A MALDIÇÃO DE ONDINA

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A MALDIÇÃO DE ONDINA

Daniela Vigo

Nuvens sombrias sobre o céu outonal se despedem da noite fria. No limiar do despertar do dia, o mar refletia o céu tornando-os quase indissociáveis se não fosse as pequenas pulsões das águas. As ondas regressam ao ventre oceânico, acordam de um repouso e voltam a sussurrar, aos poucos se deixam ficar translúcidas e douradas, trazendo rumores em garrafas ao mar. O manto negro noturno mergulha na superfície marítima e o alvorecer resplandece.

As borbulhas das águas que chegam aos meus pés diminuem o anseio de me perder na imensidão do mar. Ao encontro com os meus calcanhares provocam cosquinhas e me fazem despertar para os pequenos prazeres da vida quase desfazendo os sentimentos intensos e sombrios despertados. A grande língua líquida desliza sobre a areia e me alcança, posso sentir o meu corpo sendo levado e tragado, como uma alga perdida e obediente ao ritmo das oscilações fluidas, esquecida de si, de sua existência passageira, levada aos confins do território abissal, soturno e calado.

Retorno ao mar que quer me possuir trazendo memórias de um tempo que não quer passar. Naquela mesma data, a tristeza rompeu a margem das certezas, trazendo escuridão e silêncio de uma caverna úmida sem ecos. Penso na embarcação inerte e muda, submersa nas profundezas marinhas. Foi a última vontade do meu pai ali findar. Assim que casou veio logo o infortúnio. Não se deixava adormecer, pois quando caía nas funduras do repouso, parava de respirar. Da eterna vigília que estava condenado, começou as alucinações sobre um canto que convocava sua alma às águas profundas. Depois de alguns dias, por desespero, se entregou à massa líquida oceânica para sempre.

A habilidade de fazer e remendar redes de pesca cessou. As boas embarcações já não se faziam mais sem suas mãos e os pianos deixaram de ser afinados por seus ouvidos apurados. Não pude sepultá-lo. Seu corpo ficou submerso. Ninguém se arriscava a navegar naquelas águas traiçoeiras. Um segundo abandono. Antes, tinha sido minha mãe, tudo que restou foi o seu nome, Ondina. Assim como as ondas, veio e se foi sem explicação. Nasci sem conhecer seu rosto, seu cheiro, seu toque, sua face e sua voz.

A tristeza do abandono de minha mãe quando nasci o fez penar, e essa dor não poupou-me de sentir a solidão como companhia. Pôs-me longe de seu convívio, da infância até adolescência fui acolhida por instituições de acolhimento e depois o internato. Não houve lembranças de uma convivência amorosa e despreocupada em sua cabana de pescador.

Entrego flores ao mar, o cheiro de cada rosa branca abraça meu coração em despedida. As águas acolhem minha dor, levando afetos que não se deixaram romper pela distância que se fez entre nós. Sigo em direção à cabana, a morada onde habitou e exerceu seu ofício, a mesma em que nasci, e que não havia sido aberta desde sua morte.

As dunas transversais cortam a paisagem costeira com gramíneas altas e rasteiras no caminho. A ventania sobre a areia forma pequenos redemoinhos que chicoteiam minhas pernas, a sensação de intenso ardor me faz lembrar do pouco que sei sobre quem sou e minha origem. Náufrago das águas misteriosas, segredos se foram para todo e sempre com ele na penumbra oceânica.

Lembro de sua partida em noite de lua cheia, o mar esperava sua entrega impacientemente. Acompanhei sua última vontade até se perder com sua embarcação no nevoeiro que se formou sobre o mar. Não cedi às lágrimas, jamais entendi por que não fui sua prioridade. Pouca coisa se faz entender quando se nasce marcada por uma história de ausências.

Seus olhos fundos, sem vida, arregalados e a pele fina cobrindo-lhe os ossos nos últimos dias. O casamento não foi o seu consolo para o amargor que carregava, de fato, foi a partir daquele momento que tudo piorou. Minha madrasta, vencida pelo cansaço e desesperança, mostrava-se ressentida na partida e, ao mesmo tempo, convencida de que não havia mais jeito. Os desvarios ficaram mais assustadores colocando em risco nossas vidas.

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⏰ Última atualização: Jan 25 ⏰

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