Finalmente, não havia mais dor. Não havia mais pensamentos pesados, ou ruins. Não escutava mais vozes, nem via sombras me perseguindo. Sentia-me leve, por dentro e por fora. A escuridão era reconfortante, assim como o silêncio que se instalara em minha mente. Todo o ódio fora embora – assim como o amor. Não era uma sensação ruim. Era como flutuar num mar límpido e vazio. Como se só houvesse eu em todo o mundo, mas mesmo assim, ele não girava em torno de mim. Eu apenas flutuava, sem destino ou ambição. Respirava o ar mais puro que jamais tocara minha pele docemente. Sozinha, mas completa por dentro. Me sentia em paz pela primeira vez, e preferia imaginar que sempre fora assim. A sensação era de êxtase, nada podia me tocar. Eu estava no Céu, aonde nenhum demônio chegava. Nenhum deles voltaria atrás de mim, me segurando pelas pernas e me arrastando para baixo. Meu coração não batia tão forte como antes. Era como morrer lentamente, mas sem dor alguma. Sentia apenas um aperto em meu peito, como se alguém pegasse minha alma e a esmagasse, mas eu não me importava. Nunca soube usá-la de maneira correta.
De repente, quando tudo estava perfeito, surgiu algo além. Alguém. Seus braços se curvaram como num grande abraço e me seguraram. Eu não entendia o porquê, mas não pude contestar. Seu toque havia me trazido de volta para minha vida mundana que eu esquecera nos breves momentos em que passei num outro plano. Não pude abrir meus olhos, mas conseguia escutar sua voz, tão distante, desesperada gritando por meu nome. Sentia meu corpo gelado tremendo a cada gota d'água que caía por minha cabeça, me levando ao lugar que eu tanto temia: a realidade.
Era como o inferno. As vozes gritavam todos os meus piores medos, todas as minhas angústias e sonhos perdidos ao longo do tempo. Mergulhei então num mar de sangue sem fim, onde a parte mais odiosa do mundo se concentrava, apenas esperando minha chegada. Eu tentava gritar, mas minha boca não emitia nenhum som. Os demônios me puxavam para baixo, tentando me levar para o submundo onde eles viviam. Eu já estivera lá, e sabia o quão asqueroso era. Sabia que eu não deveria voltar. Não deveria seguir as vozes que cuspiam em minha cara a falha em que me tornara. Em silêncio, supliquei para que alguém me tirasse dali, me levasse de volta para o paraíso em que eu estava antes. Me levasse de volta para o lugar onde eu finalmente encontrara a mim mesma.
Abri meus olhos, finalmente. Olhei em volta, tentando descobrir onde estava. Meu coração voltara a bater aceleradamente, e eu sentia minhas pernas tremendo novamente. Eu sabia, bem no fundo, que aquilo não era bom. A luz clara e branca cegava meus olhos, que ardiam, confusos, sem saber aonde se encontravam. Minha mão se estendeu na tentativa de tocar algo conhecido por mim, mas nada encontrei. Eu podia ouvir vozes ao fundo, vozes de verdade. O que elas diziam parecia fazer sentido, mas eu mal podia me mexer, mal podia chamar por alguém. As paredes eram claras, assim como as cortinas pesadas sob as janelas fechadas.
Então entendi o que estava realmente acontecendo. Foi aí que tudo veio à tona.
Eu estava viva.
Como isso era possível? Lembro-me perfeitamente de tudo que fiz para que isso desse certo. Lembro-me da intensa dor em meu corpo até ele finalmente parar de tremer – até que eu, finalmente, parasse de respirar. Minha cabeça doía como jamais doeu antes, e o desespero se instalara dentro de mim. Desespero de que, talvez, meu coração estivesse mesmo batendo, mesmo que fraco. Senti medo. Senti cansaço e fome. Senti todas as sensações que uma garota viva deveria sentir – e eu me cansara de estar viva apenas por fora. Puxei ar para meus pulmões para comprovar meu pior medo, e a cada vez que meu corpo respondia aos meus pensamentos, lágrimas rolavam por meu rosto, que a essa altura, não estava mais tão frio como eu gostaria que estivesse.
Um homem estranho entrou pela porta e caminhou a minha volta. O olhei, não com medo, mas com curiosidade. Ele me encarou por longos segundos, olhou em volta, e sorriu tênue. Abri minha boca, mas nada saiu dali. Não sabia o que dizer, nem o que perguntar.
- Você vai ficar bem – Falou enquanto sua voz entrava em meus ouvidos de maneira lenta e distorcida. – Você é uma garota sortuda. Se aquele garoto não estivesse lá na hora certa...
Acenei com a cabeça, mas logo fechei meus olhos novamente. Quando os abri, ele não estava mais lá e me senti melhor por uma fração de segundo. Agora as vozes aumentaram, e eu ouvia passos e suspiros também. O meu mundo se desmoronava ao ver onde eu estava. Deitada numa cama coberta por lençóis azuis bebê, eu estava ligada a tubos e agulhas dentro de mim. Meu braço doía, assim como meu pulso que latejava. Minha visão estava turva, mas eu pude, finalmente, saber onde eu me encontrava.
Num maldito hospital.
Meu coração, que antes mal batia, agora aumentara seu ritmo em desespero e medo. Eu estava a salvo, mas aquilo não era bom – não para mim. Por que ninguém me salvou quando eu realmente quis ser salva? Por que não me deixaram simplesmente morrer?
- Penelope? – A voz tão rouca e preocupada que eu tanto conhecia ecoou pelo quarto.
Fechei meus olhos com pressa, com receio de ser descoberta – não que ela já não soubesse da verdade. Senti seus passos se aproximando depois de muito tempo parados, na decisão do que fariam a partir dali. Eram passos calculados e frios. Senti a respiração de minha mãe, ansiosa, esperando por algum gesto ou resposta, mas nada recebeu. Suas mãos, tão frias, tocaram meu rosto com delicadeza, com amor. Acariciou-me por um tempo, e mesmo de olhos bem fechados, eu soube que ela me encarava.
O que acontecera com sua filha? Onde ela havia errado? O que fez para merecer aquilo?
Abri meus olhos com cuidado, e o que encontrei a minha frente foram olhos cheios de lágrimas e um rosto pálido, dez anos mais velho do que na noite passada. Ela não se assustou como achei que faria, apenas abriu sua boca com dificuldade e me perguntou:
- Por quê?
Não respondi, como de costume. Era malcriada demais para isso. Apenas fechei meus olhos novamente, esperando que lágrimas não escorressem de meus olhos tão úmidos. Viva ou morta eu a faria sofrer, nada mudara. Nada mudaria.
Seus olhos finalmente cederam. Era fácil observar o nó de choro que estava preso em sua garganta. Sua postura rígida, suas mãos tão geladas, dedos tão frios. Tudo aquilo era apenas sua forma de ser a mãe forte que ela sempre quis ser e nunca conseguira. Ela poderia ter feito mais, era o que estava pensando agora. Era fácil perceber o quão frágil ela estava.
Virou-se então. Provavelmente cansara de esperar de mim respostas que nunca conseguiria. Talvez cansara de tentar provar à todos que eu tinha salvação, de que ela não havia feito um trabalho tão ruim assim.
Como uma assombração, desolada por todas as mágoas do mundo, ela foi embora; e naquele momento eu soube que a mulher com quem passei a vida jamais seria a mesma.
Minha memória fraca, meus ossos tão frágeis e minha alma quebrada adormeceram mais uma vez, talvez para não pensar no desastre que eu provocara. Meus olhos estavam abertos, mas minha mente fechada como um baú de tesouros – mesmo não havendo nada de valioso dentro de mim.
(N/A: Aconselho a ler o restante do capítulo ao som de )
Quando eu menos esperava, a porta se abriu novamente. Eu estava prestes a fechar meus olhos mais uma vez, mas desisti ao ver aquele mesmo tênis, que continuava sujo. Meu coração disparou, talvez porque eu quisesse sim o ver, ou simplesmente porque me sentia assustada só de pensar nessa possibilidade. Ele parou ao me ver e abriu um sorriso tímido e receoso. Enfiou as mãos nos bolsos e depois as passou pelo cabelo, o bagunçando ainda mais.
- Oi – Ele disse.
Não respondi.
Ele se aproximou então, a tal ponto que eu pude sentir seu perfume natural exalando de sua pele. Cigarros, hortelã e qualquer colônia barata.
- Que bom que você está... – Pareceu um pouco confuso, mas mesmo assim continuou – Viva.
O olhei no fundo dos olhos, tentando lutar com a raiva que crescia em meu peito. Campbell esperava por uma resposta, mas só obteve meus olhos semicerrados. As palavras do Doutor, aos poucos, começavam a fazer sentido.
"Se aquele garoto não estivesse lá na hora certa..." - Por que você me salvou?– Perguntei.
Ele se assustou. Seu sorriso sumiu de sua face, agora pálida. Suas mãos ficaram trêmulas, e pela primeira vez, percebi que Cambo possuía um lado tão fraco quanto o meu.
- Por que, Campbell? – Perguntei novamente, mas dessa vez com um tom ameaçador em minha voz. – Eu queria morrer! Por que você não me deixou lá? Por que você tinha que aparecer? Era meu único desejo. Meu único e último desejo... E você simplesmente o tirou de mim – As lágrimas, assim como o desespero, finalmente começaram a rolar de meus olhos. – Era a única coisa que eu queria! -
Cambo me olhou assustado. Talvez esperasse que eu o agradecesse e o beijasse depois. Talvez então que eu não dissesse nada. Não era um olhar decepcionado, porém. No fundo, ele sabia que essa seria minha reação. No fundo ele sabia que eu era um caso perdido. Ele podia salvar meu corpo, mas minha alma era como uma casa abandonada - feia e assustadora. Ninguém quer entrar, mas sempre há um corajoso disposto a se arriscar.
Campbell continuou a me encarar enquanto eu desmoronava. Não me importava mais com as consequências. Eu nunca mais seria a mesma. Nunca seria feliz, nem boa o suficiente.
- Você não deveria ter me salvado – Murmurei entre soluços. – Eu não merecia ser salva.
Suas mãos finalmente pararam de tremer, e ele me olhou com uma pitada de orgulho misturado a raiva em seus olhos. Aproximou-se mais um pouco, olhou para o lado. Voltou seu olhar para mim, e senti meu corpo ser invadido por um choque elétrico que percorreu meus pés até chegar nas pontas de meus dedos das mãos, que começavam a tremer. Cambo aproximou seu rosto lentamente, ainda decidindo se aquilo era a coisa certa a fazer. Olhei para cima e lá estava seu belo par de olhosverdes transbordando a confusão que acontecia dentro dele. Nossos olhos permaneceram grudados, e não me senti perdida pela primeira vez desde que abri meus olhos. Senti como se nossos corpos se transportassem para um lugar onde só havia nós dois. Nós dois no momento mais compreensivo que já vivi. No momento onde eu finalmente entendi o motivo de estar ali. A imensa raiva permanecia instalada em meu peito, mas ao mesmo tempo, eu sentia uma pontada de alívio.
Vi um pequeno brilho surgir em seus olhos. Diferente de todos os outros que eu já vira neles. Seus olhos verdes intensos davam lugar a um leve tom rosado e molhado. Campbell não se importou, não piscou para limpar a visão. Não se importou se pela primeira vez demonstrava seus sentimentos – aqueles que por tanto tempo ficaram escondidos. Abriu sua boca lentamente. Seus lábios agora estavam inchados.
A primeira lágrima finalmente escorreu.
- Não conseguiria viver num mundo sem você – Sussurrou.
Não me assustei, nem contestei. Tentei apenas entender o que aquilo significava, se era bom ou ruim. Só sabia que, talvez por ironia do destino, me senti viva. Senti-me viva depois de estar tão perto da morte, a um fio do silêncio eterno.
Nossos olhos se fecharam juntos, sincronizados. Nossos batimentos se acalmaram também. Seus lábios se aproximaram dos meus, e então se tocaram sutilmente. Não ousamos mais do que apenas aquilo. Não queríamos – nem podíamos. Apenas grudamos nossos lábios por tempo suficiente para que a dor parasse. Senti toda sua amargura, e todo o amor que aquele garoto tinha dentro de si. Todos aqueles sentimentos que todos nós fingimos não ter. Era como se nossos corações despertassem, como se todo aquele tempo em que estivemos longe, estivéssemos desligados, e que agora, finalmente, vivíamos.
Cambo desgrudou seus lábios dos meus depois de muito tentar, e então voltamos à nossa realidade. Àquela que tanto tentávamos fugir. Minha boca não disse nada, mas meus olhos suplicavam para que ele não me deixasse.
- Se cuida – Ele se aproximou mais uma vez e beijou minha testa, relutando para ir embora.
O observei partir como se meu coração estivesse em suas mãos. Como se ele levasse uma parte de mim embora. Queria ter forças para correr em direção aos seus braços e o beijar até o fim dos tempos. Queria me sentir segura em seu abraço. Mas eu já não gostava mais dele.....