Com um baque altíssimo, as portas se fecharam. Todas elas. Ricardo correu para tentar abrir uma, mas ela estava trancada.
- Ei, ei, ei... vamos com calma, amigão! - Carlos recuava, tentando se distanciar do robô que não parava de flutuar delicadamente na direção deles - Nós podemos conversar! Você vai perceber que isso é tudo um grande mal-entendido, nós vamos até rir quando lembrarmos dessa cena, não é mesmo, Ricardo? Vamos falar algo como "nossa, lembra que loucura quando nosso amigo..." - deu a deixa para o robô falar seu nome, mas ele continuou avançando, delicada e implacavelmente - "quando ele tentou nos incinerar? Lembra que loucura?"
- Khili'ah-ha, conselheiro administrativo chefe de Lyborynt, enfatiza amigavelmente que essa fatura será, sim, paga.
- Eu não acredito que isso está acontecendo - Ricardo bufava.
- Alvo localizado: Carlos Cantat Filho e Ricardo Observa Estrelas. Coordenadas referenciais: 22... recalculando... 21... recalculando... 19...
Eles estavam chegando perigosamente perto da parede. Logo menos não teriam para onde recuar.
- Nós podemos te dar um pouco de... céus, do que robôs gostam? Óleo? Rodas novas? Olha só! Você pode contar para gente sobre tudo que você gosta! Mas, veja só que coincidência, para isso você não pode matar a gente antes! Então que tal abaixar esses braços e--
- Eu não acredito que você está falando isso.
- Recalculando... 14... 13...
- Oras, resolva você de um jeito melhor!
- Com prazer.
Ricardo esboçou um chute na cabeça do robô, ao que este rapidamente reagiu queimando parte das luzinhas de seus tênis.
- Eu não acredito que eu acabei de tentar fazer isso - bufou Ricardo, enquanto tentava apagar o fogo de seu sapato.
- Recalculando... 5... 3... você chegou ao seu alv--
- Tudo bem! - Carlos berrou, já fechando os olhos - Tudo bem, nós vamos pagar! Quem nós... ahn... quem contratou o transporte em nosso nome?
O robô instantaneamente guardou suas armas. Disse, então, em um tom simpático:
- Khili'ah-ha, conselheiro administrativo chefe de Lyborynt, envia seus mais sinceros e calorosos abraços e se apresenta como contrante do serviço de transportes de emergência Zapiup: sua segurança nunca foi tão importante! Ele aguarda os senhores na sala 21 do prédio principal do distrito administrativo de Lyborynt para acerto das contas referentes à mencionada contratação. Eu sou Fisser 7244, e é com grande prazer que serei guia e companheiro dos senhores: Carlos Cantat Filho e Ricardo Observa Estrelas nessa agradabilíssima viagem a Lyborynt.
As portas se abriram novamente, e o robô começou a andar em direção a uma delas.
- Eu não acredito que isso vai acontecer.
- Isso, isso... muito bem. Entenda, Fisser, que nós estamos absolutamente dispostos a pagar a sua fatura, não nos leve a mal... mas nós não sabemos muito do sistema monetário de... Lyborynt.
- Que excelente pergunta, Carlos Cantat Filho! Lyborynt valoriza a justiça em toda e qualquer negociação, e por isso nossa unidade de troca há muito deixou de ser qualquer coisa palpável, que possa ser concentrada.
- Ótimo, ótimo... e se tornou...?
- Trabalho, Carlos Cantat Filho. Pelos cálculos, realizados com apoio de Contabular: conte a questão e fazemos as contas!, o preço pela contratação dos transportes de emergência Zapiup: sua segurança nunca foi tão importante! é de... recalculando... vinte dias terrestres, excetuando-se os impostos.
- Oh. - foi tudo que Carlos disse.
- Eu não--
- Tudo bem, Ricardo - Carlos cochichava enquanto o Fisser guiava-os pelo salão - eu também não acredito nisso, mas não temos muitas opções, não? Tentamos negociar lá ou morremos aqui. E pelo menos agora temos um rumo, e só vamos ter que pensar em qualquer outro quando chegarmos lá.
- Porta número 3.348.792, com destino ao portão principal do distrito administrativo de Lyborynt. Você chegou ao seu destino.
Delicada e simpaticamente, Fisser empurrou-os porta adentro.
Se a simples viagem já era comparável a um ataque de pelicanos raivosos em alto mar, viajar após ter sido empurrado em direção a espiral seria, com certeza, um ataque de chiuauas voadores e raivosos em alto mar.
Quando os chiuauas foram embora, o mundo parou de girar e Carlos conseguiu abrir os olhos, foi apenas para se deslumbrar com a visão de Lyborynt.
O portão principal do distrito administrativo ficava em um esverdeado, arredondado e consideravelmente fofo morro, em cujos lados se encostavam outras dezenas de morros semelhantes, formando uma espécie de muralha verde e fofa.
Dando as costas para o portal, a vista era incrível. Uma estrada central descia o morro do portão e se ramificava em várias estradinhas menores, cada uma levando a um aglomerado de construções semelhante a uma cidade. O tom prateado da tinta que banhava todas essas construções refletia a luz de tal forma que mais parecia serem elas a observar Carlos, e não o contrário.
Mas era olhando para além do portão que a coisa ficava realmente inacreditável. Havia um grande vale, arborizado e dividido ao meio por um rio, separando a muralha de morros de uma enorme cadeia de montanhas. Do topo de uma dessas montanhas, erguia-se um único prédio, gigantesco. Certamente ele tocarias as nuvens, se houvesse alguma nuvem naquele lugar. Como não havia, ele apenas se estendia rasgando aquele céu tingido de uma cor curiosa, entre o azul esverdeado e o verde azulado.
Estacionada à frente deles, havia uma pequena nave esférica, igual às dezenas que voavam entre o portão e o grande prédio das montanhas. Fisser digitou uma senha no teclado acoplado à porta da nave e, no que ela se abriu, indicou agradavelmente para que Ricardo e Carlos entrassem. No instante seguinte, já estavam voando.
A vista lá do alto era ainda mais impressionante, quase tão impressionante quanto a própria altura em que voavam. Esta, inclusive, era tão impressionante que Carlos mal conseguiu pôr seus sentimentos em palavras e quase os pôs diretamente para fora de seu estômago.
Eles voavam relativamente rápido. A cada segundo, viam as árvores do chão ficando menores, e a parede externa do edifício ia ocupando mais e mais de seu campo de visão. Os aglomerados prateados pareciam minúsculos agora, as estradas se tornaram meros fios de cabelo. À frente, apenas o edifício cada vez se aproximando mais.
E mais.
E mais.
Logo repararam que eles simplesmente não paravam de se aproximar. Não estavam descendo. Não havia nem um sinal de que iriam aterrizar.
Carlos arriscou:
- Ahn, Fisser, você não acha que estamos correndo um pouco demais?
- Recalculando... 600... 530... 470...
O prédio estava cada vez mais perto.
- Veja, Fisser, talvez seja melhor nós começarmos a aterrizar agora, creio que já estamos bem perto do prédio, se esperarmos muito isso pode acabar um pouco...
- Recalculando... 240... 190... 120...
- ...mal.
A parede do edifício estava implacavelmente próxima agora.
- Fisser...
- 90... 70...
- Fisser...
- 55...
- FISSER! FREIE ESSA COISA AGORA!!!!
- Recalculando... 40... 10... 5... 1...
- FISSER!!!
Um choque intenso e eles não se moveram mais.
- Você chegou ao seu destino.
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O Abismo das 1001 Portas
FantasyQuando a mente de Carlos percebeu que ele se encontrava no meio de uma queda irreversível em direção ao fundo do Abismo do Fim do Mundo, ela imediatamente começou a produzir pensamentos curiosos, pensamentos diversos - mas que, de uma forma ou de ou...