Capítulo Três - "Moças bonitas são tagarelas".

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Arcanjo 🪽

Coço a nuca vendo que o corte precisava ser atualizado. Trinta reais toda semana não tem bolso que aguenta pô.

Encho o copo americano com café preto e observo o celular vibrando, indicando uma nova mensagem, assim que pego vejo o Guga me convocando pra brotar na boca da dezoito. Geralmente meu coração gela quando o mano me convoca, Guga só me chama pra falar desgraça mas hoje fiquei curioso, tudo tava fluindo, lealdade mec, mó paz nas favelas da região.

Saio de casa fechando o sorriso e a lua do Rio de Janeiro não fazia ninguém querer abrir os dentes então fui suavão da melhor forma até a boca cumprimentando apenas os mais conhecidos.

Bato na porta de madeira antiga da sala do Guga e ouço um "Entra!", abro a porta visualizando a grande papelada sob a mesa, o homem levanta o olhar e fala pra eu me sentar.

Lá vem caô pro meu lado...

- Porra moleque, vou te passar o fundamento sem enrolação... - Ele tira o boné da cabeça e suspira. - Polícia tá mirando na tua cabeça. Bagulho de ganhar cem mil ao que conseguir entregar tua cabeça pros cul azul...

- Caô cagão... - Ri e sinto as mãos soando, assim que vejo o Guga sério meu semblante se assemalha ao do homem me deixando tenso. - Nem boto a cara no asfalto, uso as parada no rosto em guerra, sempre tomo cuidado em missão. Como essa porra foi acontecer?

- Estão de trairagem pro nosso lado... - Diz e acende um tabaco fazendo o cheiro se espalhar no recinto. - Não espalha o bagulho, nem pra tua coroa pô mas fica esperto com quem tu anda.

Como vou falar uma parada dessa pra minha coroa? Esse mano só pode estar achando que tenho merda na cabeça. Fanfarronagem do caralho!

- Algo mais? - Pergunto e Guga nega. - Vou ganhar o meu chefe! - Ele assentiu e me retiro da sala com o peito estufado.

Paro em frente ao mercado da comunidade e compro o que faltava em casa além de besteiras que enchem os olhos da coroa. Pior que criança aquela mulher...

Tenho ela no mundo, e sempre eu e ela, um cuidando do outro. Se eu morrer ou cair nas grades quem vai cuidar da minha velha? Atenção agora é dobrada, já sou sistemático mas essa parada me deixou com papo de neorose na mente.

Desde que meu genitor morreu sentia um ódio que não sabia explicar dos cana e mesmo que aquele homem fosse ruim, ele era meu pai e antes de se afundar em drogas lembro exatamente o quanto ele batalhava por nossa família, e como ele me dizia:

"- Já somos favelados, não podemos cair na tentação do crime se não viramos estatística..."

E a anos eu me rendi a tentação do crime, o que me trouxe respeito, lealdade, dinheiro e poder mas me falta algo que jamais ganharei, o amor e sensação de ter uma família, de batalhar por aquilo e sentir uma parada imensurável, aquele bagulho que falam que chega a arder no peito tá ligado?

Mas se com minha coroa estando perto de mim já é ruim pra ela, imagine pra mais alguém se envolver na minha vida? Não quero ter que acordar tendo que me preocupar com mais uma pessoa que me ama vivendo esse terror comigo.

Fui ensinado no crime que somos melhores e mais fortes sozinhos. Fui criado assim desde quando entrei e não vai ser agora que isto irá mudar por um pensamento tilt.

Amor não é pra ferir e se não for pra amar direito prefiro me preservar.

Meu celular vibra no bolso e pude ver um pequeno áudio com número desconhecido.

WhatsApp On;

21 944290844 Espero que esteja gostando dos seus últimos dias em liberdade, pois em breve acabará e eu juro que por todo o mal que me fez passar eu farei tu passar pior.

WhatsApp Off.

Tiro o chip do celular o jogando em um grande amontoado de lixo em um terreno abandonado que dava em direção ao esgoto central do Rio.

- Tem chip? - Pergunto ao senhor do mercado que confirma deixando no balcão.

Pago as compras e saio de lá amuado. Sentia como se estivessem me observando por todo canto, escondidos esperando um pequeno deslize meu para assim me matarem de forma sangrenta.

- Filho? - Assim que adentro pra casa ouço a voz da minha mãe que aparece no último degrau das escadas com um sorriso meigo.

Cheguei tarde ontem e acabei não a vendo.

- Tu é o amor da minha vida jaé? Nós dois é papo de pra sempre... - A puxo para um abraço e escuto sua risada divertida.

- Por que está dizendo isso querido? - Me olha nos olhos. - Está tudo bem?

- Sempre está! - Digo passando convicção e ela me abraça forte respirando fundo.

- Como foi ontem? - Nos sentamos no sofá-cama da sala e a mulher me chama com os dedos me fazendo deitar em seu colo.

Me senti como criança em seus braços novamente. Uma criança pura, sem ter tempo pra notar a maldade do mundo, completamente inocente.

- Pô foi bacana... - Digo sem passar nada, estava falando a verdade transparente.

Ontem foi maneiro. Não esperava que fosse dar tanta risada igual dei ontem e pude observar o quanto viver novas experiências era bom, viver como um ser humano normal. Ali pude ser o Caio, e não o Arcanjo!

- Mina falava mais do que a nega do leite mas foi maneiro... - Minha mãe ri e faz carinho em meu cabelo.

- Moças bonitas são tagarelas. É normal! Tu não reclama que eu não paro de falar, agora arrumou mais uma... - Diz e a olho com um certo tédio.

Amava minha mãe mas ficava no ódio do jeito que ela via sempre tudo de forma romântica, esperançosa ou via futuro em qualquer coisa.

- Talvez ela nem fale demais, talvez seja você que fale de menos... - Emite um "Tsc" piscando o olho esquerdo. - Já parou pra pensar nisto?

- Falar pra tu que não, mas eu gosto de silêncio e já ela, odeia. Porém seu falatório não me incomodou, a menina tem um papo bom e sabe conversar de um jeito descontraído.

Flashback's On

"Tenho 19 e antes que vá perguntar, já fiz aniversário este ano..."

Flashback's Off.

Aquele diálogo me soou engraçado ao perceber como ela era avulsa, apressada e não pensava antes de agir ou falar. Completamente diferente de mim e até agora estava tentando decifrar como uma conversa boa e divertida aconteceu se somos um total oposto.

Aquilo me intrigava. A garota morava em Ipanema, viveu vida de madame desde os treze anos. Eu um mero cria de favela que sei falar o português claro por ter sido forçado e mesmo tão opostos ainda combinavámos nas paranoias.

Um dia, um Adeus.Onde histórias criam vida. Descubra agora