Ian e eu voltamos para o local onde nossos amigos estavam quando o sol nasceu. A névoa baixa pelo chão da fria floresta emanava pelo lugar. Não havia mais fogo na fogueira; tudo estava silencioso. O lago estava calmo, porém continuava cinza, assim como o céu. Não havia sequer uma onda nele, nenhum movimento. As árvores respiravam como se me dissessem bom dia. Ian foi para sua barraca, beijando minha testa. Sentei-me em volta da fogueira já apagada, curtindo o frio. A blusa de Cambo agora estava suja de lama, o que certamente o deixaria bravo. A bolsa vermelha de Alice estava jogada, e a abri achando dois cigarros. Minha salvação. Enquanto acendia o primeiro deles, achei algumas camisinhas fechadas. Ri, pensando na personalidade de minha amiga. E, bem... Não usei camisinha com Ian, porém pouco me importava. Por conta de Mia, não menstruava mais, e quando isso acontecia, um dia de um fluxo pouquíssimo intenso já era o suficiente. Provavelmente eu estaria infértil nos dias de hoje, mas não me sentia mal com isso. Já estava há talvez quatro meses sem nada descendo.
O dia ficava cada vez mais claro, porém meu interior cada vez mais negro e perturbado. Meus olhos se fecharam. Eu estava com sono. Não me sentia viva como há poucas horas atrás. Aliás, o prazer ali sentido foi-se embora com a noite. Eu era um monstro. Um monstro...
Acordei, de baixo de cobertas, dentro de uma das barracas. Estava aquecida, finalmente. Meus olhos se assustaram com a luz, não mais tão forte, vinda do Sol. Não me lembrava de como eu havia parado ali. Tinha apenas alguns vislumbres de Cambo... Ah, sim. Campbell. Ele havia me colocado ali. Eu estava dormindo recostada nos troncos que ficavam em volta da fogueira quando seus olhos acordaram os meus. Ele sussurrou algumas coisas e eu reclamei, passando meus braços por volta de seu pescoço. Joguei-me em cima dele, que me pegou no colo com certa facilidade e me colocou aqui.
Passei minhas mãos por meu rosto, abrindo a barraca. Não havia ninguém ali comigo, porém todos me encararam quando saí. Eles estavam comendo alguma coisa, e pude perceber que já era fim de tarde. Eu estava tão cansada que havia dormido mais do que devia.
- Bom dia – Eu disse irônica, sem esperar uma resposta de qualquer um ali. – Ou boa tarde, tanto faz.
Ian me olhava com seus olhos negros, tristes e preocupados. Alice e Cambo estavam sentados lado a lado, porém nenhum dos dois olhou em meus olhos.
- Vamos embora daqui a uma hora, Penny – Jane disse. – Sente-se. Vamos comer antes de partir para a estrada.
- Não estou com fome. – A mentira foi automática; não tinha mais controle sobre nada.
- Agora me diz uma novidade – Cambo bufou e se levantou, fuzilando-me com suas pupilas. Ele marchou floresta adentro, com passos pesados e nervosos. Olhei para todos, fazendo-me de vítima.
- Coma algo, Penelope – Ian disse. – Sério.
O obedeci, acreditando que aquilo seria um conselho sobre as pílulas loucas que havia ingerido noite passada. Sentei-me onde Cambo estava sentado há pouco tempo. Todos estavam quietos e constrangidos. Dei uma mordida num pão e numa bolacha, porém não sentia tanta fome como achei que estava sentindo.
A fome é psicológica, Mia finalmente disse algo.
Eu estava cansada de todo aquele silêncio. Ninguém me diria qual era o problema, então eu mesma decidi descobrir. Levantei-me da mesa de forma brusca, assustando os que ali estavam. Segui os passos de Cambo, que a essa hora já havia sumido de meu campo de visão. Afastei aquelas malditas plantas da minha frente, entrando cada vez mais na floresta úmida. As copas das árvores cobriam o céu nublado, porém derramavam em minha cabeça gotas, consequência da madrugada gelada.
Achei Cambo, envolto de fumaça de cigarro, sentado em cima de uma pedra, olhando as montanhas. Caminhei lentamente até seu lado, sentando-me ali em silêncio. Ele me olhou e deu mais um longo e forte trago, como se aquilo fosse preciso para ele conseguir falar comigo.
- Se divertiu noite passada? – Finalmente Cambo disse. – Ouvi você.
Engoli o seco. Não conseguia olha-lo nos olhos. Me sentia tão suja e envergonhada... Mais do que jamais senti.
- Seus malditos gemidos, Penelope – Ele riu, debochando de mim.
- Cambo – Eu disse. – Eu estava fora de mim...
- Claro que estava – O garoto ficou sério. – Claro que você estava fora de si enquanto gritava o nome dele! – Ele amassou o cigarro em suas mãos, com uma força calculada.
Lembrei-me então do motivo de ter feito aquilo.
- Você fala como se tivesse alguma moral – Bufei, também.
- Do que você está falando? – Agora foi sua vez de engolir o seco na garganta.
- Você se acha muito esperto, certo? – Levantei-me. – Eu vi você no colégio com uma garota, Campbell. Logo depois de domingo, onde nós... Nós nos beijamos, e pela primeira vez em meses, me senti amada. Eu acreditei quando você disse que eu era importante... Tão burra. E o pior de tudo é que caí nessa história duas vezes – Olhei para o nada, vislumbrando as duas cenas, lado a lado. Cambo e James ali, revirando seus olhos enquanto outra provocava toda aquela maldita excitação. – Realmente acreditei naquela história da foto. Você deve ter dito o mesmo para ela.
- E o que você vai fazer? – Ele riu. – Se cortar?
Os olhos lacrimejando eram inevitáveis. Eu não chorava na frente de ninguém. Tentei ao máximo segurar as lágrimas, mas não consegui. Minha mão correu para seu rosto, dando-lhe um belo tapa na cara, que havia ficado marcado. Os soluços saídos de minha boca logo começaram também. Virei-me de costas para ele, assim Cambo não poderia me observar caindo aos pedaços.
- Eu não menti, Penelope – Ele sussurrou. Sua voz correu por meus ouvidos.
- Claro que não. Você apenas abusou do desejo da sua irmã. O desejo da foto, certo? Ou isso também era mentira? – Ri, sabendo o quão malvada estava sendo ao tocar no assunto da morte trágica de Annelise. Virei-me finalmente para ele, com meus olhos vermelhos e inchados. – Não acho que ela iria gostar de saber que você a usa de desculpa pra levar outras pra cama.
- Cala a boca, porra! Não fale da minha irmã, Penelope! Você não sabe nada de mim, muito menos dela – Seus olhos ardiam em fúria. Seu tom de voz era alto, assustando-me e me fazendo dar passos para trás. – Nunca mais mencione o nome dela.
As lágrimas haviam parado, porém a vontade de chorar não.
- Annelise Carsley. A garotinha que se matou por causa do irmão – Eu disse, com uma voz inocente. Ele já havia me magoado o bastante.
E este era o meu troco.
Foi o suficiente para fazê-lo perder o controle. Cambo virou furiosamente para mim, e eu por um momento achei que ele bateria em mim. Não via mais o garoto pelo qual eu suspirava em seus olhos. Seu punho fechado bateu com força no tronco de uma das árvores, talvez para não me socar. Eu estava com medo. Cambo fechou seus olhos com força, e quando os abriu, prensou-me no mesmo tronco que havia socado com toda sua raiva. Seus olhos verdes, tão profundos e furiosos, fitavam-me. Podia ver seus músculos rígidos e suas mãos quase arranhando a madeira. Nossos rostos estavam a centímetros um do outro. Sua boca pálida provocava a minha, porém nosso orgulho era maior do que qualquer desejo. As mãos de Cambo se deslizaram lentamente para a minha cintura. Eu estava imóvel diante de seu toque. Sua boca pousou suavemente em meu ouvido, porém todo o meu mundo desmoronou quando ele sussurrou aquela palavra.
- Vadia.
Meu corpo formigava de fúria, mas não fiz nada. Apenas o observei indo embora em passos agora lentos. Antes de sumir de vez, ele parou e se virou para mim, com um sorriso irônico estampado no rosto.
- Fiquei sabendo que você gosta que te chamem assim.
E então finalmente sumiu de vista.
Fiquei paralisada por um bom tempo. Ainda estava tentando entender o que havia acabado de acontecer; o que eu mesma havia provocado. Meus pés saíram do chão, e meus cabelos voaram diante de meus olhos. Corri floresta adentro. Agora eu não corria para queimar calorias, e sim para fugir. Fugir de quem eu era. As lágrimas se misturavam com o vento, que as secavam antes de poderem tocar o chão. Tudo passava à milhão diante da minha vista. Não sabia para onde estava indo, e nem queria saber. Apenas corria. Apenas vivia. Apenas respirava.
Joguei-me num monte de folhas e arbustos e apenas senti a garoa fina cortar minha pele. Eu não era nada. Nunca fui nada.
Maldito acampamento.
O frio fazia meu corpo tremer. Minha boca se abriu lentamente, porém o grito nervoso que saiu dela demonstrou toda minha frustação. Minhas cordas vocais tremiam, mas eu gostava daquilo. Sentimentos estavam impressos no som emitido por mim. Finalmente sentimentos de verdade.