Uma vez, no alto da madrugada, Julio olhava fixamente para a tela do seu computador.
Minhas musas, por favor, uma pequena ajuda!
A folha em branco olhava-o de volta, encarando-o, destemida e quase desafiadora. Incitava-o, demandava pelas suas palavras.
Você nunca vai conseguir, ela caçoava na mente de Julio.
Num acesso de fúria, tacou a caneca de café na parede branca.
Droga!
Ele amava aquela caneca. Uma que havia comprado há três anos atrás, numa feira de cultura japonesa. Era o desenho de um maneki neko, o gato da sorte japonês, sorrindo para ele, desejando-o bons pensamentos.
Aquele gato maldito! Sorrindo para mim, como se soubesse mais do que eu sobre minha própria sorte.
Julio era extremamente supersticioso, daqueles que não passam debaixo de escadas e pisam sempre com o pé direito quando saem da cama. Não à toa, sua cama ficava encostada na parede esquerda do seu minúsculo apartamento de um quarto-sala-cozinha em um só ambiente.
Levantou-se da sua cadeira para limpar o estrago do café escorrendo pela parede branca. Recolheu os pedaços da caneca, inconformado por ter feito o que acabara de fazer. Por que tanto descontrole?
Ok que a conta de luz estava atrasada, outra vez. O gás já tinha sido cortado há um tempo e dava graças a Deus por morar no Rio de Janeiro, uma cidade que não via o inverno de verdade já há alguns anos. Banho quente não era uma necessidade.
- Você consegue – suspirou para si próprio, voltando a sentar na cadeira.
A marca do café ainda estava na parede. Como ele iria tirar aquilo?
Volta pro texto, Julio!
Talvez com uma mão de tinta? Não seria uma má ideia pintar aquela parede. Ele lera sobre as funções das cores uma vez, num artigo de uma revista de curiosidades científicas, e lá dizia que uma cor específica aumentava a criatividade. Talvez era isso! Faltava cor!
O texto, merda!
Na noite anterior, havia conseguido emplacar uma proposta de roteiro para uma série amadora do YouTube sobre uma adaptação moderna de Peter Pan na cidade grande, cheia de referências ao texto original.
Ele amava realmente o texto original, mas sentia que qualquer metáfora para trazer Peter Pan ao Rio de Janeiro parecia bobeira.
- Acho que pode ser engraçado – uma voz falou atrás de si, olhando por cima de seu ombro para a tela do computador em branco.
Ele virou-se espantado ao ver uma mulher rechonchuda, trajando um vestido longo de gala branco, bem cortado e ajustado ao seu corpo.
- Tália, você sabe que a melhor solução seria um final trágico – argumentou outra mulher, esguia e com um vestido semelhante ao da amiga.
- Não, Melpômene – Tália retorquiu. – O mundo já está cansado dessas suas ideias trágicas. Vamos dar algo para eles sorrirem. Escreve aí, garoto! "O rapaz entra no quarto escu---".
- Não! Não, não, não! – Melpômene interveio. – O quarto escuro sempre pode remeter a coisas tristes, então deixa que eu escrevo essa.
- O que está acontecendo? – Julio mal conseguia falar.
- Vejo que vocês já chegaram! – uma terceira mulher entrou pela porta, seguida de outra, sorridente e com movimentos ágeis e calculados. – Vamos ligar esse som um pouco?
- Bota algo alegre, Euterpe! – Tália falou. – Vai melhorar o humor por aqui! Aproveito e já danço com você, Terpsícore! – Tália já estava sacodindo os braços e o quadril, acompanhada por Terpsícore, que era, honestamente, bem melhor nisso do que Tália.
- Gente, parem – Julio tentou falar, sua voz mal sobressaindo acima da barulheira do seu apartamento. – Parem. Parem!
Imobilização.
As quatro mulheres pararam onde estavam e se voltaram para Julio como estátuas vivas.
Melpômene começou a chorar.
- Não, querida! Ele não fez por mal – Tália aproximou-se da amiga, olhando feio para Julio. – Sorria. Tudo está bem.
- O que vocês estão fazendo? Quem são vocês?!
- Nós somos as musas – anunciou uma quinta mulher, aparecendo no meio da sala, entre fumaça e luzes. Parecia um show. – Eu sou Calíope.
- E eu sou Clio, a proclamadora de heróis – entrou uma sexta mulher. – Nós ouvimos suas preces, Julio.
- E viemos ajudar como melhor pudermos – Calíope completou.
- Eu só quero escrever um roteiro sobre uma adaptação moderna de Peter Pan. Só isso.
- Ah, eu lembro quando ajudei o Barrie com essa peça – Tália adiantou-se.
- Não só você, querida – Calíope corrigiu-a. – Eu estava lá enquanto ele contava a história do garoto-que-não-queria-crescer pros meninos da Senhora Sylvia.
- Vocês não eram nove? – Julio indagou.
- Erato tirou férias – Calíope respondeu. – Longas férias. Parece que ninguém mais quer saber de poesia lírica há séculos. Polímnia está sempre muito ocupada com seus hinos sacros e aparentemente Urânia está na Nasa, cuidando dos preparativos para a chegada da sonda em Plutão.
- Sobrou só a gente, garotão – Tália concluiu.
- Eu acho que uma música melhoraria o humor por aqui – Euterpe interrompeu com sua voz suave. – Talvez Mozart, Beethoven? Algo clássico iria ajudar as meninas.
E assim ela o fez. Ligou o rádio na estação de música clássica, enquanto Terpsícore começava com seus movimentos fluidos e leves, quase mágicos, oníricos.
- Eu só preciso de silêncio, na verdade – Julio protestou.
- Não seja ingrato, garoto! – Melpômene rugiu. – Quem você acha que ajudou você em todos os seus trabalhos? Nós, as musas!
- E onde estavam vocês quando eu precisei terminar textos, crônicas, poemas, romances?! – Julio gritou de volta. – Vocês aparecem quando bem entendem?
- Nós somos ocupadas – Calíope rebateu. – Sabe quantos artistas existem no mundo? Se algo está ruim, reclame com Apolo. Nós somos as inspiradoras, somente. Não decidimos nossa agenda.
- E eu estou oficialmente maluco – Julio resmungou.
- Não ainda, rapaz! – Tália disse. – Nós realmente queremos ajudar. Criar é o que nós fazemos de melhor. Seu roteiro de Peter Pan vai sair em menos de uma semana. A gente poderia se revezar, certo, meninas?
Alguns resmungos concordando, enquanto elas se entreolhavam, parecendo avaliar a proposta de Tália.
- Gente! –Tália estava desacreditada. – O garoto não faz por mal! Alguma de vocês já o visitou alguma vez?
Ninguém levantou a mão.
- Está pronto pro seu primeiro grande sucesso, Julio? – Tália indagou. – Pode ter certeza. Quando as musas entram em campo, ninguém barra a gente.
Tália puxou uma cadeira e sentou-se ao lado de Julio e seu laptop aberto na folha em branco.
- Escreve aí: "um bar. Na parede, um painel com o nome 'Terra do Nunca' em neon brilhante". Acho que isso vai ser sucesso!
Julio realmente precisaria de um sucesso estrondoso.
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Croniocas
Short StoryCrônicas da Cidade Maravilhosa, narradas por um observador com olhos capazes de captar toda a magia da vida corriqueira da sociedade carioca. Quantas coisas mágicas e fantásticas acontecem todos os dias debaixo de nossos narizes e nós nem nos damos...