Sobre Edgar

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Sexta-feira, 14 de abril de 2015.
   Abri os olhos, o sol começava a aparecer no horizonte. Era uma vista bonita. Um dia daqueles que te faz acreditar que Deus existe, de tão bonito que é. Não, eu nunca fui de ir em igrejas, seguir doutrinas ou coisas do tipo; eu não consigo ter fé. E a maioria das pessoas também não. Porque por mais que você tenha fé em Deus, confie nele e tudo mais, você não confia plenamente. Porque você diz confiar nele quando está na igreja, diz confiar nele em discussões religiosas, diz confiar nele para conseguir algo que deseja, para que o mundo não acabe e tudo mais... Mas na verdade não confia nele nem para atravessar a rua, porque se confiasse de verdade não olharia para os lados antes de atravessar.
   Apesar de tudo, naquele momento eu me sentia restaurada. Olhava para aquele nascer do sol e me sentia maravilhada. Uma força de tal forma que nunca vi igual. Algo me impelia a continuar, a fazer a diferença. Eu sabia, você também deve saber, se a gente não sofrer, se não chorar, a vida não vai ter aprendizado. Não existe morte pior do que viver de maneira vã. E com toda essa dor, todo esse choro... A vida é dura demais pra aguentar isso tudo sozinha. A gente precisa da fé. E naquele momento eu tinha fé.
   Abri a gaveta do criado-mudo e peguei aquele pedaço de papel amassado, que alguns dias atrás eu havia jogado ali. O endereço dele. Depois daquele dia eu me fechei num tipo de trilha subterrânea por mim mesma. Não queria saber daquele idiota, nem daquele papel idiota. Eu me sentia uma idiota. Fugi de dele por dias, mas dentro de mim havia ele, e não tinha como fugir de mim mesma. Então fiz o que faço de melhor: fingi. Fingi pra mim mesma que estava tudo bem, que havia esquecido tudo aquilo. Eu simplesmente não entendia. Ele não tinha nada comigo, então por que me incomodava tanto o fato dele ser quem é?
   Eu fui fraca e tentei fugir, mas pelo visto fugas não são o meu forte. Hoje eu acordei com vontade de esclarecer tudo aquilo. No fundo, eu estava apaixonada. Mas me negava à assumir. Assumir seria como tornar isso concreto, real. E eu não queria isso.
   Me arrumei, e nem comi nada. Não tinha hora marcada, mas me apressava como se estivesse atrasada. Peguei meu carro e fui dirigindo pelas ruas de São Paulo, procurando àquele endereço. O visor marcava oito horas da manhã. O sol brilhava fraco, mas sem nuvens que o impedissem. Pelas calçadas babás passeavam com os carrinhos de bebês, crianças passavam apressadas com suas mochilas escolares. Tão apressadas em crescer. Mal sabem o quanto a saudade dessa idade dói.
   Cheguei numa parte mais nobre da Zona Sul. Com casas grandes, seguranças e carros de luxo. Como um traficante poderia morar em meio àquelas mansões todas? Sempre imaginei drogados e traficantes como seres imundos, vivendo em barracões de latas velhas pintadas de vermelho vivo; tocando pagode o fim de semana todo. Quando cheguei na frente da casa de número que estava marcado no papel, meu queixo caiu. Abismada, estava no mínino abismada.
   Na minha frente via uma verdadeira mansão. Três andares, com uma sacada e um amplo jardim gramado com palmeiras e fontes. Paredes lisas pintadas de tons pastéis, tudo dava ideia de muita nobreza e educação. Não podia ser ali. Talvez Mary havia se enganado, talvez fosse tudo um teatro, uma confusão! Toquei o interfone e uma voz feminina me atendeu do outro lado, perguntando quem era.
   _Sou uma amiga do Austin. Ele está? _ respondi.
   _Austin? Não tem nenhum Aus... Ahh, deve ser mais uma do Edgar. Ele saiu e ainda não chegou, se quiser entrar e esperar... Qual seu nome, por favor?
   _Julya. Julya Feres.
   Dois seguranças gigantes vieram abrir o portão. Conferiram meu nome e tudo que eu havia dito, só então me acompanharam por um caminho de pedras por entre o jardim. Era tudo imenso. Próximo ao muro se via árvores frutíferas, um outro caminho levava ao fundo, onde havia um mini campo de golf e uma piscina quase do tamanho da minha casa. Na garagem ao lado da casa, carros de luxo e motos caras se acumulavam. Portas de madeira muito bem polida e de vidro temperado se revezavam. Nas janelas persianas e cortinas nos mesmos tons pastéis. Tudo transparecia elegância.
   Na soleira da porta de entrada uma mulher de estatura mediana e uniformizada me esperava, provavelmente a mesma com quem havia falado pelo interfone. Não sorriu, nem me dirigiu palavra alguma além de um ríspido "entre". A segui para dentro da casa, que no seu interior era imensamente mais bonita. Com vários cômodos bem mobiliados, todos muito bem planejados. Tapetes persas, felpudos, de todos os tipos. Lustres aparentemente de cristal pendiam do teto. Um corredor amplo levava à várias partes da casa, e por fim à uma varanda no fundo, típica daqueles filmes bem clichês. Uma mesa com todos os tipos de comida, um café da manhã digno de um comercial de margarina. Numa cadeira, virada de costas para mim, havia um homem. Talvez o pai dele, pensei. Era moreno, com um porte atlético, podia ver seu cabelo pouco grisalho. A empregada que me acompanhava pigarreou e ele se virou.
   Um deus grego, no mínino. Pele morena, olhos pequenos, da mesma cor de paraíso que tinha os do filho, com um ar de quem guarda um segredo. A barba bem feita delineava perfeitamente seu rosto. E estava sem camisa. Somente com uma calça cáqui, que deixava concentrar todos os olhares em seu peitoral musculoso, que chamaria a atenção até de uma freira, como se fosse uma placa neon que gritasse dizendo "sou gostoso".
   _Sr Bertonni, tem uma moça aqui, que ãnh... Ela quer ver o Edgar. - disse a empregada.
   Até ela parecia ficar nervosa com a presença do patrão. Tesão? Medo? Respeito? Qual seria o motivo? Senhor Bertonni... Chegava ser engraçado, um traficante com porte de ator de filme americano e sobrenome de família nobre.
   Assim que ela terminou de falar, ele assentiu e com um gesto a dispensou. Se virou pra mim e me analisava com seus olhos, minuciosamente.
   _Então, ãnh... Qual seu nome mesmo?
   _Julya, Senhor. Muito prazer, Julya Feres.
   _Prazer, Julya. Meu nome é Enzo. Enzo Bertonni. Então, você foi mais uma vítima do meu filho, Edgar? - disse, dando um sorriso sarcástico, quase como se estivesse orgulhoso do filho que tinha.
   _Edgar? Humm... Não sei se estamos falando da mesma pessoa, senhor Bertonni.
   _Sem o senhor, por favor. Não estou tão velho assim, não acha? Creio que estamos falando da mesma pessoa... Quem exatamente você está procurando?
   _Na verdade, Enzo, não sei quem procuro. Um canalha, tão bonito quanto um anjo, mas com a alma de um demônio. Um cafajeste muito parecido com você, moreno dos olhos verdes. - cor de paraíso, pensei. Mas a raiva me subia pelas artérias, e continuei. - Um verdadeiro cafajeste, que se auto nomeou Austin. Em momento algum procurei por Edgar.
   Ele riu irônico. Riu de mim. Da.minha cólera. Sim, ele era tão irritante quanto seu suposto filho. E tão sedutor quanto ele também, talvez ainda mais.
   _Sim, pequena. É meu filho. O nome dele é Austin, mas ele só usa esse nome quando não quer ser encontrado. Austin Edgar Bertonni. Austin é praticamente excluído. Ele diz ser meio gay. Eu também acho, mas foi coisa da mãe dele... Bom, voltando ao assunto. Edgar é mesmo um cafajeste, e você não é a primeira que o procura. Não é escolha dele, é tipo genética, sabe? Uma herança familiar. É o jeito dele, e ele não vai mudar. Ontem mesmo saiu, e até agora não voltou. Está com outra, que provavelmente não irá o procurar daqui quatro ou cinco dias. Porque Edgar gosta de vadias, que só querem uma noite e mais nada. Pra um cara normal seria uma sorte imensa encontrar você, mas pra Edgar foi um azar enorme. Mas se mesmo sabendo disso você ainda quiser vê-lo, pode subir até o escritório e esperar, que quando ele chegar eu aviso.
   Legal. Levei um sermão de um traficante de drogas. Qualquer uma levaria tudo numa boa e iria embora, mas eu não sou qualquer uma.
   _Eu acho que ele realmente teve de quem puxar esse jeito cafajeste. Olha, eu não vim aqui escutar explicações suas, eu vim ouvir explicações dele. Pouco me importa com quem ele esteve, ou com quem ele está, eu não vim pra passear. Tem muita coisa pra ser exclarecida, e minhas dúvidas são com ele, não com você. Se me der licença, eu vou esperar.
   Ele não tirou o sorriso do rosto nem por um segundo. Um sorriso no canto da boca. Com covinhas. Que tipo de traficante têm covinhas, meu Deus?  Me respondeu sorrindo, como se eu tivesse falado apenas que o céu estava azul.
   _Você é decidida, Julya... Essas são as piores. Se quer mesmo esperar, vai lá. Suba as escadas e entre na segunda porta à direita.
   Não disse sequer uma palavra à ele. Enzo estava jogando comigo. E eu sou muito boa em jogos. Me virei e voltei pelo mesmo corredor por onde tinha vindo, próximo à porta de chegada uma grande escada levava ao andar superior. Subi degrau por degrau, observando atentamente os quadros nas paredes e as tapeçarias caras.
   O andar de cima não era tão luxuoso. Um corredor que levava a outros corredores, todos com várias portas, como se fosse um labirinto. Seria fácil me perder em meio àquilo tudo. Felizmente a segunda porta da direita era diferenciada. Grande, de madeira maciça, decorada com desenhos aparentemente artesanais. Empurrei e ela se abriu com facilidade. Pesada, mas bem lubrificada.
   Lá dentro era tudo luxuoso, assim como o resto da casa. Estantes que iam do chão ao teto, completamente cheias de livros de todos os tipos. Na última parede, uma grande janela tinha vista para a rua. Nela vinha um carro vermelho, luxuoso. Sim, era ele.
   Estava na hora de esclarecer muitas coisas.

  

Sweet SeductionOnde histórias criam vida. Descubra agora