Entre a força e a fortaleza

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 Não me entenda mal, tu que olhas a capa do livro como se esta fosse a última vez que a vê, nesta biblioteca com cheiro de lustra-móveis e vozes sólidas que viajam pela penumbra ambiente.  Acontece que ao te contemplar, algo em ti me interessou. Cativou minha atenção, tal como este livro que tens nestas mãos pálidas. Algo em ti me diz ser uma criatura intrigante, eu quero saber porquê. Então me conta que trazes de bagagem até agora. Que história trazes por trás destes abismos negros que chamas de olhos? Quero saber mais sobre esta chama negra que arde em teu olhar. Quero explorar o universo que vejo em torno de ti, se assim me permitires, e abrires as portas para eu espiar. Prometo não forçar nenhuma porta, nem reparar na bagunça. Dentro de todos nós há um quarto escuro, cuja porta não nos permitimos abrir. Não sou de reparar em bagunças alheias, porém, se precisares de ajuda para liberar o caminho, podes contar comigo.  Por isso, meu bem, te faço esta proposta: senta comigo e pede um café. Me fale mais sobre você, que certezas tens, quais teus valores, que trazes de bom da vida. Me conta como tens se aquecido neste inverno, quantos tragos deste hoje, como tem sido teus dias. Fala da chegada do inverno, tuas memórias dos anos passados, tuas experiências, tuas filosofias de vida. Tuas certezas, tuas incertezas. Deixa que eu dê uma espiada ao teu âmago. Me diga como gosta de teu café, qual tua música favorita, como passaste a noite. O que te fascina, qual teu propósito, que esperas do futuro, quais tuas expectativas. Ultimamente, tenho sentido falta de minha energia mais antiga. Tenho sentindo o sol frio sob a pele. Algo morreu dentro de mim enquanto eu me distraía com algo fútil. Há sangue seco sobre minhas feridas, que dão a impressão de estarem cicatrizadas, mas ao tocá-las, percebo não passar de ilusão.   Meus pés têm pisado em folhas secas enquanto caminho pelas praças, esmigalhando-as, como a vida faz com quem cria expectativas.  O ar gélido resseca minhas faces e as enrubrece, sinto meu rosto envelhecer. Meus olhos estão secos e opacos, o sol ilumina com a sua luz dourada quando fito o horizonte e meu pensamento viaja para longe. São duas faces da mesma moeda, nascemos sem propósito, vivemos sem rotina, apostamos nosso tempo e vivemos à mercê da sorte, que se não sorrir a nós, somos esmigalhados como folhas secas lançadas ao vento. O futuro é uma moeda que lançamos ao ar enquanto apostamos em uma das faces. Viaja solenemente pelo ar, repousa sobre nossa mão, e só Deus sabe que face é que se revelará. Que face é que me revelarás?  Estou apostando a sorte em nós, como quem joga uma moeda no poço, esperando a boa sorte lhe sorrir e seu desejo ser concedido. Pois desejo saber se este sentimento é recíproco. Se me concedes o privilégio de ver tua outra face. Prometo não julgar o livro inteiro pela capa, se me mostrares ao menos uma parte de teu conteúdo. Te digo todas estas palavras antes que esfriem e apodreçam em minha boca. Pois energia não consumida apodrece dentro da gente. As palavras, se não as falamos, elas embolam em nossa garganta, travando uma guerra contra nosso espírito. A mente em guerra leva tiros na alma. As palavras são como tiros, tenho muita munição, pois muito guardei-as para mim por ter medo de atirar, até que elas se voltaram para mim e me feriram. A dor aguda do arrependimento me cobria durante nossos momentos a sós, por isso, venho falar contigo, antes que seja tarde, o frio chegue, nosso café esfrie e nosso tempo acabe. Inclina teus ouvidos a minha proposta, senta comigo e conte-me o que o trouxe aqui. Se porém me achares louca e me der as costas, não guardarei rancor. Antes guardaria de mim se não te falasse nada. A passividade sempre foi meu espinho na carne, apesar de que dizem que espinho não machuca flor. Um espinho que arde frio em minha carne, que por sinal afeta o bem-estar da alma. Eu sei que não tem muito nexo o que te digo, mas não deixe de considerar minha proposta. Não renegue minha singela companhia, mas se o fizer, que assim seja então. Peço apenas que perdoe meu espinho na carne, é que minha energia se enlaçou com a tua de tal maneira que os átomos de meu corpo se atraem aos teus. Que bagagem trazes do passado, e que expectativas trazes do futuro, querido? Me conte em singelas e objetivas palavras, mas conte bem devagar, para dar tempo delas entrarem pelos meus ouvidos e surtirem algum efeito sobre minha angústia de ser e querer saber mais.  A angústia existencial é um tipo raro de doença que afeta aos inconformados com a mera superfície. O saber e o sentir às vezes são demais para um só indivíduo. Que a força seja conosco, a sensibilidade nossa fortaleza. Amém.

Prosa poéticaWhere stories live. Discover now