Capítulo 1 - Stella

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O destino, esse caminho confuso traçado pelas leis naturais, sempre foi tema de intensos debates entre as pessoas. Alguns juram que é uma questão de sorte ou azar, enquanto outros, mais místicos, acreditam que uma força cósmica, misteriosa e universal conduz os acontecimentos que determinam a existência de uma pessoa, sejam eles os trágicos, como perder um ente querido em um acidente terrível, ou os considerados abençoados, como sobreviver a um acidente terrível.

Já eu, não tenho muito tempo para divagações sobre o destino e sua filosofia. Tenho nos ombros a responsabilidade de cuidar de três vidas além da minha, e essa é uma carga que consome toda minha disposição para reflexões profundas sobre a vida.

Durante o dia, tento me passar por uma jovem comum, como as garotas da minha idade costumam ser. Frequento a faculdade, almoço com minha irmã enquanto fofocamos sobre meninos e meninas. Também confiro meticulosamente as dezenas de remédios da minha avó, estudo para as provas do curso de Direito, e, de vez em quando, até assisto alguma série da moda. Viu? Uma garota comum de 21 anos.

Mas, à medida que o sol começa a dar indícios de desaparecer no horizonte e a noite começa a surgir, a jovem Stella se dissolve, e eu me transformo em Estrela. E Estrela é uma mulher. Agora, em minha mente não existe espaço para fofocas ou séries; os livros acadêmicos são substituídos por uma enorme coleção de maquiagens. Os tênis surrados são trocados por sandálias de salto alto, e, em vez do jeans descolado, fantasias sedutoras completam o meu visual.

A garota tímida, meiga e atenciosa que cuida amorosamente da família, se transforma em uma mulher sexy e ousada. Como Estrela, deslizo pela pista de uma boate disfarçada, onde me apresento com danças sensuais que hipnotizam os homens ricos e nefastos dali.

A dualidade entre minhas personalidades chega a ser assombrosa, e quase ninguém imagina que posso abraçar tão bem meus dois mundos.

Certa noite, Estrela já deveria ter aparecido, mas, para variar, eu estava atrasada. Mais uma vez, precisei resgatar José, meu pai, desacordado em um boteco do bairro. Ele dirigia nosso carro quando, dez anos atrás, um acidente tirou a vida da minha mãe e fez com que minha irmã e eu ficássemos no hospital por semanas. Desde então, a dor da perda e da culpa o desestabilizaram, e ele desistiu de enfrentar a realidade com sobriedade. O marido gentil e pai carinhoso se tornou um homem violente e amargurado.

Normalmente, era minha tarefa visitar o conhecido bar e arrastar meu pai para casa. Mas, naquela noite, ele havia se envolvido em mais uma briga com os outros bêbados do lugar e acabou me obrigando a cuidar de seus ferimentos antes de assumir minha outra personalidade.

— Eu faço isso. Você vai se atrasar. — Letícia, minha irmã, sempre tentava ajudar. Seus poucos 16 anos não a impediam de entender os sacrifícios que precisávamos fazer por nossa família.

— Droga! — Olhei no relógio e eu realmente iria me atrasar ainda mais se ficasse. Então, entreguei um pano ensanguentado para Letícia e tirei uma caixa de curativos da bolsa. Letícia tinha os mesmos olhos pretos e profundos que os meus, e eu me perguntava se eles também escondiam um grande segredo; as pontas coloridas dos seus cabelos cacheados me davam esperanças de que não. Ela ainda era apenas uma adolescente e eu faria de tudo para que não houvesse mais nenhuma dor em sua vida. — Tome, use isso. Se ele acordar, fique longe, ok?

Depois do acidente que abalou nossas vidas, meu pai se transformou em sua pior versão. Além do vício em álcool e das brigas constantes nos bares, ele também agredia qualquer pessoa que cruzasse seu caminho, muitas vezes suas próprias filhas. Eu nunca acreditei que ele foi o responsável pelo acidente; no entanto, uma parte de mim o culpa pela forma com que ele escolheu encarar a vida sem minha mãe. Não posso deixar de pensar que, de certa forma, ele é um dos responsáveis pela terrível situação em que minha vida chegou. Se ele tivesse se reerguido, talvez eu pudesse ter o emprego de uma garota comum e não precisasse usar meu corpo durante a noite para manter nossa família viva e alimentada durante o dia.

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