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1 dia antes.

|Connie|

- "Sarilhos." - Verbalizei para mim mesma pela tricentésima vez, perante o vazio estupidamente entediante da sala-de-estar. Ironicamente, a divisão está tão melancólica quanto o meu subconsciente.

À primeira vista, sarilhos simula apenas um vago vocábulo de três sílabas, geralmente associada a mínimos e inócuos tumultos. Noutra situação, tê-lo-ia sido com toda a certeza. E, afinal, porquê criar tanto espalhafato em torno de uma palavra tão ridícula?

Não encontro uma resposta um tanto plausível para tudo isto. O certo é que esta absurda locução vagueia pela minha cabeça desde a noite passada, tudo derivado de uma estranha ligação da minha melhor amiga, Valerie.

"Connie. Connie, escuta-me com atenção. O meu tempo está a esgotar-se." - Foi esta a sábia fala que me fez despertar de uma forma muito desnorteada em plena madrugada. Se estranhei a chamada? Nem pensar, já é hábito da Valerie telefonar a altas e incrivelmente inadequadas horas do dia.

Somos melhores amigas desde que me conheço enquanto pessoa. Ela é um ano mais nova do que eu, o que faz de mim a consciência e a racionalidade desta amizade. Tem uma personalidade muito forte, sendo que vive de acordo com as suas preferências e escolhas - maioritariamente com a minha desaprovação interior - de uma forma extraordinariamente intensa e despreocupada, ou seja, excluindo todas as possíveis consequências ou sanções que surgem num caminho chamado realidade. O seu grande apogeu problemático ocorreu quando chegámos àquela fase da adolescência mais caracterizada pelo partir livremente à descoberta de novas experiências. Desde essa mesma altura que a observo, direta e indiretamente, sair praticamente todas as noites, sendo que dessas aventuras resultam telefonemas seus completamente embriagada, em número demasiado excessivo para uma rapariga de dezanove anos. E o que posso eu fazer?! Digamos, não é como se um longo e divagante sermão fosse resultar, caso contrário jamais teria desistido da ideia.

Aliado a toda esta panóplia de histórias e estágios, as nossas mães celebram uma amizade e cumplicidade de décadas, dá para acreditar? Tornaram-se inseparáveis na aurora da sua juventude, e a partir de então que se vêm acompanhando mutuamente para qualquer lado. Nós somos o espelho inato das nossas progenitoras, e vemos nelas uma relação admiravelmente intimista e pura, e nada nos daria mais honradez do que fazer perdurar estes laços metaforicamente hereditários. Aliás, é derivado de tamanhas coincidências que posso falar orgulhosamente que considero a Val como minha irmã, porque nós mesmas nos tornamos deveras unidas a datar de tenra infância.

"Fala, Valerie." - Olhei o despertador que pendia na mesinha-da-cabeceira, e revirei mentalmente o olhar ao verificar que eram exatamente três e meia da manhã. Desta vez não estava, de todo, com paciência para dramas e borracheiras - "E espero, muito sinceramente, que tenhas um motivo incrivelmente extraordinário para me acordares."

"Connie, eu estou metida em sarilhos, e dos grandes." - Franzi o sobrolho, evidentemente confusa. Lentamente recuperei a sanidade que o sono e cansaço encobriam a todo o custo. Dei meia volta na cama e recompus-me.

"O que queres dizer com isso?" - Comecei por perguntar. Ora, precisava de um ponto de partida minimamente credível para desenvolver o assunto - "Hum... tu estás bêbada?"

"Raios, não!" - Ouvi o seu grunhir inquieto do outro lado da linha. Estranho. - "Juro-te por Deus que não inventaria um sucedido destes à toa."

"Começas a preocupar-me. Desembucha!" - Falei entredentes. Se eu elevar o meu tom de voz uns inúmeros decibéis, o mais provável é dar de caras com uma Alexa mal-humorada e amuada por ter visto o seu sono interrompido - avaliando bem o cenário, quem deveria estar num estado semelhante era eu.

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