Um dia, Astolfo dirigia seu carro pela praia, tentando esquecer todos os problemas que passavam pela sua cabeça. Contas, pouco salário, possível demissão, má sorte nos relacionamentos. Ele não confessaria, mas já havia pensado em suicídio uma vez.
Ele estava na faixa da direita, dirigindo lentamente, apreciando a vista. Não havia tempo para parar e descansar, botar o pé na areia, sentir a água gelada. Ele tinha que estar no Flamengo em menos de 40 minutos, para uma reunião importantíssima e que certamente iria mudar tudo.
Ele não saberia explicar, mas tinha certeza que aquele dia ia mudar sua vida.
Ao passar por um quiosque perto do posto 6 na Barra da Tijuca, pensou ter captado algo em seu retrovisor, mas teve certeza que era só sua imaginação.
- Sim, você me viu – disse a linda mulher negra no banco de trás.
- AHH!!
Ele jogou o carro para a faixa da esquerda e de volta, depois de ouvir uma buzinada.
Olhou outra vez no retrovisor:
- Quem é você?
Ela ajeitou os lindos cabelos cheios de caracóis, presos para cima com a ajuda de uma faixa branca na testa, combinando com seu vestido que mais lembrava uma toga grega. Um longo vestido branco, drapeado, preso nos ombros com o que pareciam ser dois broches dourados.
- Você pode me chamar do que você quiser, querido – seu timbre era doce e seu modo de falar era cantado. – Muita gente me chama de muitos nomes.
Ele continuou dividindo a atenção entre a rua pouco movimentada e o retrovisor.
- Por que nos filmes é sempre tão diferente? – ela resmungou, voltando a apreciar a vista mais uma vez. – Eu tava bem inspirada quando fiz a orla do Rio, pode falar.
- D... – Astolfo não conseguia fazer a palavra sair pela boca. – De...
- No seu tempo, querido. Eu tenho todo o tempo do Universo.
- Mas você é...
- Mulher? Negra? Ma-ra-vi-lho-sa? – ela acentuou todas as sílabas, estalando o dedo no final.
- Eu sempre pensei...
- Você pensou o que te condicionaram a pensar, filho.
Astolfo não tinha palavras. Estava dividido entre sua incredulidade e o estarrecimento de ver Deus, bem ali, no seu banco traseiro
- Eu sei, eu sei. Não é divertido conversar com alguém que sabe tudo, o tempo todo, todas as respostas, todas as perguntas. Acredite, ouço os anjos reclamando disso diariamente. Jesus, então, nem se fala. Que garoto mimado! Tenho certeza que foi culpa de Maria.
Deus percebeu a boca semiaberta de Astolfo:
- Desculpa, estou tagarelando, não estou? É que você não tem noção como é difícil passar o dia inteiro apenas ouvindo gente pedir, pedir, pedir, reclamar, pedir, resmungar, usar meu nome pra falar de gente bonita, de gente feia, do preço da cebola, do preço da gasolina, de como o governo tá ruim, de como o mundo tá ruim. Gente! Eu dei o livre arbítrio pra vocês usarem!
- Eu...
- Sim. Ultimamente, você tem pedido bastante e parece que eu não tenho te respondido, certo? Enganado.
Ela puxou um bloquinho de folhas brancas sem pauta e óculos de meia-lua.
- Você não tem noção como é difícil escrever em linha reta nesses caderninhos. Tenho que lembrar de pedir pra Miguel comprar outro. – Por um tempo ela falou consigo mesmo, baixinho, procurando o nome de Astolfo. – Ah! Aqui está. Dia sete de julho, você falou, abre aspas – e ela continuou numa voz monótona e sem pontuação –, "meu Deus esse salário é muito pouco não dá pra pagar a conta de luz Susana o que faremos agora e a escola dos meninos sim eu pedi um aumento bom não foi bem pedir na verdade porque o patrão tá mandando gente embora eu posso ter apenas citado algo ok desculpa eu sei eu vou pedir ok tudo bem Susana tudo bem", fecha aspas.
- Você anota tudo?!
- Você acha que eu tenho memória de elefante, Astolfo? – ela bateu na coxa.
- Perdão, Deus – ele voltou a atenção para a rua.
- É o seguinte: eu não posso fazer você ganhar na mega sena sem ter que mexer os pauzinhos para outras pessoas não ganharem. Porque, sim, o Universo busca sempre um equilíbrio perfeito, apesar de vocês serem umas crianças IN-SU-POR-TÁ-VEIS, que só sabem brigar e insultar. Voltando: eu não posso mexer pauzinhos. Imagina o tamanho do problema? Intervenção divina num ato corriqueiro. O que você acha que isso acarreta pra continuidade do espaço-tempo?
- Eu... eu não sei. Perdão, senhora.
- Querido, nem tudo que eu digo é uma bronca. Eu não sou carrasca.
- Sim, claro. Perdão.
A mulher suspirou profundamente, revirando os olhos.
- Sabe quando vocês gostam de dizer brincando "às vezes, Deus se disfarça de mendigo pra testar a bondade das pessoas"? Bom, é meio verdade. Mas eu não me disfarço pra testar ninguém. Eu quero férias. Você tem noção do meu trabalho?
- Ah, não, senhora.
- E você sabia que eu não ganho nada por isso?
- Não, também.
- Eu faço por que amo essas criaturas, vocês.
Astolfo ficou calado por um tempo.
- Você está indo para onde, mesmo?
- Tenho uma reunião no Flamengo, às 15:30.
- Não tem mais. Pegue o próximo retorno das Américas, Astolfo.
- Mas... senhora, eu...
Deus moveu a mão e o volante mexeu-se sozinho, contrariando as mãos de Astolfo.
- Isso. Agora você pode entrar nesse próximo estacionamento, por favor.
Astolfo decidiu obedecer.
- Não estacione aqui – ela começou, olhando as vagas. – Nem aqui. Não também. Aqui não. Mais pra frente. Aqui!
Ambos saíram do carro, Astolfo esperando as próximas instruções.
- Eu gosto de você, Astolfo – Deus falou, aproximando-se. Ela era alta, realmente alta e Astolfo tinha certeza que ela estava com saltos debaixo do longo vestido que arrastava a bainha no chão. – Você é um dos meus filhos mais legais.
- Mas eu não vou na igreja, eu nã---
- E interessa? O que interessa, querido, é o bem ao próximo. Você já faz isso muito bem, tão bem. Você me enche de orgulho. Se metade do mundo fosse como você, já teria certeza que fiz o correto.
Astolfo sorriu timidamente, olhando para o chão.
- Escute bem. Você vai abrir uma ONG e você vai conseguir espalhar sua bondade pelo mundo.
- Mas eu não tenho di---
Deus colocou o indicador na frente da sua boca.
- Eu gosto muito de você, Astolfo. Espera! O que é aquilo no chão?
- Onde, senhora?
Um papel voou até o sapato de Astolfo.
Ele abaixou-se para pega-lo e virou a folha. Um papel da mega sena com meia dúzia de números marcados, mas que não havia sido levado ao caixa ainda.
- Mas isso...
Não havia mais ninguém ali.
Tão depressa quanto aparecera, Deus também sumira.
Astolfo respirou fundo, soltou um sorriso, olhou aos céus e agradeceu.
Ele não saberia explicar, mas tinha certeza que aquele dia ia mudar sua vida.
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Croniocas
NouvellesCrônicas da Cidade Maravilhosa, narradas por um observador com olhos capazes de captar toda a magia da vida corriqueira da sociedade carioca. Quantas coisas mágicas e fantásticas acontecem todos os dias debaixo de nossos narizes e nós nem nos damos...