1982
POV Celleste
Tentei esboçar o meu melhor sorriso de boas-vindas enquanto mais uma prima em segundo grau cruzava a entrada do quarto.
- Meu deus, é tão linda, a minha pequenina! – Exclamou, avançando a passos largos na minha direção, com os braços em riste prontos para lhe pegar.
Eu sei que é linda. E minha. E não estou minimamente feliz por fazê-la passar de braços em braços nos últimos dois dias. É egoísta da minha parte, bem o sei, mas gostava de poder estragar a minha filha de mimos sem ter de a partilhar com um sem-número de familiares sedentos de bochechas gordas e cheiro a bebé.
- Prima Celleste, tome nota! Nunca estenda a roupa da bebé à luz da Lua...está provado que adoecem três dias depois!
Suspirei interiormente antes de lançar o sorriso relativo a sugestões e conselhos de maternidade: um cantinho arrebitado de condescendência e um olhar de aparente agradecimento. As indicações prolongaram-se por aquilo que me pareceu uma infinidade de tempo, transversais a todas as áreas possíveis e imaginárias, desde a higiene, alimentação, transporte da criança, e chegando mesmo à própria educação primária: pública ou privada? Complementá-la com aulas de piano ou equitação?
Mantive o meu sorriso ensaiado durante todo o discurso, concordando ocasionalmente com um aceno de cabeça, embora a minha vontade fosse exprimir a indiferença perante tais disparates.
- Mas Celleste, sempre pensei que fosse chamar-lhe Elizabeth...como a bisavó...mas vocês, jovens, já não querem saber dessas coisas para nada... a família está a perder a sua importância...
O tom de reprimenda é tão palpável que tenho de recorrer a toda a minha paz de alma para não a mandar passear. Sempre soube que a família do Henry era tradicional demais para os dias de hoje, que valorizam comportamentos, atitudes e decisões que no meu entender estão completamente desajustadas da realidade atual, mas ainda assim, sempre aceitei isso com muita consideração e respeito. Além do mais, o facto de vivermos em Carbis Bay, que não prima propriamente pela população de mente aberta, é também factor explicativo deste "fenómeno-Mary", como o meu pai costuma dizer, e que mais não é do que a tendência generalizada para todas as "Marys" cá da zona – que só por acaso haverão de ser primas do Henry – bisbilhotarem até ao tutano as vidas dos outros.
- Hmmm, prima, é melhor deixarmos a Celleste e a bebé descansarem, têm sido dias muito intensos desde que ela veio ao mundo! – Disse o Henry, arrastando-a cuidadosamente até à saída, enquanto lhe retirava, ainda mais cuidadosamente, a nossa filha dos braços gordos e cobertos de bijuteria barata.
- Certo, certo, mas voltarei em breve e trarei comigo o raminho de lavanda para a tal reza de que falei! – Prometeu, enquanto atravessava a porta da saída atirando beijinhos ao ar.
Quando a porta finalmente fechou, troquei um olhar de alívio com Henry, que logo se sentou ao meu lado na cama, com a bebé nos braços.
- É perfeita. – Sussurrou pela enésima vez, sorrindo-me com os olhos a transbordar de amor.
- É mesmo. E é nossa. – Devolvi, divertida, pronta para um momento de verdadeiro sossego com a minha família.
Um bater firme na porta deitou essa perspetiva por terra, e preparava-me para mais uma sessão de sorrisos ensaiados e milhares de sugestões do manual da vida para recém-mamãs, quando uma voz reconhecida me fez sorrir genuinamente.
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(Un)forgettable
Teen Fiction"Dizem que quem conta um conto acrescenta um ponto. Mesmo as vossas memórias, não são mais do que aquilo que escolheram lembrar de um passado que nunca será recordado exatamente como aconteceu. Mas comigo é diferente: o meu nome é Harry e eu não acr...