O marquês de Kaleel

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Jean acompanhava alguns passos atrás de Nathan enquanto entravam pela Casa Grande, os sentinelas de guarda olhando de soslaio o antigo herdeiro Lohan Havil , reconhecendo através do rosto barbudo o jovem libertino que uma vez lhes dera vários problemas.

O cavaleiro não esperava dormir no mesmo teto que o pai novamente, tanto por desavenças passadas quanto por sua missão. Sir Howard Loupan era um vassalo juramentado da Casa Havil e era conhecido por executar suas tarefas com afinco, mas apesar disso temia pela sua discrição quanto a vigiar o mercenário. Jean não confiava as suas próprias tarefas a ninguém, principalmente uma recebida da própria rainha.

Os irmãos chegaram a um longo corredor iluminado por tochas que acabava em um portão duplo aberto. No interior do salão, uma longa mesa recheada com os mais variados alimentos era ocupada por somente por um homem na cabeceira e uma mulher à sua direita.

Lohan e Martha eram um casal bonito apesar de ambos já terem passado dos cinquenta anos, as rugas da idade nos dois estranhamente lhes acrescentavam uma beleza única e formidável, destacando as experiência boas e ruins de cada.

- Quanto tempo, meu filho - disse Lohan, com um meio sorriso que aprendera após anos dentro das intrigas políticas do reino - Não esperava lhe ver por aqui.

- Estou apenas de passagem - respondeu Jean, seco - Ficarei apenas essa noite. Não quero incomodar o senhor.

- Incomodar?! Claro que não, meu filho - falou, dessa vez, Martha, abrindo um sorriso genuíno - Sente-se. Você deve estar com fome. Você está mais magro desde a última vez o vimos.

Hesitante, como se estivesse prestes a cair em uma armadilha, Jean se sentou. Nathan, com aquele sorriso lupino desgraçado, também se acomodou. Pelo que pareceu uma eternidade, eles jantaram em silêncio até que Lohan quebrou o gelo com suas perguntas ridículas e desagradáveis:

- Ainda trabalha para a rainha plebeia?

Debaixo da mesa, Jean cerrou o punho.

- Ela é a rainha de Zarkavia, pai.

- Pelo menos até que mais alguém com ânsia de poder finalmente a bote em seu devido lugar.

- Cuidado com o que fala, pai. Dependendo de quem ouvir, poderia lhe considerar um traidor da Coroa.

- Uma coroa feita a base de sangue e ganância. Uma coroa da qual você ajudou a construir.

- Jean tentou engolir o ódio crescente junto com uma garfada do bife em seu prato.

- Fiz apenas o que acreditei ser o certo, o que era melhor para o nosso reino.

- O melhor nosso reino era por uma mulher, sem um pingo de sangue nobre, que comanda as dezessete províncias com mão de ferro, no trono?!

- Ela pode ser rígida, mas mantêm a paz no reino. E só porque ela não atende aos seus interesses, não significa que ela não sirva para governar.

Lohan se levantou bruscamente de seu assento, fazendo a mesa chacoalhar.

- E quem é você para dizer o que é melhor para nós?! Ao invés de ser disciplinado e aprender o ofício de governar aqui em Forte de Thamor, você decidiu por ser apenas uma mão de obra suja e ignorante da Rainha de Sangue.

- Não me arrependo de nada.

O clima pesou e Martha tentou amenizar a situação pedindo para que Nathan buscasse o seu alaúde para que tocasse as suas canções mais alegres.

- Não precisa, mãe - interrompeu Jean - estou cansado. Acho que já irei para os meus aposentos. Boa noite.

Antes que Martha pudesse impedi-lo, ele se levantou e foi embora pelo corredor no mesmo instante que Nathan chegava com o seu instrumento.


Sir Howard Loupan fingia beber em um caneco enquanto olhava de esguelha para o mercenário apontado por Jean. As fisionomias de Aric eram tão ordinárias que passaria despercebido por qualquer lugar, além do jeito que sorria e conversava tranquilamente com os outros viajantes não mostravam qualquer faceta perigosa que Jean tanto lhe alertara.

Contudo, podia ser impressão de Howard, mas ele jurou ver as sombras ao redor do mercenário se moverem. Talvez fosse as lâmpadas no teto que porcamente iluminavam o salão, mas ele teve certeza de ver as sombras dançarem conforme Aric tamborilava os dedos, achando divertido as conversas obscenas dos homens e mulheres que agora o rodeavam.

Outra característica que Howard notou era que ele conseguia ser muito carismático e conquistador. Todas as pessoas gostavam de ouvi-lo falar, prestavam atenção e o instigavam a conversar mais.

Foi em meio a uma dessas conversas que Aric encarou Howard, diretamente nos olhos e totalmente consciente da presença do cavaleiro.

Rapidamente, Howard virou o rosto. Entretanto, mesmo com a barulheira do salão, ele escutou perfeitamente os passos lentos e cadenciados se aproximarem dele e sentiu uma respiração gutural e animalesca em seu ombro.

Porém, ao se virar, estava apenas a imagem humana e tranquila do mercenário. Aric abriu um sorriso.

- Boa noite, colega. Gostaria de se juntar a nós?

- Não, obrigado - respondeu Howard, sucinto.

- Tudo bem - Aric deu de ombros - Então avise ao sir Havil de que irei dar uma volta.

Howard retesou os ombros e quando se virou novamente, avistou o mercenário passar pela entrada e sumir noite adentro. O cavaleiro jogou algumas moedas de bronze no balcão e se dirigiu para fora. 

A fachada da estalagem estava relativamente sossegada em comparação com a barulheira do interior. Bêbados cambaleavam até os becos laterais para vomitar ou para fornicar.

Howard viu Aric em frente a um desses becos, como se esperasse que ele se aproximasse. A escuridão da ruela era densa, quase palpável e parecia emanar do mercenário, que confortavelmente aguardava em meio as sombras como se ele fosse parte delas. Um calafrio percorreu a espinha de Howard. Ele repousou a mão sobre a adaga escondida embaixo da capa e caminhou até o beco.

Aric se virou e caminhou, quase saltitando, para a escuridão, levando consigo mais um.

Somente dias depois é que encontraram o corpo pálido e ressecado de sir Howard Loupan, os olhos enegrecidos em uma expressão de perpétuo terror.


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