Coordenadas

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A primeira vez que entrei numa sala de aula foi assustadora. Eu tinha 6 anos, estava no pré. (Que agora chamam de 1° ano.)
Eu imaginava que todas as professoras parecessem bruxas, com as verrugas e um cheiro de tampar o nariz para não morrer sem ar mais cedo. E as outras crianças deveriam ser chatas e mimadas, cheias de coisas que eu não posso pegar emprestado. Com cara de duende e coração de gelo.
Mais tarde, no quarto dia de aula eu descobri que estava errada. Exceto pelos pertences proibidos. Temos todos nosso pequeno egoísmo.

Por outro lado, não era a primeira vez que eu entrava numa escola.
Antes, quando eu tinha 2 anos, meus pais me matricularam numa dessas maravilhas educadoras para crianças que mal faziam o que faziam, mas eu detestava aquilo. Não eram aulas, era tudo e qualquer coisa que eu podia fazer em casa. Morávamos numa cidadezinha distrital de apenas 1900 habitantes, era praticamente como morar numa grande escola.
As crianças mais velhas estudavam na cidade vizinha, que também era pequena, mas com 5 mil e uma certezas maior.
De qualquer jeito, meus pais acharam que segurariam minha barra por três semanas. Quando, na verdade, eram a professora e sua assistente de crime que seguravam. Eu chorava e esperneava quando todos riam e dançavam. Eu ficava em alerta, quando era para fechar os olhos e dormir. Eu rabiscava quando deveríamos brincar. E brincava quando deveríamos estar todos "desenhando". E o principal, eu mostrava a língua seja qual fosse a razão.
É claro que não me lembro de nada disso. Mas deve ser verdade, porque desde que sei disso, lembro rindo. E penso "que fofa" e não "que capeta". Ou seja, o dia em que saí da minha primeira escola deve ter sido muito comemorado. Por mim, pelos meus pais e sobretudo, pela professora e sua assistente.
Enquanto deu certo, minha própria mãe me educou. Misturávamos nosso carinho com nossa dedicação. E as coisas simplesmente davam certo.
Quanto à minha socialização, também não havia problemas. Eu tinha dois vizinhos que amava muito! Um casal de gêmeos, Luana e Daniel. Éramos inseparáveis e algumas vezes eles participavam das minhas lições.
Alguns pontos começaram a dar errado quando eu completei 5 anos. Meus melhores amigos se mudaram de país! E meu comportamento e toda ética construída foram com eles. O que fez com que meu último ano de aulas em casa se tornasse uma enorme catástrofe.
Lembro pouco dos meus amigos. Mas desse pouco guardo muito carinho. Vendo nossas fotos acredito que tenha sido algo tão puro quanto nós mesmos éramos. O vazio que eu sentia tomou conta de mim e a coitada da minha mãe se entregou ao último suspiro.
No ano seguinte, em fevereiro, eu já estava matriculada numa escola. Numa outra cidade. A 600km de onde eu nunca havia saído. Aqui. Com muito mais habitantes e uma incrível quantidade de distrações.

Em menos de um mês, Luana e Daniel viraram uma linda lembrança, guardada distante de tudo aquilo que eu estava experimentando.
Mudar de cidade foi fácil como julgar alguém. Entrar na sala de aula da turma 2, foi uma das maiores coragens que tive na vida.
A primeira coisa que ouvi no meu primeiro dia de aula foi:
_Oi, querida. Bom dia, sou a tia Clara. Você poderia dizer o seu nome à turma? - e essa também foi a última.
Desmaiei e fui despachada para casa. Depois disso, faltei pelos próximos dois dias e meus pais foram convocados a um encontro semanal com a coordenadora do setor para falar sobre mim.
Na "volta" às aulas, eu havia decorado uma linda frase para me desculpar com a turma. E meus pais, que não poderiam perder um ato sem pé e nem cabeça, fizeram questão de me apoiar e levaram a filmadora para que eu nunca me esquecesse do quanto eu pensava alto.
_Oi crianças. Meu nome é Guida Dallas. Mas não pode me chamar de Gui. O que eu fiz foi muito feio. E eu peço desculpas, daqui de dentro. - aparentemente eu assistia Sessão da Tarde demais, pois segundo a filmagem e eu não acho que ela minta, eu bati a mão onde fica o coração. E claramente minha mãe me vestia de menos. Já que eu estava com o short-saia verde escuro do uniforme e com duas tranças espetadas para o alto. No pulso direito uma pulseira amarela de acrílico, e no pé uma bota listrada... De laranja... Roxo... E verde limão.

Foi assim que eu ganhei minha primeira amiga lá.
De repente, em meio à multidão, uma menina de cabelo curtíssimo, quase como um rapazinho, se levanta e aplaude. Esse foi o motivo do primeiro sorriso que dei para Rita.

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Você já parou para prestar atenção nas coordenadas geográficas? Elas são coisa de uma mente brilhante.
São uma sequência de números e símbolos simplificados que indicam um lugar.
Também adoro o CEP. Quando preciso do meu endereço em um site, oito números ordenados fazem ele completo aparecer.
E mais uma vez os números contam algo sobre a gente. Onde estamos, onde queremos ir, o quão longe estamos de algo e também o quão perto. Nós mesmo somos coordenadas em constante transformação. Ninguém ocupa nosso espaço presente. Por todo o tempo continuamos números, não somos só mais uma unidade em 7 bilhões. Somos talvez, por alguns instantes, 36° 23' N 25° 27' E.

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_Fala sério, Dal! O cara é um idiota! - Já faz algumas semanas desde o ocorrido e eu ainda choro.
_É Dal, a Leila tem razão.
_Não, gente. Tá... Tá. Eu sei que ele é um indiota, mas - elas começaram a conter um riso, cuja fonte eu desconhecia - o que foi?
_Indiota - disse Rita jorrando o riso dessa vez. E Leila acompanhou. Bem, eu também acabei rindo.
_Muito bem! É isso que esperamos de você! - quando escutei o que Rita dissera, comecei a chorar novamente.
_Eu sou uma burra. Uma qualquer que ninguém quer por perto...
_Ei, nós queremos!
_Vocês não são meninos! - elas estavam com cara de quem não sabia se ria ou se saia dali, só porque já estava ficando ridículo - Por que eles fizeram isso comigo? Eu sou tão fácil assim?
_Nãoooooo Dal! Para com isso! - Leila bufou. - É isso. Já chega! Nós vamos sair, e é agora.
_Que? - Rita estava mais surpresa do que eu.
_Pra onde vamos? - eu disse com a voz ainda oca, mas diminuindo o ritmo do choro.
_Nós vamos pro churrasco do Tomás.
Rita puxou o braço de Leila e a puxou alguns passos pro lado. Era para ser um sussurro, mas ela não é boa com isso.
_Enlouqueceu, Leila? O Leon vai tá lá!!!
_Mais um motivo pra irmos! Ela tem que ver como está por cima disso.
_Olha, amiga. Eu sinceramente não acho que ela esteja... Qual é? Ela acabou de ser praticamente forçada a ficar com o cara... E - dessa vez ela colocara as mãos ao redor das palavras, em uma cápsula onde nem seu rosto eu pude ver.
Leila entortou o bico, e disse baixo para Rita.
_Confia em mim.
E se virando para mim anunciou:
_Hora de se arrumar!
_Leila, precisamos ir mesmo? Eu nem tenho roupa e já são 10 horas! Sem chance dos meus pais deixarem.
Ela saiu correndo em direção à cozinha. Encarei Rita e ela sorriu, pensando em fugir tanto quanto eu.
De onde estávamos, escutamos Leila.
_Tia, então, a gente pode ir num churrasco? - eu olhei para Rita, depois de olhar para a cozinha, nos levantamos e fomos correndo ver no que aquilo ia dar.
_Ah, meu bem. Acho melhor ficarem aqui. Aluguem um filme, tem bolo...
_Por favor, queremos animar sua filha.
Minha mãe olhou em minha direção, para minha cara de choro.
_Ok. - mãe? - podem ir. Mas sem beber. E não se desgrudem. Juízo para as três, ouviram?
_Brigada tia Sara!!! Você é tudo. - Leila abraçou a minha mãe e Rita começara a gostar da ideia.
_To frita. - me rendi.

O Número 8Onde histórias criam vida. Descubra agora