Pov Milles
- manhã a seguir ao baile -
Enterrei o rosto na almofada e deixei as lágrimas escorrerem livremente, com a mesma sofreguidão e urgência com que os pensamentos se precipitam uns por cima dos outros. A dor de cabeça é tão intensa que apenas consigo recordar fragmentos do dia anterior, e na maior parte deles um rapaz de camisa colorida aparece a sorrir, com uns dentes perfeitamente alinhados e duas covinhas salientes nas bochechas.
Harry.
Tento, em vão, apagar a imagem da sua figura estática enquanto eu me debatia na água, com os olhos claros apagados, sem vida, quase como se não existisse ninguém dentro daquele corpo.
- Por que não me salvaste, Harry?! - A minha voz sai sufocada contra o tecido da almofada, e o choro intensifica-se numa série de soluços descontrolados.
Não sei porque me sinto assim, os meus pensamentos estão confusos e desalinhados e eu não consigo perceber por que razão alguém que conheci ontem me parece tão importante. Tento lembrar-me se alguma vez o vi antes, mas é como se pairasse uma nuvem sobre todas as memórias, e não consigo recordar nada além do dia de ontem. Ao fim de algum tempo a forçar as recordações, é com frustração que acabo por desistir e estico o braço para a mesinha de cabeceira, para desligar o candeeiro.
Um pequeno caderno cor-de-rosa com a palavra "diário da Milles" na capa chama a minha atenção, e pego nele, abrindo-o sobre a cama. Não me lembro de ter um diário, mas todos me chamam Milles, por isso deve pertencer-me. Ao abri-lo reparo que a primeira folha contém três orientações enumeradas, mas concentro-me apenas nas primeiras duas, já que a terceira não faz qualquer sentido.
1. ESCREVE-ME TODOS OS DIAS.
2. LÊ-ME (DO INÍCIO) TODOS OS DIAS.
A primeira data é de há dois anos atrás, e à medida que avanço nas páginas do pequeno diário, maior é a minha confusão. Num dia é Meg das Mulherzinhas que escreve, com curiosidade rebelde e irreverente, no outro é Branca de Neve, com doçura e benevolência; e até há uma data assinada pela bruxa má, que tentou oferecer maçãs ao Niall. As personagens multiplicam-se diante dos meus olhos, cada uma delas marcada pela inconsciência da presença das anteriores.
Ernest e Lola, Liam, Niall, Louis e Zayn são nomes que se repetem em todas as páginas, e aparentemente as únicas pessoas que fazem parte do círculo de conhecidos destas pessoas...ou desta pessoa. Levantei-me num salto, determinada a perguntar ao Liam o que vinha a ser esta confusão toda, mas nesse momento um livro caído aos pés da cama chamou a minha atenção. "Cinderela."
Fiquei uns segundos em choque, incapaz de estabelecer uma ligação entre ambas as coisas, mas quando aconteceu, deixei-me cair de joelhos, chorando compulsivamente: isto sou eu, este é o meu diário, e eu sou esta confusão de personagens que não se lembram umas das outras. Hoje, sou Cinderela.
Tentei lembrar-me dos acontecimentos descritos, como quando o Ern me levou a pescar, e eu era a pequena Doritte de Dickens, ou quando a Lola me levou ao mercado pra comprar morangos, comigo a ser Emma da Jane Austen, mas mais uma vez parece haver uma nuvem cerrada a pairar sobre todos os acontecimentos anteriores ao dia de ontem.
Curiosamente, cada personagem dura dois dias, mas ao segundo dia é como se a anterior tivesse deixado de existir...como se todas as suas memórias fossem apagadas.
De repente, um pensamento tomou-me de assalto: e se isto acontece todas as noites? E se todas as noites eu leio este diário, chorando compulsivamente com a descoberta de que sou incapaz de recordar, e no dia seguinte, ou dois dias depois, esqueço tudo de novo, voltando à estaca zero?! E por que razão isto acontece comigo? Porquê esta mistura louca de personagens?
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(Un)forgettable
Dla nastolatków"Dizem que quem conta um conto acrescenta um ponto. Mesmo as vossas memórias, não são mais do que aquilo que escolheram lembrar de um passado que nunca será recordado exatamente como aconteceu. Mas comigo é diferente: o meu nome é Harry e eu não acr...