Capítulo 2 - Monotonia Cinzenta

46 5 2
                                    

Que tal ouvir o audiobook enquanto acompanha a leitura? Clique no vídeo acima ou acesse aqui: http://www.papodeautor.com.br/a-rainha-da-primavera-capitulo-2/

A brisa noturna não estava leve e fresca como de costume. Frias rajadas secavam os lábios de Flora e despenteavam seu cabelo, enquanto ela entrava no pequeno barco a remo. Sentou-se e aguardou enquanto os dois humanos empurraram-no de volta para a água do Mar Eterno e pularam, também, para dentro.

Ao som do bater dos remos na água, o barco deslizou suavemente pela superfície ondulante do mar. Sob a luz alva da lua cheia, Flora trocou acenos com seus irmãos, e, quando já estava onde as ondas não quebravam mais, divisou sua mãe, acompanhada de seu pai, unindo-se à despedida na praia. Sua tristeza era perceptível mesmo à penumbra, mas, mesmo assim, ela gesticulou com as mãos uma bênção à filha. E de repente tudo ficou branco.

Penetraram numa neblina tão densa que Flora não podia ver um palmo à sua frente. Assustada, agarrou-se às laterais do bote, como se pudesse cair a qualquer instante. Não enxergava nada, e por um momento todos os sons sumiram também. Todos, inclusive os dos remos, mas Flora continuava a sentir o movimento do barco seguindo em frente.

Falou, mas não ouviu a própria voz. Instaurou-se uma monotonia que parecia não ter fim. Por toda sua infância, ela imaginara como seria a saída de Ashteria. Perguntara-se se haveria um monstro marinho a proteger a ilha, ou se um grande maremoto impediria o caminho, mas todas essas suposições ficaram para trás, nos anos de meninice. Nunca imaginou que ali encontraria uma neblina tão espessa que a fizesse pensar que não havia um mundo do lado de fora da ilha.

Passou-se tanto tempo, que Flora começou a refletir sobre toda a sua vida. Ela não conseguia se lembrar de absolutamente nada do que vivera em sua terra natal. Apesar de, em alguns momentos, sentir-se uma estranha em Ashteria, aquele era seu lar, e ela gostava muito de sua família. Era estranho deixar tudo para trás.

Estranha também era sua escolta. Revelaram a Flora que ela nascera em um reino chamado Hynneldor, mas tanto o homem mais velho, Nathair Tredbach, quanto o mais novo, Dimitri Fahd, possuíam uma ligação mais forte com o reino aliado, Datillion. Nathair vivia lá, representando Hynneldor em reuniões diplomáticas, enquanto Dimitri não possuía residência fixa, mas era um dos príncipes de Datillion. Apesar de estar em companhia ilustre, Flora não podia deixar de sentir um calafrio ao se lembrar da queimadura na face de Nathair ou das mãos ensanguentadas de Dimitri.

Depois de muito tempo de silêncio, voltou a ouvir o som que os remos emitiam enquanto tocavam a água e por ela se arrastavam. A neblina finalmente se abrandou, dando lugar a uma paisagem não menos sombria. Por entre as brumas, havia não mais o Mar Eterno, sempre azul, calmo e ondulante, mas sim um lago acinzentado e assombrosamente estático, coberto por um céu igualmente cinza e monótono.

Flora sempre se perguntou o que existiria fora de Ashteria, e não pôde evitar uma pontada de decepção. A princípio, parecia não haver nada naquele lugar monocromático! Mas ela logo descobriu que estava enganada. Percebeu que tudo estava diferente, no momento em que lançou o primeiro olhar para Nathair Tredbach.

– Ah! – assustou-se ela, cortando o silêncio e caindo para trás com estardalhaço. O que aconteceu? Pensou, estatelada no fundo do barco. Ela estava preparada para ver uma mudança no cenário, mas não para presenciar uma transformação nas próprias pessoas. E ali, à sua frente, Nathair exibia um semblante saudável, sem sinal de algum dia ter sofrido qualquer tipo de queimadura no rosto. Era um homem comum, somente os sinais deixados pela idade marcavam sua pele.

Nathair notou o espanto dela, mas não se surpreendeu. Sabia que a jovem ainda se assustaria muito na estrada de Hynneldor. Flora sentiu Dimitri segurá-la pelo ombro e, gentilmente, fazê-la sentar-se novamente no banco do barco. Ao se lembrar das mãos ensanguentadas de Dimitri Fahd, ela teve um arrepio e torceu para que o sangue não sujasse seu vestido.

Porém, ao olhar para trás, para o dono das mãos que a ajudavam a se levantar, novamente se espantou. A poucos centímetros de seu rosto, estava o dele. Era ainda o belo jovem que conhecera na ilha, porém tinha perdido a aura sombria que o rodeava. Seus olhos não eram mais vermelhos, mas castanho-amarelados, e haviam desaparecido as manchas de sangue das mãos. Seu cabelo claro estava preso com uma fina linha de ouro que cintilava ao menor movimento.

– Não se assuste.

– Como não?! – Questionou ela, tomando um pouco de distância. – Vocês mudaram! – Apesar do medo, não pôde deixar de se admirar com a beleza do príncipe de Datillion, que misturava aspectos serenos e selvagens. Inconscientemente, desviou o olhar do dele.

– Você também está diferente.

Flora olhou para as próprias mãos. Realmente, estavam diferentes! Seus dedos pareciam mais curtos e a pele perdera o tom cinza-esverdeado, tornando-se rosada. Involuntariamente, olhou para a água do lago, esperando se deparar com seu reflexo, mas não se reconheceu. O lago, com sua coloração cinza e suja, respondeu com o reflexo turvo de uma garota humana. No lugar de seus cachos cor de fogo, ricos cabelos negros desciam abaixo dos ombros, e seus olhos possuíam um azul sobrenatural.

– Essa não sou eu! O que fizeram comigo? Por quê?

– Flora, essa é a verdadeira você. Dizem que a Ilha Oscilante julga as pessoas pelo coração... – Explicou Nathair.

– Bobagem! Aquela ilha embaralha os pensamentos, confunde a mente. – Retrucou Dimitri, colocando a mão na testa, num gesto cansado. – Agora nós todos podemos pensar com mais clareza.

Então Flora olhou para o lugar de onde vieram, esperando vislumbrar a neblina que escondia Ashteria. No fundo do coração, não tinha tanta certeza se deveria retornar a esse lugar chamado Hynneldor, e por um momento desejou não ter saído da ilha. Mas a neblina não estava ali. Para todos os lados que se olhasse, via-se apenas o grande lago e o céu, ambos cinzas, refletindo-se mutuamente e se mesclando no horizonte.

– Não há volta. Quero dizer, não até a próxima década. – Informou Dimitri, sentando-se de frente para ela. – Mas não tenha medo, você será bem recebida em Hynneldor.

Aquelas palavras não soavam muito encorajadoras, mas pareciam sinceras. Flora apenas anuiu e se conformou com seu destino. Optara por seguir seu coração à aventura do desconhecido, então era isso o que faria. No fundo do barco, encontrou o brinco que costumava usar na pontinha da orelha, e que mais uma vez havia caído. Mas, ao tentar recolocá-lo, percebeu que a ponta de sua orelha estava redonda, não existindo a parte onde o brinco deveria ser colocado.

– Então é por isso que sempre cai... – Choramingou, guardando-o entre os tecidos do vestido.

O lago estático parecia não ter fim. Ninguém falava e não havia animal algum. O único som que se ouvia era o avançar lento e constante. Então, inesperadamente, o barco deslizou sobre uma superfície áspera e parou em terra firme.

Dimitri logo pulou para fora, virou-se e esticou a mão a Flora, que aceitou a ajuda para sair do barco, seguida por Nathair. Ali o chão era de uma argila cinza e escorregadia. Terra e água possuíam a mesma coloração parca, o que tornava difícil dizer onde terminava uma e começava outra. Não havia vegetação, apenas uma planície cinza que ia até onde os olhos alcançavam. Não longe dali, dois cavalos selados estavam à espera.


A Rainha da Primavera - 2ª EdiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora