O Número Seis

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Eu estava no meu quarto me preparando para dormir. Desde o início da semana Gregório e eu estávamos nos falando. E eu estava adorando conhecê-lo aos poucos. No entanto, para minha infelicidade, ele não havia mais tocado no assunto referente ao nosso encontro. Não havia realmente uma data e um local. Havia um horário, 19:00. Havia eu. Havia ele. E isso era tudo que eu sabia.
Fechei meus olhos, tentando sonhar com o branco. Queria paz. Queria tranquilidade. Queria esquecer da semana de provas que estava por vir.

O celular apita.
Uma notificação.

23:42
Onde vamos amanhã?? ~Greg

Um sorriso. Uma risada. Um pensamento.
Até que enfim!

23:43
Onde vc ta pensando? :) ~ Guida D.
Eu esperava qualquer lugar, com excessão do bar. Quando me lembrei de que ele poderia ser a sua escolha e de que talvez eu precisasse justificar minha negação a ir até lá, meu estômago revirou. Várias vezes...
23:43
Em qualquer lugar...
Menos no Raposo... ~ Greg

Raposo, ou vulgo "bar novo".
Alguém ligou os pontos daquela noite fatídica.

23:44
Que tal na sorveteria do tio da Rita?? ~ Guida D.
23:44
Sinto muito :/ não tomo sorvete ~ Greg

Fiquei alguns segundos paralisada. Incrédula. Primeiro pensei que ele poderia ser intolerante a lactose, ou a outra substância. Mas apaguei a ideia quando lembrei de vê-lo tomando um Nescau na cantina da escola. Então, fiquei imaginando se por algum motivo ele simplesmente não gostasse de sorvete, tentando achar uma justificativa plausível para alguém não gostar de sorvete. Eu, com toda a certeza da galáxia, não poderia sair com um hater de sorvetes.
Brincadeirinha.

23:47
Você ta brincando né????!!!? ~ Guida D.
23:48
É Sério! kkkkk ~ Greg
23:48
Mas meu deus!!!! Por quê? O que os sorvetes do mundo te fizeram? ~ Guida D.
23:48
É brincadeira troxa :D ~ Greg

Ufa parte 2!

23:48
Às 19h então, na sorveteria do tio da Rita, que fica...? ~ Greg
23:49
Na rua Júlio Amaral com a Av. Golveia. Chama Sorveteria Amaral. ~ Guida D.
23:51
aaaah seeei! Por que não disse logo? :'D
Ah
E eu te busco ~ Greg
23:51
Okk... Mas como pretende nos levar até lá?
Vc não é um daqueles sociopatas que pega o carro dos pais escondido e sai por aí atropelando de tudo né? ~ Guida D.
23:52
Kkkkkkk que eu saiba?
Talvez ~ Greg
23:52
Ahuahauahauah bobo!
E então como vamos? ~ Guida D.
23:52
Surpresa... ;) ~ Greg

* * * *

Era sexta-feira, o "bofe 8" chegou na hora exata. Mas antes disso, passei três horas me preparando para qualquer coisa que viesse a acontecer. Nos meus cálculos confusos, 80% desse tempo foi para um preparo 100% psicológico.
Depois dos últimos baques, está sendo difícil me reerguer.
Concordo que são coisas amenas se comparadas aos tantos desastres catastróficos que vemos pelo mundo.

Aí vai.
Adicione ao seu bloco de notas.
Guida Dallas não encontrou sua quinta coragem, mas encontrou um sexto medo:
Tenho medo de me apaixonar de novo.

Gregório me buscou de táxi, o que me fez rir. Ele estava de bermuda e chinelo, me deixando mais confortável com a minha escolha nem um pouco "patricinha". O que me fez rir pela segunda vez, antes mesmo de parar de rir pelo primeiro motivo.
Particularmente, uma brecha se expandia em mim e me deixava sentir um fio de alegria quando eu estava com ele.
Eu estava descobrindo que ele conseguia me fazer rir de um jeito diferente.
Nos cumprimentamos com beijos recíprocos na bochecha, e quando entrei no táxi, ele estava segurando a porta, e disse com um sotaque francês nunca treinado:
_Mademoiselle.
Ele disse ao taxista qual era a próxima parada e para lá fomos. Para a sorveteria Amaral.

Sentamos-nos em uma das mesas próximas da bancada onde ficam os sorvetes. E ficamos em um jogo de encaradas misteriosas, fazendo algumas brincadeiras tolas e saudáveis, como mostrar a língua e outras caretas.
Eu estava ansiosa pelo momento em que ele falaria alguma coisa. Mas esperar parecia um sacrifício ainda maior do que tomar uma atitude.
Estávamos ali fazia 3 minutos, para mim uma eternidade.
_Você roubou meu número da sorte. - eu disse.
_Ahn? - sinto muito, foi o melhor que pude fazer. E, desde que ele entrara na escola, isso crescia dentro de mim.
_É que, eu amo o número 8. - ele começara a sorrir - E desde que tenho oito anos é o meu número na ordem de chamada... Mas você mudou isso. - ele riu suavemente, achando tudo uma graça. - Agora você é o número 8.
Gregório olhava fixamente em meus olhos.
Os dele? Brilhavam.
Desviou o olhar reluzente a um local que possuía um tom fosco, forte e rosa.
Ele segurou meu queixo com a ponta dos dedos e se debruçou na mesa curta. Seu rosto estava a um palmo do meu, e o sorriso havia desaparecido. No lugar do brilho dos olhos eu via desejo, perto de meus lábios estavam os dele. E cada vez mais.
_Vamos com calma - pensei alto, a princípio - sei que não foi a impressão que passei, mas não sei o que eu devo fazer.
Gregório fechou os olhos, me amolecendo.
Eu estava contrariando completamente meu instinto. Eu tinha acabado de começar a demolir o prédio sólido que me fiz desde pequena. Confiante, espontânea, corajosa. Mas com toda a minha verdade, eu não sei como lidar com o que estou induzida a sentir pelo próximo a quebrar meu coração.
Na minha frente, Gregório estava despejado nas costas da cadeira, olhando à sua direita para a linha do horizonte. Com um pouco mais de tempo, ele se virou em minha direção apertando o interior dos olhos. E disse:
_Também é o meu.
Continuei a fixá-lo.
_O número 8 também é o meu número da sorte.
Sorri para ele.
_Que tal brindarmos a isso? - sugeriu, indicando o balcão dos sorvetes com a cabeça.
_Perfeito! - respondi, me levantando.
Fomos até o balcão com os olhos derrubados no chão. Ele pediu um sorvete de pistache, me fazendo olhá-lo com mais atenção.
_Vou querer o mesmo. - eu disse.

Voltamos ao nosso local de partida. Não à minha casa... À mesinha.
E graças a Deus, ele quebrou o gelo.
Falar com ele todos os dias na escola era uma coisa. Dar selinhos bobos perdidos no ar, quando ninguém observava era uma coisa parecida. Combinar de me encontrar com ele era outra um pouco mais ousada. Mas me encontrar na prática com ele era completamente diferente.
_De onde vem seu nome?
_Era o nome da minha avó materna. Na verdade, era o apelido dela.
_E ela chamava... Guidelina?
_Tá falando sério?! - falei enquanto ria - Gregório, você é PÉSSIMO com chutes. - continuei rindo, o fazendo rir comigo.
Quando paramos com nossa palhaçada, e eu recuperei o fôlego respondi mais apropriadamente:
_Ela chamava Margarida. A homenagem foi porque ela morreu dois dias antes do meu nascimento.
Gregório me olhou com compaixão e disse:
_Fala aí, está tentando me impressionar.
_Talvez. - o desafiei, sorrindo de leve.
_Também acho que não gosta coisa nenhuma de sorvete de pistache.
_Cuidado para não achar coisas demais e no fim não saber coisa nenhuma.
Ele riu sincero. E, de repente, eu fiquei séria.
O que está dando em mim?
É a mesma sensação que tive quando o beijei de surpresa.
Será que estou sofrendo de algum transtorno bipolar?!?!
Encarei sua boca.
Eu estava arrependida por tê-lo impedido de me beijar.
Quando dei por mim, lá estava ele de novo, com os dedos faceiros no meu queixo.
Será que ele entendeu o recado?
Seu rosto deslizou de novo até o meu, e nossa respiração estava na mesma sintonia. Era tão difícil culpá-lo por se interessar por mim. Não fazia sequer sentido.
Quando ele ia tocar meus lábios, se esquivou, mas antes que se esparramasse na cadeira, segurei sua nuca e lhe entreguei um sorriso malicioso.
Gregório me beijou suave e demoradamente. Como havia feito da outra vez.
E, então ele para.
_Não brinca comigo. - ele disse baixo e com imensa sinceridade.
_Contanto que você também. - respondi, e o beijei com intensidade.

Ali, naquela mesa, com o sorvete derretendo dentro dos copinhos, Gregório se abriu sem querer. E indiretamente me contou.
Eu não era a única com medo de se apaixonar.

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Música de hoje: Que Tal (Banda Reverse)

O Número 8Onde histórias criam vida. Descubra agora