.01.

36 12 17
                                    

PARTE I: A retomada

ELE

17 de maio de 1991

Querida e Destemida Monique,

Me sinto vivo. E limpo. Eu não lembrava como era viver num corpo saudável há muito tempo. Não lembrava que podia ser tão satisfatório dormir bem. Com certeza meu melhor motivador a continuar tentando é o sono. Eu não sentia sono há tanto tempo. Sono mesmo, não aquele cansaço que a ressaca me dava, mas sim um peso sutil nos ombros depois de um dia mais turbulento.

Eu tenho dias turbulentos agora. Eu tenho dias, dias com uma rotina. Ainda não me reconheço ao olhar no espelho. Removi tudo que tivesse superfície espelhada em meu quarto. Eu não quero me ver. A vida aqui é calma. Ainda tenho um emprego de meio período no café do alojamento, faço exercícios com meus colegas de quarto na outra parte do dia. E leio. Leio muito. Algumas noites de sono foram horas a fio com páginas entre meus dedos. Percebi que estava enlouquecendo quando imaginava todas as protagonistas como Maria.

Risco bem a última parte, esquecendo que ainda era uma carta endereçada a alguém. Tento evitar pensar em Maria, pronunciar seu nome mesmo que mentalmente, mas ela ainda habita quase que constantemente os meus pensamentos. Eu me acostumei, precisei.

Estou desfrutando de toda história que você e Samantha estão vivendo em Nova York. Parece ser uma grande aventura. Estou feliz por você e com saudade. Espero que o verão chegue logo para que você tenha tempo de me mandar mais cartas. Bom fim do semestre, e sobre o cara que está implicando com você na aula: saia com ele.

Com o coração apertado,

Dale Castilho

Fecho o envelope e escrevo o endereço já decorado do apartamento de Mon em NY.

—Castilho, você vai se atrasar. - Axel murmura saindo do banheiro.

Ele também trabalhava aqui perto, mas era no estábulo. Axel era bom com animais indomáveis, todos eles, até os dentro de nós.

—Estou indo. - Ponho a carta no bolso da calça e pego meu casaco, o seguindo pelo corredor.

—Seu cabelo já está crescendo outra vez. - Ele brinca, passando a mão pelos meus fios curtos da nuca. Empurro seus dedos finos.

Com um ano e dois meses aqui no alojamento, eu tive um episódio. Acordei assustado e tentei fugir no meio da madrugada, estava sentindo falta de algo em mim. Eu não lembro muito bem, mas meu psicólogo me deu a ideia de raspar meu cabelo depois da quarentena que tive que ficar. Ele disse que seria bom ter uma mudança visual, me reconhecer como outra pessoa. É estranho ter a cabeça raspada, mas eu gosto de passar a mão e sentir que não sou mais o de antes.

—Vou deixá-lo no zero de novo, vou ver quando faço isso.

—Na sexta, quando formos pra fogueira.

Reviro os olhos. Não vou pra nenhuma droga de fogueira. Digo isso para ele que torce a boca e ri.

—Dale, seu psiquiatra vai matar você se passar mais um mês sem nenhuma atividade social. Não vai sair daqui nunca. Aliás, você tinha prometido que ia dessa vez.

Faço uma careta. Axel é um cara sensível, o que eu tenho aprendido a lidar.

—Talvez eu não queira sair daqui. - Passamos pela sala principal, onde algumas pessoas assistem TV e outras jogam no canto. No geral, o alojamento era bem familiar. - Talvez eu esteja bem onde estou.

Ele me encara com os olhos escuros, confuso.

—Você é maluco. Cara, tem uma vida toda lá fora.

Dou de ombros e ele ri, incrédulo.

Onde Reside o Recomeço (Em Andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora