Capítulo 23;

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Pov Milles

- manhã a seguir ao baile -

Enterrei o rosto na almofada e deixei as lágrimas escorrerem livremente, com a mesma sofreguidão e urgência com que os pensamentos se precipitam uns por cima dos outros. A dor de cabeça é tão intensa que apenas consigo recordar fragmentos do dia anterior, e na maior parte deles um rapaz de camisa colorida aparece a sorrir, com uns dentes perfeitamente alinhados e duas covinhas salientes nas bochechas.

Harry.

Tento, em vão, apagar a imagem da sua figura estática enquanto eu me debatia na água, com os olhos claros apagados, sem vida, quase como se não existisse ninguém dentro daquele corpo.

- Por que não me salvaste, Harry?! - A minha voz sai sufocada contra o tecido da almofada, e o choro intensifica-se numa série de soluços descontrolados.

Não sei porque me sinto assim, os meus pensamentos estão confusos e desalinhados e eu não consigo perceber por que razão alguém que conheci ontem me parece tão importante. Tento lembrar-me se alguma vez o vi antes, mas é como se pairasse uma nuvem sobre todas as memórias, e não consigo recordar nada além do dia de ontem. Ao fim de algum tempo a forçar as recordações, é com frustração que acabo por desistir e estico o braço para a mesinha de cabeceira, para desligar o candeeiro.

Um pequeno caderno cor-de-rosa com a palavra "diário da Milles" na capa chama a minha atenção, e pego nele, abrindo-o sobre a cama. Não me lembro de ter um diário, mas todos me chamam Milles, por isso deve pertencer-me. Ao abri-lo reparo que a primeira folha contém três orientações enumeradas, mas concentro-me apenas nas primeiras duas, já que a terceira não faz qualquer sentido.

1. ESCREVE-ME TODOS OS DIAS.

2. LÊ-ME (DO INÍCIO) TODOS OS DIAS.

A primeira data é de há dois anos atrás, e à medida que avanço nas páginas do pequeno diário, maior é a minha confusão. Num dia é Meg das Mulherzinhas que escreve, com curiosidade rebelde e irreverente, no outro é Branca de Neve, com doçura e benevolência; e até há uma data assinada pela bruxa má, que tentou oferecer maçãs ao Niall. As personagens multiplicam-se diante dos meus olhos, cada uma delas marcada pela inconsciência da presença das anteriores.

Ernest e Lola, Liam, Niall, Louis e Zayn são nomes que se repetem em todas as páginas, e aparentemente as únicas pessoas que fazem parte do círculo de conhecidos destas pessoas...ou desta pessoa. Levantei-me num salto, determinada a perguntar ao Liam o que vinha a ser esta confusão toda, mas nesse momento um livro caído aos pés da cama chamou a minha atenção. "Cinderela."

Fiquei uns segundos em choque, incapaz de estabelecer uma ligação entre ambas as coisas, mas quando aconteceu, deixei-me cair de joelhos, chorando compulsivamente: isto sou eu, este é o meu diário, e eu sou esta confusão de personagens que não se lembram umas das outras. Hoje, sou Cinderela.

Tentei lembrar-me dos acontecimentos descritos, como quando o Ern me levou a pescar, e eu era a pequena Doritte de Dickens, ou quando a Lola me levou ao mercado pra comprar morangos, comigo a ser Emma da Jane Austen, mas mais uma vez parece haver uma nuvem cerrada a pairar sobre todos os acontecimentos anteriores ao dia de ontem.

Curiosamente, cada personagem dura dois dias, mas ao segundo dia é como se a anterior tivesse deixado de existir...como se todas as suas memórias fossem apagadas.

De repente, um pensamento tomou-me de assalto: e se isto acontece todas as noites? E se todas as noites eu leio este diário, chorando compulsivamente com a descoberta de que sou incapaz de recordar, e no dia seguinte, ou dois dias depois, esqueço tudo de novo, voltando à estaca zero?! E por que razão isto acontece comigo? Porquê esta mistura louca de personagens?

(Un)forgettableOnde histórias criam vida. Descubra agora