_ Bora estudar _ uma voz familiar soou da porta do meu quarto e eu ergui o rosto do travesseiro.
_ Hoje é domingo _ resmunguei, voltando a jogar o rosto no travesseiro.
_ Eu sei. E na segunda você tem prova de estatística. Por isso, vamos nos levantar e estudar _ ele entrou e se sentou na ponta da minha cama. _ você está bem? _ havia genuína preocupação em seu tom de voz.
Funguei.
_ Estou melhor. _ contei. _ pelos vistos, o sangue que meu coração devia bombear está querendo sair pelas minhas narinas _ apontei pro pequeno monte de lenços manchados sobre o meu criado mudo.
_ Parou de sangrar?
_ Parou. Depois de eu ter ficado praticamente sem ar _ dei uma risada sem graça.
_ Você devia ter me chamado. Tentou usar a bombinha?
_ Eu mal conseguia segura-la nas mãos.
_ Sua mãe saiu?
_ É. Foi na clínica buscar a minha medicação e você sabe como essas coisas demoram. Mas eu acho que ela volta daqui a pouco. _ me sentei, com os olhos ainda fechados.
_ Eu... eu não sei nada sobre o seu pai. _ ele disse cautelosamente _ você conheceu ele?
_ Agora é você que tá fazendo muitas perguntas _ ri e ele deu uma risada envergonhada. _ mas não. Não exatamente. Eu tenho poucas lembranças dele de quando ele vinha me ver. Mas não são nítidas. Ele tem outra família no Canadá, com dois filhos. Um deles tem a minha idade. Eu meio que nasci de uma traição _ dei com os ombros _ ele até pensou em cuidar de mim. Mas quando voltou pro Canadá de uma das vezes que veio me visitar, encontrou sua esposa morta. Afogada. E ficou com raiva de mim e da minha mãe. Desde então, ele simplesmente banca meus tratamentos. O resto, a minha mãe é obrigada a se virar.
Ele ficou calado por uns bons segundos. Parecia não saber o que dizer.
_ Sinto muito.
_ Ah, eu também. Crescer com um pai deve ser muito legal_ sorri pensando na ideia _ pelo menos, meus irmãos mais velhos tiveram essa oportunidade. E eu tive a oportunidade de crescer com a minha mãe, que dá dois a zero a qualquer pai do mundo.
Ver a vida de um jeito positivo era a minha única saída. Eu sentia profundamente que era mais feliz assim.
_ E seus pais? _ encafei o rosto dele com um sorriso mas logo se desfez quando vi o corte pequeno, porém aparentemente profundo no canto do lábio dele e outro perto da sobrancelha. _ o que aconteceu com você? _ segurei seu rosto com as mãos e toquei levemente no ferimento.
_ Nada. Não me toca _ ele murmurou e afastou minhas mãos de seu rosto gentilmente.
_ Você passou um álcool? _ perguntei e ele não me respondeu.
Me levantei e fui até meu armário, pegando em seguida, minha caixinha de primeiros socorros.
_ Hoje, sou eu que vou cuidar de você. _ voltei a me sentar e peguei novamente no rosto dele, me aproximando por consequência.
Só então pude reparar devidamente nos detalhes de seu rosto.
Era completamente liso. Sem qualquer vestígio de espinhas ou manchas. Nem parece que á dois anos atrás era adolescente.
Seu rosto era pálido. Assim como provavelmente todo o resto de seu corpo. Seus olhos tinham uma cor peculiar. Eu não conseguia identificar se era cinza, azul, ou verde musgo. Era um rosto tão masculino e tão... bonito.
_ Você não precisa fazer isso. _ ele insistiu.
_ Eu sei. Mas eu quero te ajudar. _ peguei o álcool e o algodão. Quando o mesmo se encontrava ensopado, passei cuidadosamente na sua sobrancelha. _ sabia que a ferida pode infectar se você não cuidar?
Ele novamente não respondeu.
_ Ah sim, você é de exatas _ impliquei.
Ele riu, pela primeira vez. E sim. Ele tinha caninos afiados.
_ E o que te leva a pensar que eu não sei nada de humanas, senhorita bióloga? _ ele brincou.
_ Sei lá _ dei com os ombros _ geralmente, vocês de exatas não sabem nada de humanas.
_ Não é o meu caso.
Ele ficou calado até eu colocar um pequeno banner no canto da sobrancelha.
_ Você sabe que eu não vou andar com isso por aí, não sabe?
_ Xiu. Estou concentrada _ peguei outro algodão e fiz o mesmo, só que desta vez, no canto de seus lábios. _ sabe... Você devia rir mais. Você fica lindo sorrindo _ disse.
Surpreendentemente, ele corou. E pela primeira vez, pareceu envergonhado ao quebrar o contacto vizual.
_ Você também _ ele murmurou.
Ele parecia estar analisando os detalhes de meu rosto. Seus olhos voavam das minhas sobrancelhas pros meus olhos, dos meus olhos pro meu nariz, do meu nariz pra minhas bochechas e das minhas bochechas pros meus lábios; e lá eles relaxaram.
Como por um íman, nossos rostos estavam se aproximando e ele parecia nem estar se apercebendo.
_ Seus caninos não vão me machucar se a gente se beijar? _ sussurei.
_ Eu nunca machucaria você, Valery. _ ele respondeu, sem fazer menção de se afastar.
Fomos interrompidos por outra voz.
_ Filha, cheguei! Você acredita que... _ minha mãe arregalou os olhos quando nos viu _ ai, meu Deus. Me perdoem. Eu não sabia. _ ela saiu em disparada, fazendo com que nós rissemos, sem manter distância.
_ Sua mãe é bem divertida. _ ele comentou.
_ Ela é _ eu ri.
Nossos rostos estavam se aproximando novamente e antes que nossos lábios se tocassem, eu me lembrei de que não podia deixar que mais alguém sofresse no futuro por mim.
Estaria sendo egoísta se permitisse que ele se aproximasse de mim só pra depois me ver sumir.
_ Você sabe que eu vou morrer, não sabe? _ sussurei e no mesmo segundo, ele abriu os olhos e se afastou lentamente.
_ Não diga uma coisa dessas. _ ele pediu _ você vai conseguir um transplante.
Eu sorri.
_ A esperança é a última a morrer, não é mesmo? _ ri. Vamos logo estudar.
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Todo O Sangue Que Meu Coração Não Pôde Bombear
RomanceInsuficiência cardíaca, muitas vezes descrita como insuficiência cardíaca congestiva, é uma condição em que o coração é incapaz de bombear sangue na corrente sanguínea em quantidade suficiente para dar resposta às necessidades do corpo. Desde bem...