A Ceifadora de Almas

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A noite chegou mais cedo graças às nuvens de chuva que cobriram toda a cidade de Varyn, capital de Zarkavia, O castelo ficou silencioso conforme os servos e cortesãos se direcionavam para seus quartos ou aposentos mais reservados no intuito de se protegerem da torrente de chuva que se apossava de um mundo negro. O som cadenciado das gotas e o gorgolejar das calhas e dos canos de escoamento eram, de certa maneira, tranquilizadores para Summer.

Diferente das outras crianças de quatro anos viventes no castelo, ele não tinha medo de trovões ou dos rugidos distantes dos dragões trancafiados no fosso. A presença daqueles barulhos lhe dava a certeza de que a vida o envolvia e o cercava, e não a Morte como as histórias horrendas que contavam sobre a época de seu pai.

Relatos de guerras e massacres ainda corriam pela boca do povo e o pequeno Summer não aguentava mais os pesadelos envolvendo brutamontes selvagens e rios de sangue. Ele também era diferente em um quesito quanto às demais crianças de sua idade: ele odiava violência, repugnava lutas de espada.

Além disso, detestava a espada que a mãe carrega: A Ceifadora de Almas.

Quando a rainha entrou no quarto, a primeira coisa que ele olhou foi a bainha em sua cintura onde guardava a lâmina maldita. Seja de vestido ou de calças, ela sempre estava acompanhada de sua arma. Mesmo ali, no quarto do filho mais novo, na ala mais protegida do castelo, ela não deixava a espada.

- Boa noite, filho - Ivanna sorriu daquele jeito caloroso que somente as mães conseguiam transmitir - Vim lhe dar um beijo antes de ir dormir.

Ela repousou a espada na bainha na cabeceira da cama. Summer se esforçou ao máximo para não desviar o olhar até a arma. Ele se concentrou no rosto belo e imponente da mãe.

- A senhora me conta uma história para eu dormir? - ele pediu o mais dengosamente possível.

Ivanna ergueu uma de suas sobrancelhas delineadas.

- Desde quando você ouve histórias para dormir?

- Desde que a Ama Mayara morava aqui.

Ivanna murmurou em consentimento. Então o caçula se lembrava da ama de leite que a Rainha de Sangue executou após descobrir as cartas e as informações que ela passava escondida para os opositores da Coroa. Esperava que ele também não tivesse descoberto sobre a cabeça empalada dela que ficou presa aos portões do castelo durante semanas.

- Que tipo de história você gostaria de ouvir?

Summer não conseguiu evitar que o olhar seguisse até a Ceifadora de Almas.

- Como surgiu a sua espada.

Ivanna sorriu e começou a acariciar os cabelos de seu caçula.

- Eras atrás, quando o mundo era jovem, os gigantes andavam sobre a terra recém-nascida, quando um deles, uma fêmea chamada Ymir foi abençoada pelo Espírito Santo de Deus para que gerasse em seu ventre toda a Humanidade.

"Contudo, o marido de Ymir, Nyarkaloth foi corrompido por um sentimento agressivo de ciúmes e inveja. Ele não queria que sua mulher desse frutos a vidas que não fossem geradas através dele. Então, ele usou sua própria espada para perfurar a barriga de Ymir, para que a vida ali não nascesse.

"Todavia, o Espírito Santo , uma vez concebido no ventre de uma mulher, não pode ser apagado da Existência. Por isso, todo o líquido que havia em Ymir deu origem à toda a vida existente nos Nove Reinos. Assim, sabendo que não podia apagar a Vida completamente, Nyarkaloth se determinou a exterminar todos os seres que pisassem na Terra.

Um relâmpago iluminou o quarto, seguindo de um trovão que, pela primeira vez, fez Summer se tremer debaixo dos lençóis.

- O que aconteceu com Nyarkaloth? - perguntou o menino, a voz não passando de um sussurro.

- Após ele jurar exterminar a Vida, Nyarkaloth reuniu um exército de demônios e declarou guerra contra os reinos humanos. Se você acha que as batalhas de seu pai foram sangrentas, nem conseguiria imaginar o que aconteceu milênios atrás. Entretanto, com a ajuda dos dragões e a união entre os Nove Reinos, a Humanidade conseguiu trancafiar Nyarkaloth no Abismo, junto com as entidades mais hediondas da Existência. Para toda a eternidade.

Um suspiro de alívio escapou dos lábios do garoto.

- Então estamos a salvos dele, não é.

O rosto da mãe ficou sombrio e ela começou a girar o anel em seu dedo. Ivanna não olhava mais o filho nos olhos quando continuou:

- Mesmo selado em outra dimensão, a influência de Nyarkaloth continua a assombrar este mundo. Seguidores deles, ocultistas conjuram a sua voz para que possam  usar o seu poder maligno para objetivos profanos. Dizem que eles buscam a espada dele, a Ceifadora de Almas, para que possam dar continuidade ao plano de seu mestre: aniquilar toda a Vida.

Nos ouvidos de Summer, um hino fúnebre surgiu como um sussurro de um demônio. A canção tocada no funeral de seu pai.

- Por que então a senhora usa a espada dele?

Ivanna respirou fundo e deu um sorriso triste ao filho.

- Para evitar que caia em mãos erradas.

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