Capítulo 1

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Eu preciso urgentemente comprar esta sala de cinema.

"Você é uma maluca egomaniaca."

Sorrio pensando na última vez que ouvi algo assim. Embora o tom usado pelo dono da sentença fosse encharcado de ódio, eu nunca me ofendi.

O topo do mundo é dos excêntricos.

O fato é que a solitude me cai bem, eu a persigo com unhas e dentes. Jamais abriria mão dela.

Por este motivo é incontestável o fato de que terça-feira às dez da manhã é o melhor horário nas sessões do cinema, justamente por ficar totalmente vazia.

Quero comprar a sala de cinema pelo simples prazer de não ter ninguém por perto dentro do meu espaço.

A frieza do ambiente, somada a tela gigantesca lançando cenas com feitos especiais quase palpáveis acompanhados de uma trilha sonora inebriante sempre vai ser a melhor experiência. Sempre adorei o poder de desfrutar de tudo isso sozinha, com a irreal e satisfatória sensação de que sou a dona do lugar.

Estava escolhendo meu assento pelo totem na sala de sempre, quando percebo que em minha sessão havia uma única cadeira ocupada.

A minha cadeira, exatamente no centro da sala.

Não existem muitas pessoas com disponibilidade perder um tempo precioso de trabalho em algo neste horário, especialmente em uma rede pouco conhecida como esta, mais especificamente ainda com uma faixa etária próxima a minha.

A maioria acima dos vinte anos passa seus dias trancados dentro de empresas oportunistas que negligenciam a saúde mental de seus funcionários e paga um salário miserável.

Logo, só posso presumir que uma senhora desocupada estava se sentindo tão intimamente abandonada pela família e amigos que decidiu tentar a sorte assistindo sozinha o primeiro filme em cartaz que encontrou.

As decisões duvidosas de uma velha decrépita negligenciada (ou estranhamente liberal, não se pode julgar) não deveriam ser problema meu.

Entretanto, sua escolha soou como um soco em meu estômago por acidentalmente comprar o melhor lugar do cinema, na melhor sala.

O curioso é que essa coletânea é lotada de referências e detalhes de versões anteriores à história principal, o que me leva a crer que segue um público bem específico, e normalmente senhoras desavisadas tendem a assistir sem entender absolutamente nada apenas pela necessidade ridícula de afirmar que é do diabo.

A múmia vai sentar no meu lugar, e reclamar do filme.

Não gosto de admitir que isso me causa uma agonia quase sólida, a sinto circulando dentro do meu corpo e entupindo minhas veias.

Tento substituir a sensação pelo cheiro delicioso e característico de manteiga derretida enquanto caminho em direção a minha sala.

As vezes eu penso que adoraria meter a porrada no imbecil que resolveu vender um produto tão barulhento para comer enquanto assiste filme em um local em que é obrigatório fazer silêncio. Convenhamos, é no mínimo estúpido.

Foi uma jogada publicitária.

Já fui fixionada no assunto, o foco era promover uma marca de bebida famosa, entre algumas cenas os produtores colocavam imagens em um mini segundo com os dizeres "coma pipoca e beba coca-cola", de forma quase imperceptível, na intenção de induzir o público a comprar assim que finalizasse a sessão. Tristemente, funcionou tão bem que hoje em dia tenho que doar um fígado para comprar um combo.

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