Nomes não definem pessoas; os olhos,sim. Era nisso que acreditava a mulher de vestido vinho. Para realmente conhecer alguém, era necessário passar dez segundos olhando nos olhos, sem desviar. Os primeiros três segundos eram como um sussurro silencioso entre dois estranhos, um contato inicial que dizia:"Eu estou aqui e estou te vendo. A questão é: você me vê?" Mais dois segundos mantendo o contato visual, e vinha o constrangimento, um incômodo sutil ao perceber o olhar fixo e nada discreto. Nos três segundos seguintes, a situação subia de nível e a vergonha tomava forma. Mas eram aqueles dois segundos finais que realmente mudavam tudo, o momento de quebrar a barreira, dar um passo adiante e dizer apenas uma palavra: "Oi."
Não era a primeira vez que a desconhecida, que não gostava de nomes, estava naquele bar, sentada na cadeira de madeira ao lado do balcão. Um lugar discreto, onde poucos a notavam,permitindo que ela lesse tranquilamente e tivesse fácil acesso ao cardápio de bebidas.Quando alguém perguntava: "Por que está sentada contra a parede, em um lugar tão pouco visível? Se é pela bebida, por que passa a noite toda segurando o mesmo copo e, no final, deixa-o no balcão, ainda quase cheio?" Ela, como de costume, dava um sorriso discreto, mexia nos cabelos cacheados e se inclinava para a frente,exibindo o mesmo decote em V perfeito de sempre. Respondia qualquer coisa que lhe viesse à mente, pois sabia que metade dos homens que a abordavam, e até mesmo as mulheres naquele bar, não prestariam atenção às palavras que saíam de seus lábios.
Estavam ocupados demais se perguntando se o local entre o V era tão quente e macio quanto parecia. E isso estava bem para ela,porque aquele bar, que também não carregava um nome — pelo menos, não um memorável — era para isso mesmo:pessoas desconhecidas tentando adivinhar o que havia debaixo da roupa de outras pessoas.
Apesar de não gostar de nomes, e ali dentro eles terem menos importância do que do lado de fora, a desconhecida tinha um nome escrito em um papel preso na alça do vestido: "Amora". Foi a primeira coisa que lhe veio à mente quando entrou no estabelecimento rústico e de pouca iluminação. Ironicamente, toda vez era o nome de alguma fruta; ela nunca parou para pensar por quê, e não importava. Se alguém a chamasse de Amora, Maçã,Cereja ou até Uva, estaria tudo bem.
Ela estava ali todos os sábados à noite pelo mesmo motivo: a mulher do outro lado da sala. Usando sempre as mesmas botas de couro. As roupas mudavam, mas as botas,o batom vermelho e o perfume eram sempre os mesmos. Amora jamais admitiria em voz alta que passava muitas vezes propositalmente ao lado da mulher de cabelos curtos só para sentir o cheiro do perfume. E não era só isso. Por muitas noites, ela ensaiava uma conversa hipotética em sua mente com a desconhecida, que, ao contrário dela,sempre usava o mesmo nome: "Carmilla."
A conversa mental sempre começava comum "oi", um "oi" que nunca saiu. Amora chegava ao bar mais cedo do que a maioria das pessoas, sentava-se no mesmo canto,pedia a mesma bebida e observava Carmilla do outro lado.Diferente dela, Carmilla estava sempre rodeada de pessoas, algumas literalmente ajoelhadas aos seus pés —algo comum de se ver naquele bar.Mas o que Amora sempre procurava,quando Carmilla passava pelas cortinas vermelhas da entrada, eram os olhos dela. Olhos que tinha visto mais vezes em sonhos do que na vida real. Ela não sabia explicar o porquê,mas aqueles olhos...
O ponteiro do relógio em formato de coruja, acima da estante de bebidas, já tinha dado três voltas completas, e Amora continuava no mesmo lugar:costas contra a parede, pernas cruzadas e cabeça virada na mesma direção. A bebida, que antes estava fria,agora estava mais quente que a palma de sua mão. Carmilla já havia saído do lugar onde estava e voltado muitas vezes. O bar tinha mais de um andar, mas agora isso não importava.
Amora estava tão focada nos olhos da outra — olhos que nunca se voltavam para ela — que mal notou que, apesar do bar estar cheio de pessoas naquela noite,Carmilla sempre voltava para o mesmo lugar, o mesmo assento, sentava-se na mesma posição. Havia tantos lugares para ela ficar, mas sempre o mesmo...Amora suspirou pesadamente, sentindo o corpo já cansado. Desviou o olhar, pegou a taça e levou-a aos lábios, um pequeno gole para aliviar a secura. Levantou-se da cadeira, deixou algumas notas ao lado da taça sobre o balcão e se virou para ir embora, como fazia toda noite. Mas, no momento em que se virou, ficou estática no lugar.Tentou dar um passo para trás, mas não havia como, não com o balcão preso no chão atrás de si. Carmilla estava bem na sua frente, e, finalmente, a olhava nos olhos.
Carmilla se aproximou um pouco mais, um sorriso enigmático nos lábios, e, com a voz suave e levemente provocativa, disse: —Passou a noite toda olhando, como na maioria das outras noites. — Amora sentiu o coração disparar, os olhos fixos nos de Carmilla, finalmente próximos, finalmente vistos. Ela tentou reunir as palavras que ensaiara tantas vezes em sua mente, mas tudo o que conseguiu foi abrir a boca sem som, engolindo o nervosismo que ameaçava transbordar. — Seu pequeno esconderijo não é tão perfeito quanto pensa. Eu notei você, não era isto que voce queria? Vai falar algo ou vai ficar só me encarando?
Os lábios de Amora se abriam e fechavam,mas nenhuma palavra saía. O silêncio só não era completo por causa da música de fundo, uma melodia lenta e melosa, e pelarisada baixa de Carmilla, que parecia se divertir com o nervosismo de Amora. Havia uma delicadeza nos movimentos de Carmilla que qualquer um notaria — não uma delicadeza leve como a de uma pétala caindo, mas sim a de uma onça, pronta para dar o primeiro bote a qualquer momento, sempre à espreita da presa perfeita.
Amora se sentia pequena sob o olhar afiado de Carmilla, e, ao mesmo tempo,não conseguia desviar os olhos. Era como se, finalmente, tudo que ela havia esperado durante aquelas noites intermináveis estivesse se desenrolando diante dela, mas as palavras continuavam presas, sufocadas.— Sabe, isso é estranho. Todas as noites que eu venho, você está aqui, sempre me olhando. — Carmilla disse, com um sorriso provocador dançando em seus lábios. — Eu poderia jurar que outro dia você até estava me cheirando. Acho que devia chamar o segurança, a polícia, sei lá.
A provocação era clara, e Carmilla parecia se divertir com cada palavra que deixava Amora mais sem jeito. A risada de Carmilla soava quase como um desafio,uma corda esticada que separava as duas,esperando para ver se Amora teria coragem de atravessá-la. —Desculpa —Amora finalmente disse, a voz falhando um pouco. A pequena ameaça de Carmilla a trouxe de volta para a realidade, e a vergonha de ser expulsa na frente de todos fez seu rosto queimar. Seria humilhante se todos descobrissem que ela estava ali, noite após noite, só para observar uma pessoa cujo verdadeiro nome ela nem sabia.
Amora balançou a cabeça em negação,tentando afastar o constrangimento, e deu um passo para o lado, depois outro, em direção à saída. As mãos tremiam ligeiramente, e o desejo de desaparecer dali era forte.Antes que seus pés alcançassem a saída, Amora sentiu uma mão quente sobre seu antebraço. A voz baixa, sussurrada diretamente em seu ouvido, a arrepiou, e ela ficou novamente estática. O contato era intenso, quase elétrico, e as palavras sussurradas carregavam uma sensação de urgência e intimidade que a fez hesitar, o coração batendo forte em seu peito.
— Jogamos o seu jogo por longos dias,você me olhando e eu fingindo não ver.Agora, vamos jogar o meu. — Carmilla soltou o braço de Amora e começou a andar na direção oposta, em direção a uma pequena escada em espiral que subia para outro andar. As escadas, com seus cerca de dez degraus, eram circulares elevavam a um nível mais alto, mais escuro e silencioso do que o ambiente abaixo.Este novo andar era mais reservado, com poucas portas e uma atmosfera que parecia prometer ainda mais segredos e intimidade. Carmilla subiu com uma graça deliberada, cada passo marcando uma certeza no jogo que ela acabara de sugerir.
Amora permaneceu no mesmo lugar,observando a cintura de Carmilla desaparecer ao subir a escada. Ela olhou para a porta e para a escada com dúvida.Aquilo era real? Ou apenas uma brincadeira cruel de alguém que tinha notado seu lado frágil?. As incertezas começaram a se formar em sua mente.Quais seriam as chances de subir e descobrir que tudo não passava de uma piada terrível? E se o jogo que Carmilla estava propondo fosse apenas uma maneira de expô-la, uma forma de rir de sua vulnerabilidade? Amora hesitou, o coração batendo acelerado, a mente dividida entre a curiosidade e o medo.
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Lábios e Pecados
ContoAqui você vai encontrar uma coleção de contos que mergulham fundo no desejo, na ousadia e nos limites do prazer. São histórias onde a intimidade é explorada sem medo, onde o poder e a entrega se cruzam em jogos de submissão e controle. Aqui, o praze...