir, sempre fui. Ela me fez perguntas genéricas como sobre o meu pai e meus estudos. Por sorte, logo o jogo acabou e meu irmão veio até nós, suado e ofegante.

- Filho, toma uma água, você precisa repor as energias. - ela passou a mão pelo seu rosto e indicou o bar com a cabeça, sorrindo.

Saímos do clube e entramos em uma camionete importada. Meu irmão sentou atrás comigo e mexeu em seu celular enquanto ela ligava o carro e mexia no multimídia. Recebi a péssima noticia de que iríamos até a cidade vizinha buscar seu marido Thomas, o que significava mais alguns longos minutos presa com ela. Fiquei olhando pela janela, tentando parecer distraída, até ela perguntar que tipo de músicas eu gostava.

- Hm, meu gosto é variado, acho. Gosto de bandas clássicas como Radiohead, Oasis, Fleetwood Mac. Também escuto algo de pop e jazz. Tenho o gosto parecido com o do meu pai. - falei um pouco mais baixo a ultima frase.

Logo ela deu play em algo e reconheci imediatamente a melodia. Ela começou a cantar junto da musica e sua voz soou ótima para a de uma pessoa qualquer. Ela me fitou pelo retrovisor enquanto eu cantava junto, baixo demais para ser notável em meio ao volume da música. Durante o refrão ela aumentou a voz e não resisti a acompanhar.

I'm a creep. I'm a weirdo. What the hell am i doing here? I don't belong here.

Parecia até irônico o quanto eu me identificava com a musica naquele momento, ali naquela cidade, com aquela família, mas me permiti não pensar sobre. Ela olhava de soslaio para trás, sorrindo pra mim, o que me envergonhou um pouco, mas não me impediu de continuar cantando junto. Por um instante pensei que talvez as ferias não fossem ser tão ruins assim.









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Family Affair - sáficoOnde histórias criam vida. Descubra agora