Tia Mercê parecia que tinha engulido um vespeiro. Parecia chateada e com certeza Laura saberia logo o motivo, e era justamente isso que ela temia. Então entrou em casa como se nada tivesse acontecendo, mas não colou.
_ Volte aqui mocinha! Não se faça de sonsa. - Pronto! É agora! - Você me sai para dormir com um e volta para casa com outro Laura?! O que eu devo pensar minha filha?!
_ O que é tia?! Vai começar com lição de moral a essa altura do campeonato? Não foi a senhora que disse que eu posso ser livre? Estou sendo livre!
_ Mas precisa ser irresponsável também? Esses moços sabem que você passa a noite com um e o dia com outro?
_ Eles precisam saber?
_ Eu posso ter te ensinado a ser livre, como você diz. Posso ter te ensinado essa autoconfiança perigosíssima. Posso até ter te ensinado essa teimosia e esse orgulho. Mas eu tenho certeza que nunca te ensinei a ser indiferente. Nunca! Então não me envergonhe. Se não por mim, dê o exemplo pra sua irmã!
_ Maria Clara não precisa de exemplo. E mesmo que precisasse, minha vida amorosa e sexual não é da conta dela. Nem da sua!
_ Você não me testa garota. Não me testa que eu arranco todos os dentes da sua boca em um tapa! - levantou a mão mostrando a palma.- Pouco me importa a sua vida sexual e amorosa. O que eu me recuso é ter uma filha que não sabe respeitar o espaço e o sentimento dos outros! Uma filha que não sabe quando está passando dos limites.
_ Eu vou para o meu quarto! Não tô com paciência para escutar lição de moral, até porque essa moral rasa e careta não combina com a Tia Mercê que eu conheço. Essa mesma que não aceitou ser homem e se fez mulher para o mundo todo ver. Esperava menos ideias limitadas vindas de você, esperava mais coragem!
_ É disso que você acha que se trata?! Coragem!? Você não está agindo como uma pessoa corajosa, muito pelo contrário, é a sua covardia que tá me decepcionando! Seu egoísmo!
_ Eu não sei do que você está falando tia, não sei mesmo.
Mas Laura sabia. Estava óbvio que uma bomba estouraria, e não iria demorar. Que fosse! Não prometeu nada para ninguém. Eram todos adultos e vacinados, saberia lidar com o que quer que fosse aquilo.
Muitos trabalhos estavam pendentes, então se deixou mergulhar no sem fim de textos por escrever e revisar.
***
Olhou pela janela e viu a noite chegando. Sentia os ombros tensos e os olhos cansados. Trabalhara demais, merecia um descanso. Chamou Clarinha e foram à sorveteria. O céu passava de laranja para um cinza azulado, e já era possível ver as primeiras estrelas em forma de pontos luminosos.
Como uma alma penada, com feições muito sérias, Ricardo entrou na sua frente.
_ Precisamos conversar! - talvez pelo susto ou talvez pelo medo do assunto da tal conversa, Laura gelou da cabeça aos pés.
_ Você surgiu de onde?!
_ O que foi?! Preferia que eu estivesse em uma moto?! Ou que fosse musculoso sem cérebro?!
Maria Clara, que estava do lado da irmã, saiu de fininho com seu sorvete de morango como se nunca estivesse estado ali. O meio da rua seria o lugar apropriado para aquilo?! Com certeza seria o assunto da cidade inteira logo logo. Não deveria se incomodar com isso, mas quem não se incomodaria?
_ Se quer conversar a gente conversa, mas não aqui, e não com essa atitude infantil. Isso não combina com você Ricardo. Nem um pouco.
_ Eu também achava que o papel de piranha não combinasse com você!
_ Ok, agora não vamos mais conversar em lugar nenhum! Se fazer o que eu quero, com quem eu quero e quando eu quero faz de mim piranha, eu posso conviver com isso. Não dá pra conviver é com homem achando que eu sou propriedade dele!
E virou as costas! Seria sua saída triunfal, seria a maneira como ela sairia daquilo tudo: simplesmente indo embora e não olhando para trás. Mas ele a segurou pelo braço, com força e com uma violência que ela achou que nunca veria nele. Mas estava lá, atrás daqueles olhos brilhando de tanta raiva.
_ Não brinca comigo Laura, você não tem esse direito!
_ Você que não tem o direito de encostar em mim desse jeito! Enlouqueceu?!
_ A gente vai conversar e vai conversar agora! Entra! - e jogou Laura dentro do carro. Ela estava em choque, atônita, sem saber o que fazer. Essa reação ela não esperava, não dele. Até onde ele sabia?! Quem contou pra ele?! Quem era aquele cara com o rosto transformado de tanto ódio?!
Culpa. Ela fez isso com aquele homem doce e gentil. Ela.
Pararam em frente a casa dele, mas ele permaneceu imóvel segurando o volante. Não saiu do carro e não deu sinais de que se mexeria nos próximos minutos. Só era possível saber que ele não estava petrificado porque sua respiração era forte, ofegante e o único barulho que se podia ouvir naquele momento que pareceu durar uma eternidade.
_ Você já deu seu show. Já me ofendeu na frente da minha irmã, me fez entrar nesse carro a força, me machucou e está agindo como se eu não estivesse do seu lado . Se não me der um bom motivo agora eu vou sair desse carro, coisa que eu já devia ter feito a muito tempo.
_ Você não está em posição de exigir nada! Você me traiu! Me fez de palhaço, e isso não se faz. Eu não merecia isso. O que eu fiz de errado Laura?! O quê?! Fui romântico demais? Pegajoso demais? Qual foi o problema?
_ Não é o que você fez Ricardo... não é isso!
_ Então o que é?! Me diz! O que é?!
_ Você não quer saber! E eu não quero explicar. Sinto muito se magoei você, eu devia ter previsto que poderia te machucar, e você tem razão: não merece isso! Eu assumo a culpa. Pode me odiar se quiser.
_ Eu não quero te odiar, eu quero você. Mas não estou disposto a esperar. Você precisa decidir agora. Eu posso deixar tudo pra trás, esquecer seu caso com o levantador de peso acéfalo. Mas você precisa me dizer agora que é comigo que você quer ficar. Que daqui pra frente seremos só nós dois.
Ele voltara a ser o Ricardo que ela conhecia: fofo e carinhoso. Lindo! A pouca luz dentro do carro deixava ele perfeito. Chegava até a acreditar em contos de fadas. Era ele, tinha que ser!
_ Tudo bem Ricardo, seremos só nós dois...
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Dia e Noite se completam
RomanceLaura teve que abandonar os sonhos de uma carreira promissora em nome da família que ama incondicionalmente. Mesmo quando estava fechada para todas as possibilidades de se envolver, encontrou um amor que a esquenta como o dia, e outro que a acalma c...