O capitalismo comercializa quem somos e produz o que queremos ser.
Vermelho.
Meu cabelo é vermelho, pintado.
É angustiante toda a burocracia que existe para se "desenquadrar" de algo depois dos vinte anos.
As pessoas têm dificuldade de te levar a sério, e você precisa reafirmar a sua competência tantas vezes, que é exaustivo se manter fiel a versão que mais gosta de si mesmo.Ser jovem em um mundo corporativo significa, na maioria das vezes, abrir mão de si mesmo.
Já elaborei muitos trabalhos que dependiam do meu rosto para receberem aprovação. No fim, em grande parte das profissões é necessário vender a sua imagem tanto quanto a própria competência.
Depois de uns anos, a maioria das pessoas são vencidas pelo cansaço, associando uma identidade autêntica à imaturidade. Elas se frustram, se rendem, e posteriormente forçam umas às outras a trilharem exatamente o mesmo caminho.Eu odiaria ter que viver como o Nico, limitado por uma profissão que exige ternos finos e sapatos caros.
— Você compreende que seu pensamento é arcaico? O cabelo é meu, foda-se se eu vou parecer uma criança de quatro ou uma velha de oitenta anos.
— Como quer ser levada a sério se você parece uma adolescente revoltada de quinze anos? Não vão te respeitar com esse cabelo, Ananda.
De tempos em tempos eu tenho um vislumbre de seus olhos azuis gelados cheios de ego, sustentando absurdos como se fossem verdades incontestáveis. Nessas horas, eu me lembro que o mataria se estivéssemos em meio à um júri.
Há uns dois dias, quando eu estava terminando de tingir o cabelo com Alissa, Nicolas apareceu como um furacão, avisando que o diretor de seu escritório queria uma reunião presencial comigo. Estavam com a intenção de desenvolver um sistema simples para a organização dos processos particulares da firma, ou algo parecido, e os detalhes seriam esclarecidos no almoço agendado para hoje.
— Eu não devo nada pra eles, sua praga. Quem decidiu carregar um livro da grossura de dois tijolos e andar de terninho por aí foi você, não eu.
Nico tinha me aconselhado a pintar o cabelo de preto e usar roupas sóbrias. A vestimenta está apropriada, mas eu não pretendo tingir meu cabelo de outra cor apenas para agradar alguns velhos arcaicos de pau mole.
- Você não vê que eu estou tentando te ajudar? Sofisticação é uma moda atemporal.
— A moda é projetada para durar um período curto de tempo, induzindo as pessoas a se tornarem parecidas com as outras na intenção de conseguir aceitação – esclareço com o celular no viva voz para Nico e Alissa escutarem. Os dois são particularmente insuportáveis quando o assunto é roupas. Infelizmente hoje eu não vou conseguir escapar, tenho uma reunião marcada com o chefe do escritório que Nicolas trabalha e os dois fazem questão de escolher o que eu devo usar.
— Os conceitos de "moderno", "ultrapassado" e "novas tendências" são ridículos – continuo - Não ruins, posso admitir que são incrivelmente bem planejados, mas ainda assim, ridículos. A moda é uma expressão visual de quem somos, ou no mínimo de quem gostaríamos de ser. Em algum momento essa ideia foi deturpada.
— Ananda, cala a porra da boca, você literalmente nem liga para para esse tipo de coisa. Eu só preciso que se vista decentemente para a reunião porque o meu chefe é um cara tradicional.
Sorrio, sentindo uma enorme satisfação em contrariá-lo sempre que possível. Afinal, eu já tinha planos de pintar o cabelo de uma cor menos intensa, mas por puro despeito decido que vou esperar a conferência passar.
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Discrepantes
RomansaAnanda decretou que melhor forma de lidar com o mundo é a distância. Inflexível e introspectiva, ela prefere o conforto do seu próprio espaço a interações sociais. Se pudesse, compraria uma sala de cinema inteira só para evitar as pessoas. Thomas...