Capítulo 16;

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POV Zayn

Levantei-me lentamente, ainda atordoado do sono, e olhei para o lado, deparando-me com uma rapariga a dormir em cima do tapete. Demorei apenas alguns segundos a evocar as memórias turvas da noite anterior, embaciadas pela bebida, e um sorriso desenhou-se nos meus lábios.

É claro que a reconheci assim que ela entrou na estalagem. E não foi pelo nome nos convites, que eu nem os vi, e não somente pela música das pestanas...foi pela sinfonia inteira. Seria impossível não notar a música que emana dela, como se todas as suas cordas estivessem afinadas, desde as dos passos fininhos mas seguros, como um mote de abertura de um concerto clássico, até aos acordes do cabelo a ondular ao ar, de fazer inveja às mais elaboradas partituras. Se Mozart a conhecesse, nunca teria feito música, porque nada sequer se aproxima do som que ela produz quando chega.

Ela foi sempre a minha música preferida.

Ela dorme tranquilamente, enrolada num lençol, ainda com a roupa do baile vestida. A maquilhagem está ligeiramente borratada, deixando antever os traços naturais do rosto mais bonito que eu consigo recordar.

Um barulho irritante preenche o quarto, vindo do rádio, e eu percebo que adormecemos antes de eu ter tempo de desligar a música. Quando imaginei o nosso reencontro, 5 anos depois, eu não poderia imaginar que apenas trocaríamos meia dúzia de frases, adormecendo de seguida, eu na cama, ela no chão, ao som de cassetes roubadas numa loja em segunda mão.

Ao observá-la a dormir, as memórias surgem pouco claras, como se lhes tivessem passado pó de arroz por cima.

- Flash back 1982, Zayn com 14 anos -

- Podíamos só tentar vender um dos carros...não precisamos dele.

- Não vamos vender nada, Juliet! Porra, será que não metes nessa cabeça que se começarmos a vender coisas toda a gente vai perceber que se passa algo?! Estamos só com algumas dificuldades, nada de mais! Não é o fim do mundo, eu vou resolver isto!

A voz dos meus pais parece entranhar-se nas paredes do meu quarto e por isso desço da cama para ir até à cozinha. Abro o frigorífico com a esperança de que algo tenha crescido lá dentro na minha ausência, talvez uma caixa de Donuts ou uma coca-cola de lata, mas o cheiro da realidade é quase esmagador: duas maçãs tocadas, água, e restos do almoço que terão de servir para logo à noite. Faz algum tempo que não vamos às compras, a mãe continua à procura de emprego mas sem sucesso, já ninguém precisa de costureiras por medida nesta altura em que a concorrência da Zara se faz sentir. O pai trabalha lá no stand, que já teve melhores dias, e é a única forma de pagar a renda casa.

Todas as noites ele insiste que está tudo bem. As cartas do colégio acumulam-se, eu preciso de um novo uniforme, o cão tem de ir ao veterinário, mas está tudo bem. As contas estão todas em atraso, não há dinheiro para o seguro do carro, não vamos ter férias este ano, mas está tudo bem. Sugeri ir para uma escola pública e recebi um par de berros em resposta - é do meu futuro que estamos a falar, como é que eu posso ser tão pouco ambicioso? A gente irá dar um jeito nisto. Está tudo bem. Mas não tenho lanche e a minha barriga parece estar a engolir-me do avesso.

O barulho de passos faz-me sobressaltar e fecho a porta antes que eles entrem na cozinha.

- Está tudo bem, Zayn. Hoje à noite vamos às compras. - O meu pai dá-me uma palmadinha no ombro, como se a promessa de comida pudesse acalmar o meu estômago ansioso.

- Logo à noite. - Aviso, em jeito de quem pede promessa.

- Logo à noite. - Confirma, em jeito de quem promete.

(Un)forgettableOnde histórias criam vida. Descubra agora