.03.

26 10 19
                                    

ELE

—Já passou fome?

A voz de Axel questiona, do outro lado do quarto.

—Meus pais são milionários. - Respondo, levantando minimamente os olhos do livro que estou lendo.

Meu amigo está com as pernas cruzadas, sentado na janela do quarto enquanto encara o jardim lá fora.

—Você passou dificuldades com seus pais tendo rios de dinheiro. Não é uma dúvida tão absurda.

Fecho o livro e suspiro.

—Cara, do que está falando?

—Queria saber se você já passou fome. - Ele comenta, semicerrando os olhos.

—Porque esse assunto agora?

Axel suspira, jogando a cabeça na madeira da janela, engolindo em seco.

—Acho que só estou tentando saber tudo de você antes que você vá embora. - Ele me encara rapidamente. - Não acha isso bizarro? Nos colocam aqui e nós nos acostumamos a essa vida, até que alguém vai embora. Eu não lembrava que isso de fato podia acontecer.

Ele não estava lidando tão bem com isso. Acho que eu também não, de certa forma.

—Nossa amizade não acabará. Você sabe, não é? - Ele faz que sim com a cabeça, mas sem muita convicção. - E não, nunca passei fome. Não forçadamente.

Após o descanso, seguimos os dois até nossos devidos trabalhos. Limpo mesas, sujo minha única blusa branca com café na barra, roubo um muffin pela metade e faço rolinhos com moedas de dez centavos. O dinheiro aqui tinha pouca rotatividade, mas existia. Meu supervisor aqui do Café, Tyler, diz que ele é importante para que não nos desliguemos totalmente do mundo lá fora.

Uma vez por semana, faço um trabalho voluntário na oficina de carros aqui da reabilitação. Gosto de sujar as mãos, gosto de máquinas, de saber o que as fazem andar. Penso em George, das poucas coisas que ele me ensinou quando estávamos juntos, na oficina de Mint. As memórias vinham como balas em meu cérebro, me impedindo de seguir em frente. Não era arrependimento da vida que tinha o sentimento que me corrompe, e talvez seja isso que não me faça sentir totalmente curado. Felizmente, não lembro de quase nada, além de pontos e dias específicos. Não lembro muito de Maria, e a intensidade do sentimento que ela me causa me assusta, pois parece bruscamente súbito. Axel passa na oficina perto do momento do jantar, e reclama do bolo de carne o caminho todo até a casa.

—Como é sua casa em Old Hill? - Axel pergunta no jantar, no meio de sua fala sobre cavalos.

—Grande. - Enfio uma colher cheia de comida em minha boca.

O barulho agradável das conversas do refeitório servem de plano de fundo para o rosto desconfiado de meu amigo.

—Sente falta?

Faço que não.

—Nem do seu quarto?

—Odiava meu quarto. E odiava aquela casa.

Ele bebe um gole da água, curioso demais para meu cansaço.

—Até hoje?

—Nunca fui lá depois do que aconteceu para saber como me sinto hoje. - Termino o jantar e puxo o prato e o copo.

Mesmo que não tenha finalizado, Axel me segue e fica ao meu lado depois de devolvermos nossos pratos no balcão.

—Seu pai disse quando você iria embora? - Pergunta, há receio em sua voz.

Onde Reside o Recomeço (Em Andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora