Capitulo VIII

235 30 2
                                    

Chegou em casa ainda anestesiada. Era como se não fosse ela que tivesse vivido tudo aquilo, parecia que tinha só assistido. Com certeza ela seria capaz de descrever cada minuto, cada toque, cada suspiro daqueles momentos. Mas não o fez. Desconversou quando a tia e a irmã perguntaram sobre seu sumiço, manteve o mistério e guardou o segredo. Ninguém precisa saber. Mas foi impossível não se perguntar em quanto tempo durava algo não dito em uma cidade pequena. Com certeza não muito. Mas não importa, aquele envolvimento entre eles acabava ali.

Ou ela fingiu para si mesma que acabaria. No fundo ela sabia que aquela não foi a última vez, e certamente não queria que fosse a última vez.

Sentia-se exausta. Comeu o almoço que Tia Mercê guardou, porque comida da tia Mercê não é algo que se recuse. Tomou um banho demorado e adormeceu.

_ Acorda Mana! Anda! Acorda!

_ Não!

_ Acorda mulher! O médico charmoso tá lá fora! Dois dias seguido! Tá com moral ein?!

Hoje não era o dia que queria encontrar com Ricardo. Por mais que adorasse a companhia dele, coisas demais já havia acontecido hoje. Mas não havia outro jeito. Seria rude deixa-lo lá fora, e ele não merecia isso. Então levantou, amarrou um coque qualquer e conferiu se estava minimamente apresentável. É, devia estar.

Já era noite, e lá estava ele, sorrindo ao ouvir as besteiras da Tia Mercê. Prestou atenção na forma como ele se comportava: falava baixo, mas de forma espontânea, e parecia ter mais dentes do que o comum quando sorria. Estava sempre em uma postura elegante sem fazer força nenhuma, estava confortável ao mesmo tempo que parecia pertencer a algum tipo de nobreza. Encantador.

_ Olha só quem chegou. Nossa Bela Adormecida! O que Ric vai pensar minha filha?! Já é o segundo dia seguido que ele chega aqui e você está dormindo na hora errada. Hora de dormir é a noite, não é doutor?! Você está com fome minha querida?! Vou fazer um bolinho para vocês, com suco de maracujá. Enquanto isso trago uns biscoitinhos para enganar a barriga.

_ Não dona Mercedez, não se incomode. – interveio do jeito educadíssimo que só ele conseguiria. – Na realidade vim buscar suas filhas, hoje quem vai cozinhar sou eu. E a senhora está convidada, obviamente. 

_ Mas que homem prendado! Agradeço o convite meu querido, mas isso é programa para jovens, uma velha como eu só vai atrapalhar. E também eu marquei de dar uma voltinha com a Lourdes, a avó dos meninos que moram ali na esquina, sabe? Colocar as fofocas em dia!

_ Eu já estou pronta, podemos ir! – entrava Maria Clara porta a dentro apressada como se fosse pegar um trem.

_ Espera! Eu estou um pouco confusa. Vamos por partes. Ricardo veio aqui, me convidar para jantar, para cozinhar para mim, e a minha irmã caçula já está prontíssima. Quem te convidou cara pálida?!

_ Ele me convidou. Me prometeu uma estante cheia de livros. Lide com o fato de que você não é a única mulher na vida dele. Dói menos.

Laura saiu do jeito que estava. Queria responder sarcasticamente que ele também não era o único homem da vida dela, mas achou melhor guardar para si. Entrou no carro preto e permaneceu com o pensamento distante enquanto Clarinha tagarelava com Ricardo sobre assuntos aleatórios que ela não conseguiria acompanhar nem que quisesse.

Pararam em frente ao mesmo bar simpático e simples da outra vez. Ao lado tinha uma escadinha estreita que dava para o apartamento dele. Era um lugar bem grande com poucos móveis. Uma sala conjugada com a cozinha, uma portinha que parecia ser para um quarto e uma área imensa com três casinhas de cachorro e brinquedos de gato. O espaço para humanos era mínimo, mas ainda assim era uma delícia sentir o vento correndo e balançando os cabelos. Maria Clara já estava sentada no chão com os cachorros. Eram três vira latas, um pequeno e dois grandes, balançando os rabinhos e chamando para brincar.

_ Cachorros sabem reconhecer quem gosta deles. Protegem e amam essas pessoas. Sua irmã parece um imã para eles, nunca vi eles tão alegres brincando com uma pessoa que nunca viram.

_ É, ela faz isso com a gente. Bicho ou não. Ela sabe encantar todo mundo.

_ Sabe sim. Ela tem muita sorte de ter vocês.

_ Não. Nós que temos sorte de tê-la.

_ Vocês são todas sortudas! Se completam e formam uma família linda. Queria ter tido a metade do amor que vocês tem.

_ Como assim?!

_ Meu pai nunca foi muito atencioso, minha mãe ficou muito abalada depois que minha irmã morreu. E mesmo eu tendo pai e mãe como manda o figurino, sempre fui eu por mim mesmo. Não tive essa atmosfera de companheirismo que qualquer um pode ver entre vocês. Se um dia eu conseguir construir uma família, eu quero que ela seja assim.

Aquilo bateu fundo no coração dela. Duas órfãs criadas uma mulher totalmente fora dos padrões eram muito mais fortes e unidas do que muita família tradicional por aí. Disso ela já sabia. Mas Ricardo merecia uma família bacana, seja em que formato fosse. O vento bateu no rosto dele deixando ele ainda mais lindo, e então ela pôde ver algo ali que ainda não tinha visto, que o tornava um menino triste, e teve vontade de colocá-lo no colo e dizer que vai ficar tudo bem. Ela viu a solidão que ele carregava, e que era tão nítida quanto o sorriso que ele sustentava. Como não viu isso antes?!

Ela não sabia o que dizer. Não existia palavra que pudesse quebrar a tristeza desse momento. A única coisa que ela conseguiu pensar foi:

_ E então! O que vamos comer?!

Insensível!

_ Que bom que você perguntou! Já deixei tudo quase pronto, me ajuda a terminar?!

_ Eu não sou muito boa de cozinha, mas tudo bem.

_ Não tem problema, você já me ajuda dando apoio moral.

Hambúrguer vegetariano com batatas. Não acreditava que aquilo ficaria bom, porque hambúrgueres são feitos de carne, e sem carne não é hambúrguer. Simples! Mesmo estando preparada para não fazer desfeita e engolir de uma vez, ela adorou. Aquele homem conseguia fazer até carne de planta ficar uma delícia!

Foi uma noite agradável, daquelas que não se vê passar. Clarinha bagunçava uma estante de livros com três cachorros aos seus pés enquanto Laura e Ricardo conversavam besteiras no sofá acompanhados de dois gatos manhosos.

Ela passaria muito mais tempo ali sem reclamar. Mas segunda-feira era dia de aula e ela ainda era a irmã mais velha. Foram embora carregando todos os livros que a caçula conseguia equilibrar prometendo voltar para devolver esses e pegar outros.

Chegaram em casa e Tia Mercê acendeu as luzes deixando claro que estava esperando. Clarinha se despediu com um abraço cheio de livros e gratidão, e Laura fez mesmo.

_ Laura, espera!

Oi?! Sério?! Será que hoje, justo hoje, a noite não acabaria no zero a zero?!

_ Eu não sou muito bom com essas coisas, mas eu quero dizer que gosto muito de você. Não sei bem como agir e estou bem nervoso agora.

_ E porque você estaria nervoso?!

_ Porque você me deixa nervoso. Me deixa eufórico e com vontade de viver, sabe?!

_ Acho que não sei muito bem. Você quer dizer que se sente atraído por mim, é isso?!

_ Não!

_ Não?!

_ Quer dizer, sinto! Mas não dessa maneira. Eu me sinto encantado. É essa a palavra, encantado!

_ Encantado?!

_ É, encantado!

_ E o que eu faço com essa informação?!

_ Não sei. Deixar esses livros aí e voltar para a minha casa comigo, talvez.

Dia e Noite se completamOnde histórias criam vida. Descubra agora