Capítulo I

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Foi a gota d'água. Meu pai exigia de mim um casamento para o qual eu não estava preparada.

Cansada de discutir com ele e do mau ambiente que nos últimos tempos rondava a nossa casa, eu decidi por fim a tudo.

- Não adianta.   Não vou servir de moeda de troca para as suas trafulhices.  Fez as dívidas, então pague o senhor.

- Uma filha deve obediência ao pai e se eu digo que casas vais casar.

- Prefiro a morte.  Esse asqueroso do Tobias nunca terá o meu corpo.  O senhor trate de desfazer essa promessa porque eu não caso.

Meu pai perdeu a cabeça.  Desafivelou o cinto das calças e levei a maior sova da minha vida.

Impávida e serena a minha madrasta assistia a tudo esboçando um sorriso de satisfação.   Desde a morte da minha mãe e quando ela veio morar connosco, nós duas nunca tivemos uma convivência fácil.

A minha mãe morreu ao saltar de uma ponte para o rio e embora ninguém falasse do assunto, eu sei que ela não superou a traição do meu pai.  Eu tinha doze anos e aquela época foi a mais difícil da minha vida.

Sem se importar comigo, o meu pai assumiu logo a outra e desde então eu fui tratada como uma serviçal.
Felizmente não me tiraram da escola e durante o horário escolar era o período em que eu estava feliz.

Sempre que terminavam as aulas e antes de regressar a casa eu fazia duas horas de trabalho na casa de dona Rosa, uma idosa que vivia sózinha.  O dinheiro que ganhava fui juntando porque sabia que mal terminasse o liceu não tinha meios para ir para a faculdade.

Aos 18 anos pensei sair de casa, mas ou trabalhava ou estudava, porque pagar uma renda e outras coisas mais exigia muito trabalho.   Decidi continuar na casa de meu pai, contar que havia ganho bolsa de estudo na faculdade.

E era verdade em parte.  A bolsa não era integral, mas pelo menos não pagava propinas e isso era uma grande ajuda.

Estou no terceiro ano de arquitectura e perante as exigências do meu pai, sei que terei que abandonar a Universidade.

Precisei apanhar esta sova para reagir.   Com o corpo marcado pelo cinto, alguns cortes mais profundos sangravam,  subi para o meu quarto e tranquei a porta.

Despi-me e fui para debaixo do chuveiro.  Todo o meu corpo ardia.  Olhei-me ao espelho e pelo menos o rosto tinha sido poupado.

Chorei, e como chorei, desesperada mas determinada a tomar novo rumo.
Preparei uma pequena mala com algumas roupas, os meus livros e saí de casa sem ter para onde ir.

Meu pai não o vi, mas a megera estava na cozinha quando eu passei.

- Já vais tarde. - Foi a única coisa que ela disse.

- Vai para a pqp sua vaca ordinária.

Ela largou o que estava a fazer e veio atrás de mim, mas eu já tinha passado a porta e saído.

- Vais voltar com o rabinho entre as pernas sua mal educada.

- Volto sim, mas para te dar um xuto na bunda e expulsar-te da casa da minha mãe.

Segui caminho e sentei-me na pracinha.  Os meus pensamentos eram confusos, mas a vontade de dar novo rumo à vida era muita.

Onde ir?  Quem me poderá ajudar neste momento?  Pensei e pouco depois segurei firme na minha mala e fui.
Pouco tempo depois bati à porta da dona Rosa.

Coração MalvadoOnde histórias criam vida. Descubra agora