.05.

38 10 50
                                    

ELE

Escrevo em meu caderno minhas últimas memórias da reabilitação dias depois de sair de lá, estava com muito medo de aquele lugar tornar-se uma memória distante. Esse era um problema comum em meu processo de recuperação, a lembrança. Como eu poderia guardar tudo que eu mesmo me privei de ter? Esse ponto tornou-se um sofrimento para mim quando percebi que não lembrava de quase nada que vivi com Maria. Eu sonhava com ela quase todas as noites, pensava nela com mais frequência do que gostaria, mas esses pensamentos vinham sozinhos. Não havia plano de fundo. O senhor Abbot diz que é efeito colateral, que a droga estava fritando meu cérebro. Nunca vou me acostumar a isso, a vida que eu tinha, e ao medo que agora tenho de voltar a ela.

Não consegui perdoar a mim mesmo, por ter sido tão inconsequente, tão fraco. Ter o lembrete de que tudo aconteceu era importante. Precisava lembrar que passei por tudo isso, que estava limpo, e que isso não veio do nada. Andar de carro nas últimas quatro noites e dias foi uma experiência que eu precisava vivenciar, para provar a mim mesmo. Provar que eu poderia confiar em mim.

A liberdade, o vento em meu rosto, o som do silêncio de minha própria companhia estavam sanando minha ansiedade sobre estar fora de um espaço que me mantivesse limpo. Precisava de disciplina, de esforço. Mas foi difícil. Não sei como explicar, mas era como se todos os rostos que vi nos últimos dias soubessem que eu já fui usuário, que eu era passível de aceitar algum produto que me levasse ao erro outra vez.

Adentrar na Califórnia trouxe a ansiedade outra vez. Estava perto de casa. Casa. A quanto tempo não me refiro a essa palavra estando aqui. Pela primeira vez na vida desde o acidente, estou voltando para casa sóbrio. Aquilo me fazia suspirar, como se estivesse tirando um peso de meus ombros. Lembro de Axel e sinto um leve arrependimento de ter saído do mundo que construímos. Eu estava bem lá, estava criando uma amizade que me fazia feliz, que me aceitava como sou e, de alguma forma, era como eu. Me arrependo ainda mais de ter demorado tantos meses para me abrir com ele.

Meu coração ultrapassava o velocímetro a cada quilômetro mais perto de Old Hill. Ver a placa da entrada da cidade me fez duvidar de tudo. Eu estava mesmo pronto? O que eu diria para minha família? E como meu pai reagiria? Joguei esses pensamentos para fora da janela e dirigi até Lowtown, observando as diferenças na cidade. Meu corpo havia decidido o que fazer, como se fosse natural, premeditado. Parece ter mais casas, e as pistas parecem novas. A casa de Maria está com a tinta gasta, madeiras nas janelas e um jardim morto. Está abandonada. Achei que estava nervoso até lidar com a possibilidade de a ter perdido para sempre. Desço do carro e vou até a porta. Ninguém atende. Tudo está empoeirado e velho, literalmente às traças.

Bato mais uma vez na porta, tentando olhar pelas janelas. Nenhum sinal. Começo a sentir uma tristeza. E se eles tivessem ido embora? Eu deveria ter feito mais perguntas a Louise, deveria ter mandado mais cartas a Maria. Por Deus, deveria ter falado com Monique até. Como deixei isso assim?

—Eles se mudaram. - Uma mulher loira fala, com um menino em seu colo. Ela me olha apertando os olhos, querendo me reconhecer. - Eram meus vizinhos, os Conteras. Alma se mudou para o Conjunto Habitacional, perto da Blind Forest. Você é amigo da família?

A mulher está curiosa, inclinando o rosto em minha direção. Faço que sim com a cabeça e agradeço a informação. Ao entrar no carro, respiro algumas vezes para buscar um raciocínio melhor. Porque Maria mudou de casa? O que aconteceu? Eu não poderia aparecer tão perto da Toca, não tão cedo, então não poderia ir até sua nova casa. Já estou perto demais aqui, ultrapassando um limite. Ao encarar a antiga janela do quarto de Maria, uma ideia me ocorre. Talvez ela ainda fizesse ballet. Louise desistiu tempos atrás, mas ela nunca mencionou se Maria fez o mesmo, como ela fez depois de melhorar de seu pé. Isso é, caso tenha melhorado. Um temor volta a me afligir. Como será que estava Julliard? Ou então, para qual faculdade ela teria ido senão essa? Será que ela ainda iria para o ballet daqui mesmo que apenas no verão?

Onde Reside o Recomeço (Em Andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora