Abri meus olhos com cuidado por causa da luz que entrava pelas grandes janelas de vidro do quarto de James. Hoje o dia estava ensolarado, diferente de todos os outros. Olhei em volta, mas não achei ninguém. Levantei-me, me espreguiçando demoradamente. Bocejei várias vezes até colocar meus pés no chão. Desci as grandes e imponentes – como tudo no resto daquela mansão - escadas de madeira com cuidado, e fui em direção à cozinha, onde ouvi o barulho de panelas caindo no chão e um palavrão vindo da boca de James.
- Tentando cozinhar? - Eu disse, rindo.
- Até parece. Eu estava tentando pegar um prato pra esquentar a pizza de ontem.
Ri mais ainda, mas fui até ele e o ajudei a pegar os pratos de vidro na prateleira.
- Foi mal não ficar acordada ontem. Estava com muito sono.
- Tudo bem. Foi bom dormir com você de novo, pra variar.
Eu ri, e dei um leve tapa em seu braço forte.
- Eu até revidaria se você não estivesse tão magra – Ele me encarou, agora sério.
- O que foi, James? – Me virei, nervosa.
- Você sabe o que foi. Parece que não come há anos. Você já está magra o suficiente, não acha Penelope?
- Não! – Respondi, ardendo em fúria. – Nunca vai ser o suficiente. Você não entende isso?
James respirou fundo para se controlar e deu passos pesados e nervosos em minha volta.
- Quando vai ser bom o suficiente? Quando você estiver morta?
- Quem sabe!
Eu havia perdido minha paciência.
De onde diabos James tirava que eu estava magra? Ninguém conseguia enxergar o quão gorda e nojenta eu era? Era impossível olhar para mim e ver algo além e gordura. Como ele sequer ousava dizer isso?
- Penny – Ele falou, agora mais calmo. – Eu sei que você está com fome.
- Eu estou morrendo de fome. Mais fome do que nunca senti em toda a minha vida, James. – Resmunguei, cuspindo as palavras na cara de James, mas nunca sem deixar de olhar para o pedaço de pizza, com seu queijo derretido caindo sobre a borda do prato de porcelana.
Meus olhos finalmente lacrimejaram. Meu estômago parecia rir enquanto se contorcia dentro de mim.
O cheiro do queijo subia pela leve fumaça quente que vinha do prato a pouco tempo aquecido, até entrar em meu nariz, perturbando meu cérebro com a ideia de comer.
Comer. Minha maior tentação. Meu maior anseio era poder comer sem me sentir um lixo. Meu maior desejo era poder me sentir bela, me sentir amada, me sentir segura, mas sabia também que a comida não me traria nada disso. A comida ficaria por alguns minutos em minha boca, alguns leves segundos de prazer momentâneo. E depois? Desespero. Angústia. Era isso o que vinha depois. Culpa.
- Você quer que eu coma?! – Gritei, assustando James.
Sim, eu queria comer. Muito. E, com desespero, peguei a faca e o garfo com as mãos trêmulas. Cortei um pedaço relativamente grande para minha boca miúda pela fome com força, riscando o prato. Coloquei na boca sem deixar de olhar pra James, provando que eu conseguia aquilo. Conseguia ser normal – ou pelo menos, fingir ser.
Como todas as outras vezes, não foi diferente. O sabor explodia em minha boca como fogos, era mágico. Era mágico comer, por que eu não conseguia? Era impossível não se deliciar a cada mordida, não sentir um prazer enorme me alimentando, de todos os modos possíveis. Minha alma, meu corpo. A sensação era boa, e eu sabia disso. Sempre soube disso. Eu amava comer -- até engolir a comida. No momento que a comida batia em meu estomago, a voz de Mia começava. Porém, dessa vez não foi a voz de Mia que me alertou. No momento em que senti o pedaço descendo minha garganta, também senti outra coisa subindo.
O gosto também não mudara nada.
Era isso. Eu não conseguia. Não conseguia comer.
Corri com os olhos cheios de lágrimas para a lixeira de metal no canto da grande cozinha de James. Agachei-me com pressa, e ao abrir a tampa, todo o vômito acumulado saiu de minha boca, como num jato. Não vomitei apenas o pedaço de pizza que eu comera, mas sim todo o resto de tudo que comi num bom tempo. Eu nem ao menos sabia que podia vomitar tudo aquilo. Nem sabia que sobrara algo para vomitar.
E aquele gosto... Aquele gosto nojento, ácido e azedo. Eu simplesmente não conseguia parar de vomitar, ali, agachada, naquela situação tão humilhante. Pequenos pedaços de qualquer coisa que eu não lembrara ter comido eram cuspidos fora da minha boca, com fúria, enquanto outro jato de vômito caia no chão por descuido. O último, pelo menos. A última vez que eu cuspia com raiva o que era tão nojento e humilhante.
- Você não come há quanto tempo? – A voz de James passou suavemente por trás de mim, assim como suas mãos segurando meus cabelos para trás.
- Não sei – Tossi. – Talvez dois dias.
James suspirou, e naquele momento, lembrou meu pai quando perdia a paciência comigo.
Quando finalmente parei de vomitar, James me levantou do chão e então me apoiei na pia, onde ele jogava água na minha boca e no meu rosto.
- Você não está mais acostumada a comer – Ele disse, com calma enquanto suas mãos lavavam meu rosto. – Penelope, você precisa de ajuda.
- Não. Não preciso – Fechei a torneira e o encarei.
- Isso não é uma das coisas que você consegue resolver sozinha. Não precisa ser tão durona.
Olhei para James, tentando forçar qualquer expressão de compaixão enquanto ele tentava me ajudar.
- Eu vou ficar com você hoje, tá legal? – Ele disse calmamente, fazendo meu interior sorrir.
Passamos o dia juntos, sem brigas, simplesmente rindo e relembrando antigas memórias. James me fez comer pelo menos um pouco, e Mary, sua empregada, fez uma sopa para mim. Eu detestava sopa, mas sabia que precisava comer algo, e a única coisa que meu estomago aguentava era aquilo.
Nós contamos piadas bobas o dia todo. Era quase impossível não rir ao lado do novo James Jackman, mais maduro do que eu queria acreditar. Dançamos descoordenadamente ao som de hits de Michael Jackson e outras músicas estranhas dos anos 70.
Eu gostava daquela sensação. Gostava de assoprar a fumaça de meus cigarros em seu rosto, e depois o ouvir reclamando, dizendo "fumar é um hábito horrível" com aquele seu tom de voz grave e gramática perfeita. Gostava de quando ele me pegava no colo e me girava no ar, como se eu pesasse menos do que uma pena.
- Você não acha que está na hora de devolver minha camisa? – James perguntou enquanto eu ria.
- Pra falar a verdade, não. Fiquei extremamente sexy vestida nela, não?
- Ficaria melhor sem – Ele me olhou, sacana.
- Ai meu Deus, cale a boca! – Eu o empurrei, rindo e pulando em suas costas.
James segurou minhas pernas com força e correu por sua casa comigo pendurada em seu pescoço. Eu não gritava para ele parar; ao contrário, eu gritava para ele correr mais.
- Vamos, James, seu fracote! – Dei leves tapas em seu ombro.
- Fracote? – Ele parou e respirou fundo. Virou seu rosto e me olhou nos olhos como um garoto travesso, e finalmente correu mais rápido do que antes, só que dessa vez em direção à piscina.
- Não! A piscina não! – Gritei, me debatendo, mas James segurava minhas coxas com força e eu não podia simplesmente me jogar no chão.
Quando chegamos a beira da piscina, ele parou para pegar ar e eu fiz o mesmo; já sabia o que aconteceria em seguida.
- Ninguém me chama de fracote!
Antes que ele pudesse terminar a frase, pulou com tudo na piscina, me levando junto. Senti a água fria bater com força contra minha pele e a pressão da água contra meu corpo. Com desespero, nadei para a superfície novamente, antes que James puxasse meu pé, me levando até ele, no meio da piscina. Não conseguíamos nos conter, e então rimos. Não sei se rimos porque aquilo era realmente engraçado e hilário, ou se fazíamos aquilo para disfarçar o quão sem graça estávamos.
- Isso te lembra alguma coisa? – Ele me puxou pela cintura.
Não respondi. Era impossível não lembrar do dia em que invadimos aquela casa. Impossível não lembrar da minha primeira vez; lembrar do que senti, que só não era maior do que eu sentia agora. Não havia definição certa. Minha cabeça estava numa confusão sem tamanho, e eu sabia que a dele também, pois seus olhos piscavam com força e sem parar. Sem que eu percebesse, suas mãos foram em direção ao meu rosto, o acariciando, como se me preparasse para o que estava prestes a vir. Nossos lábios se tocaram como se nossos corpos já não aguentassem mais ficar separados. Tentei lutar ao máximo, tentei me controlar, mas aquilo era como uma missão impossível. Simplesmente não dava. James me tinha nas mãos e fingia não saber disso.
Nosso beijo foi lento e perfeito. Mais perfeito do que todos os outros, num momento que parecia um filme clichê adolescente – coisa que sempre odiei, mas que naquele momento, fazia todo o sentido. Nossos lábios se acariciavam, assim como minhas mãos em sua nuca e as suas em minha cintura. Seu toque submerso me aquecia na água gelada enquanto o vento batia contra nossos rostos.
Eu ainda o amava? Ele começara a me amar finalmente? De verdade dessa vez? Eram tantas as dúvidas durante aquele ato, durante aquele beijo que eu esperara por tanto tempo.
O abracei com força, e ele retribuiu. Sempre pensei que o conhecia, mas naquele momento percebi que sempre estive enganada. James não era aquele garanhão seguro de si. Na verdade, era só um garoto inseguro, com medo das incertezas do mundo. E eu... Eu era só uma garota que precisava de alguém.